Exame Logo

É injustificável o STF descriminalizar o porte apenas da maconha, afirma professor de direito da USP

Em entrevista à EXAME, Pierpaolo Cruz Bottini afirma que não vê motivo jurídico para que o STF decida descriminalizar apenas a maconha

advogado, Pierpaolo Cruz Bottini. (Marcos Oliveira/Agência Senado/Flickr)
André Martins

Repórter de Brasil e Economia

Publicado em 17 de agosto de 2023 às 06h29.

Última atualização em 18 de agosto de 2023 às 11h31.

O criminalista e professor deDireito Penal da Universidade de São Paulo (USP) Pierpaolo Cruz Bottini, autor do livro Porte de Drogas para uso próprio e o STF, defende que é injustificável juridicamente o Supremo Tribunal Federal (STF) descriminalizar somente o porte da maconha .

"Eu acho que juridicamente é injustificável definir a descriminalização somente da maconha. Porque toda essa discussão é se eu posso ou não punir um usuário de drogas, se eu posso punir a autolesão. Então, eu não vejo razão, motivo ou critério para se limitar isso à maconha", afirmou o criminalista em entrevista à EXAME.

Veja também

Até o momento, quatro ministros – Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes – votaram a favor de algum tipo de descriminalização da posse de drogas.Amaioria dos ministros divergiram da tese de Gilmar sobre descriminalização de todas as drogas e sugeriram que a medida fosse restrita à maconha.

"Por que aprovar a descriminalização só para a maconha? Por que o usuário de cocaína é criminoso e o de maconha não é criminoso, se as duas são consideradas drogas? Me parece que uma decisão dessa não tem sentido jurídico. Eu defendo que o Supremo module várias situações, mas precisa de uma razão jurídica. E eu não vejo nenhuma razão constitucional para você só descriminalizar o uso de uma droga e não das outras", afirma.

Ele aponta que caso o resultado do julgamento seja no sentido de descriminalizar o porte somente da maconha e mantiver o uso de outras drogas como crime, o Executivo deve definir os critérios de uso para outras drogas. "O que se pode fazer eventualmente é o Supremo se antecipar e definir alguma quantidade para maconha, porque é algo que tem uma discussão mais madura, e deixar para o poder Executivo definir os critérios e parâmetros para as outras drogas. Isso pode ser feito", diz.

O professor defende, desde que o tema começou a ser julgado na Corte, em 2015, que as drogas devem ser descriminalizadas e tratadas como um tema de saúde pública. "Usar o direito penal para reduzir o consumo de drogas se mostrou um fracasso histórico. E mais do que isso: não existe legitimidade em usar o direito penal quando, na verdade, aquele que faz o uso problemático das drogas é uma vítima do tráfico e é alguém que precisa de tratamento e acesso aos serviços de saúde", afirma.

Bottini também avalia que a discussão dos ministros sobre afixação de um limite para considerar o infrator usuário ou traficante é o que vai tornar a medida eficiente, diminuir o encarceramento e a desigualdade social. "Quando você fixa uma quantidade (para definir quem é usuário ou traficante), tira do arbítrio do policial, do promotor e do juiz a decisão sobre quem é o usuário e quem é traficante, que é uma decisão mais uma vez perpassada por um critério social e racial. É muito importante que o Supremo fixe essa quantidade", afirma.

Além de falar sobre o julgamento da maconha, o professor comentou sobre a declaração de Rodrigo Pacheco sobre o caso, a relação entre os poderes e da próxima indicação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao Supremo.

Confira a entrevista comPierpaolo Cruz Bottini,criminalista e professor deDireito Penal da Universidade de São Paulo (USP)

O placar do julgamento está 4 a 0 a favor da descriminalização do porte da maconha. Quais são os principais argumentos dos ministros que votaram a favor dessa medida? E quais são os de quem defende que o porte deve ser crime?

Quem defende que o porte deve ser crime argumenta que a liberação incentivaria e aumentaria o tráfico, além de fortalecer a criminalidade organizada e causar uma dificuldade de se enfrentar o problema das drogas. Acredito que esse é o argumento básico de quem defende a manutenção das coisas como estão. Do lado de quem defende a descriminalização,o argumento central é que usar o direito penal para resolver um problema que, na verdade, é de saúde pública, é uma política fracassada. Vamos lembrar que até 2006 a legislação previa a prisão do usuário de drogas, e isso em nenhum momento resultou na diminuição do uso de drogas no país. Então, usar o direito penal para reduzir o consumo de drogas se mostrou um fracasso histórico. E mais do que isso: não existe legitimidade em usar o direito penal quando, na verdade, aquele que faz o uso problemático das drogas é uma vítima do tráfico e é alguém que precisa de tratamento. Então, essa pessoa precisa que seja oferecido tratamento e serviços de saúde. E se eu caracterizar essa conduta (o uso de drogas) como crime, vou afastar ela do serviço de saúde e do tratamento. Por isso, não me parece uma política inteligente e nem racional.

A definição de um parâmetro para diferenciar o usuário do traficante é a melhor ferramenta que o STF pode utilizar para acabar com a norma em vigência?

Na verdade, não adianta nada você descriminalizar o uso se não for fixado um parâmetro, uma quantidade, para diferenciar o tráfico do uso. E por que isso é importante? Em 2006 foi aprovada uma lei que extinguiu a pena de prisão para o usuário. Então, o uso continuava sendo crime, como até hoje é, mas retirou-se a pena de prisão. A ideia era boa, porque poderia diminuir o encarceramento, mas o que aconteceu foi um efeito totalmente inverso e aumentou o encarceramento. E por que aumentou? Porque a autoridade policial, a polícia na ponta, quando identificava alguém - em geral, de periferia e negro - classificava aquele usuário como traficante, para poder prender aquela pessoa. Isso resultou em um aumento do encarceramento, porque várias pessoas que eram caracterizadas como usuário passaram a ser caracterizadas como traficante. E evidentemente existe um corte racial e social nessa escolha de quem vão ser essas pessoas que vão ser consideradas traficantes.

No voto do ministro Alexandre de Moraes, ele traz dados muito impactantes. Porque ele diz: 'olha, o que é considerado traficante na periferia, em especial quando a abordagem é sobre pessoas pretas, e o que que é considerado traficante em bairros mais nobres e quando se trata de adultos brancos é diferente'. E essa diferença é muito considerável. Então, não adianta nada descriminalizar sem estabelecer uma quantidade objetiva, porque, mais uma vez, o que vai acontecer é que aquelas pessoas que moram na periferia e que são pretas vão ser consideradas traficantes e não vai mudar em absolutamente nada a realidade das coisas e nem o super encarceramento. Então, ao fixar uma quantidade, você tira do arbítrio do policial, do promotor e do juiz a decisão sobre quem é o usuário e quem é traficante, que é uma decisão, mais uma vez, perpassada por um critério social e racial. É muito importante que o Supremo fixa essa quantidade.

Um dos pontos de divergência entre o relator e os demais ministros é a descriminalização de todas as drogas ou só da maconha. Como o senhor vê essa questão?

Eu acho que juridicamente é injustificável definir a descriminalização somente da maconha. Porque toda essa discussão é se eu posso ou não punir um usuário de drogas, se eu posso punir a autolesão. Então, eu não vejo razão, motivo ou critério para se limitar isso à maconha. Ou seja, se criminalizar o uso da maconha viola o princípio da pluralidade e constitucionais, isso independe da qualidade da droga. O que se pode fazer, eventualmente, é o Supremo se antecipar e definir alguma quantidade para maconha, porque é algo que tem uma discussão mais madura, e deixar para o poder Executivo definir os critérios e parâmetros para as outras drogas. Isso pode ser feito. Agora, por que aprovar a descriminalização só para a maconha? Por que o usuário de cocaína é criminoso e o de maconha não é criminoso, se as duas são consideradas drogas? Me parece que não faz sentido jurídico. Eu defendo que o Supremo module várias situações, mas precisa uma razão jurídica. E eu não vejo nenhuma razão constitucional para você só descriminalizar o uso de uma droga e não das outras.

Qual a importância do julgamento do STF para mitigar os efeitos da legislação de drogas no aumento da população carcerária e da desigualdade no Brasil?

Eu acho que é um passo muito importante. Se fixar a quantidade realmente vai tirar da prisão aquelas pessoas que não participam do tráfico de drogas e nem têm relação com o crime organizado e vai evitar que essas pessoas passem a integrar essas organizações. Mais do que isso, você vai garantir a igualdade objetiva e impedir essa seletividade do processo penal, que hoje, da forma que está, acaba fazendo com que a lei penal incida sobre o mais pobre e sobre o preto de maneira muito mais contundente do que incide sobre o branco e rico. É importante que o Supremo dê esse passo para restabelecer um patamar mínimo de igualdade, e dá um passo para o desencarceramento, que a gente sabe que as prisões hoje são o maior instrumento que o crime organizado tem para formar os seus soldados e para engrossar fileiras. Quem mais agradece o super encarceramento é o crime organizado. A lógica do crime organizado no Brasil, diferentemente de outros lugares em que o crime organizado está na floresta ou se organiza na periferia, boa parte se organiza na prisão. Então, quanto mais preso, mais combustível para as organizações criminosas. É algo fácil de ver e é impressionante como ainda assim o país insiste numa política de encarceramento.

Na sua avaliação, a tendência é a maioria da corte votar pela inconstitucionalidade do artigo 28 da lei de drogas?

Eu acho que sim.E digo mais: acredito que praticamente todos vão votar pela descriminalização. Eu tenho essa impressão porque eu não vejo nenhum ministro ou ministra que tenha manifestado uma posição de apego a essa situação atual na política de combate a drogas.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, afirmou que o STF está invadindo a competência do Legislativo ao julgar a descriminalização das drogas. Como você vê o argumento do senador?

Eu acho legítima a manifestação do Pacheco e do poder Legislativo no sentido de querer discutir o tema. O problema é que não se discute. Eu fiz parte de uma comissão que era de juízes, procuradores e de ministros do STJ, que apresentou um projeto de lei há anos na Câmara dos Deputados nesse sentido de descriminalizar o consumo e com quantidades previstas para definir quem é usuário e traficante. E isso não foi discutido em nenhuma comissão até o momento. Então, eu acho legítimo que o poder Legislativo queria discutir a questão, mas é necessário que ele faça. Porque o que nós estamos vivendo hoje é uma situação calamitosa, em que usuários problemáticos de drogas não têm acesso ao sistema de saúde, porque isso é considerado crime. E algo precisa ser feito diante dessa situação de inconstitucionalidade. Se o poder Legislativo não discute o tema, vai caber ao poder Judiciário discutir no ponto constitucional, como aconteceu na Argentina, por exemplo.

Temos três ministros que ingressaram há poucos anos na Corte e um novo nome que vai ser indicado nos próximos meses. Como o senhor avalia a composição atual do Supremo e a relação da corte com os demais poderes?

É difícil saber qual será a postura dos três novos ministros nos próximos anos. Acredito que, ainda que o ministro Kassio Nunes Marques e o ministro André Mendonça tenham sido nomeados por um presidente conservador, é possível que no exercício da jurisdição constitucional eles tenham posições mais abertas. Particularmente, conheço menos o ministro Kassio, mas eu tenho participado de debates acadêmicos com o ministro André Mendonça e reconheço nele alguém com a formação humana muito grande e com ideias muito interessantes. Então, acredito que tem sido um ministro com um bom trato com a Constituição. Em relação ao Zanin, ainda não temos muitos parâmetros, mas eu posso dizer que, na experiência que tive com ele na advocacia, me pareceu uma pessoa com uma formação humanista muito consistente. Então, eu imagino que, embora você tenha essa diferença de origem entre todos eles, é um tribunal com toda capacidade de cumprir com a sua função.

Sobre o conflito entre os Poderes, eu acho é algo estrutural. É algo que não se resolve a curto prazo. Porque, em especial no Brasil, temos uma Constituição que trata de muitos temas, temos um parlamento que por uma série de razões tem uma dificuldade de tomada de decisões. E isso faz com que o poder Judiciário acabe sendo um protagonista político - não de agora, já vimos nas questões das drogas, do aborto, na demarcação de terras indígenas e na pandemia. Vemos que o poder Judiciário, em especial o Supremo, tem sido um protagonista político, não porque ele quer, mas porque a conjuntura leva o STF a adotar essa postura. Agora que temos um governo que preza por um equilíbrio institucional, essa tensão tende a diminuir. Mas ela não vai acabar, porque é estrutural. Então, vamos continuar tendo essas rusgas, e essa manifestação do presidente do Senado sobre a questão das drogas é um exemplo disso. As rusgas vão continuar acontecendo em maior ou menor grau, porque é um problema de funcionamento do nosso sistema, e em especial do sistema político. Acredito que a quantidade de partidos que temos no Brasil dificulta a tomada de decisões no Congresso Nacional e isso faz com que o Judiciário ocupe um terreno que originalmente não é dele.

Como você avalia a relação entre os ministros do STF. Acredita que a união entre os membros vai continuar nos próximos anos?

É difícil prever, mas acho que dois fatores contribuem para esse clima mais pacífico no Supremo. Acho que, primeiro, o STF esteve sob ataque e quando a instituição está sob ataque a tendência é de união entre os seus membros, como uma resposta corporativa. E o segundo ponto: esses dissentimentos mais intensos se deram em questões criminais, em especial no âmbito da operação Lava Jato. Então, eu acho que o fim da operação Lava Jato e as restrições aos casos de prerrogativa de foro, ou seja, a restrição de casos criminais do Supremo, tende a amenizar um pouco essas dissidências. A impressão que eu tenho é que - e não vou dizer união - talvez o STF passe por um distensionamento muito maior.

Quais são os julgamentos que o senhor vê como os mais importantes que devem entrar em pauta no STF nos próximos meses?

Acho que tem o assunto que já começou a ser julgado, como o juiz de garantias, que é bastante relevante. Tem também os casos relacionados aos atos antidemocráticos. E tem as questões referentes à demarcação de terras indígenas, que tem trazido uma polarização grande. Acredito que serão esses temas que vão chamar atenção. Mas como estamos em um período de transição, com o ministro Barroso eleito para presidência e vai assumir em breve, é um pouco interessante ver quais são os critérios que ele vai adotar para construir a pauta de julgamento. Então, depois que ele assumir teremos mais clareza do que vai estar na pauta e o que vai chamar atenção.

Nomes como Flávio Dino, Bruno Dantas e Jorge Messias são apontados como favoritos à nova vaga do STF. Como você avalia esses nomes? E existe também a possibilidade do presidente Lula indicar uma mulher negra. Qual seria a importância dessa escolha para o tribunal?

Primeiro, eu acho legítimo que se discuta a ampliação do número de mulheres e de negros e negras não só Supremo, mas no Judiciário como um tudo. Acho muito importante que essa discussão seja feita e que isso seja um critério para ser observado em todo o poder Judiciário. Mas a decisão é pessoal do presidente da República. E esses nomes que você citou, e eu conheço todos razoavelmente bem, acho que são excelentes. Todos têm notável saber jurídico, como a Constituição exige, todos têm reputação ilibada e todos estão em encargos públicos, e demonstram aptidão para lidar com a coisa pública. Então, eu acho que qualquer um deles seria um ganho para o Supremo Tribunal Federal, falando especificamente desses três nomes que você mencionou. Eles enriqueceriam o funcionamento da Corte, assim como o Zanin vai levar toda essa experiência dele na advocacia.

Você vê que o presidente Lula mudou os critérios para escolher um ministro do Supremo em relação aos seus primeiros mandatos?

Eu acho que muito mais do que o Lula ter mudado, o Supremo mudou. O STF hoje tem um protagonismo muito maior e trata de temas políticos com muito mais frequência. Então é natural que o chefe de governo de Estado olhe com mais atenção para esse tribunal. Eu acho que talvez no passado o Supremo Tribunal Federal tivesse uma natureza muito mais jurídica, então o critério para nomeação era diferente. Como agora ele virou um ator político com o protagonismo e inserção muito maior, é natural que o chefe de um poder político, como é o poder Executivo, olhe com muito mais cuidado com e atenção esse tribunal e procure pessoas que tenham uma afinidade política com ele para compor, como acontece nos Estados Unidos e em outros países. Quando se fala do Supremo Tribunal Federal, você está falando de um tribunal que vai interpretar a Constituição, que é um documento. Então, é natural que você busque indicar alguém que tenha alguma afinidade política, não partidária, mas política, que pense ideologicamente de uma forma parecida. E é isso que ele tem feito nessa última nomeação e imagino que vá fazer nas próximas.

Acompanhe tudo sobre:MaconhaDrogas

Mais lidas

exame no whatsapp

Receba as noticias da Exame no seu WhatsApp

Inscreva-se

Mais de Brasil

Mais na Exame