Revista Exame

Eu sou vira-lata, com muito orgulho e muito amor

Em novo livro, o economista Eduardo Giannetti faz uma releitura da ideia do “complexo de vira-lata” do brasileiro

Eduardo Giannetti: "As intenções dele são boas, mas temo que não saiba onde está se metendo", diz sobre Paulo Guedes (Germano Lüders/Exame)

Eduardo Giannetti: "As intenções dele são boas, mas temo que não saiba onde está se metendo", diz sobre Paulo Guedes (Germano Lüders/Exame)

DR

Da Redação

Publicado em 7 de junho de 2018 às 05h00.

Última atualização em 7 de junho de 2018 às 05h00.

Quando o escritor Nelson Rodrigues publicou uma crônica esportiva em 1958 com o título “Complexo de vira-latas”, ele usou a expressão para descrever a falta de confiança dos jogadores da seleção brasileira antes da estreia na Copa do Mundo daquele ano. Mas a ideia do complexo de vira-lata descrevia tão bem a baixa autoestima crônica do país que a expressão foi adotada como sinônimo de um sentimento de inferioridade (e deslumbramento) diante de tudo que vem dos países ricos. Exatamente seis décadas depois, o economista e filósofo Eduardo Giannetti faz uma reflexão sobre o que é exatamente ser vira-lata. No livro O Elogio do Vira-Lata e Outros -Ensaios, que acaba de ser publicado pela editora Companhia das Letras, Giannetti argumenta que, na verdade, o vira-lata simboliza a miscigenação genética e cultural, justamente o que o Brasil teria de melhor. Para ele, é preciso ter orgulho de ser vira-lata e valorizar essa condição brasileira — uma mensagem de esperança diante do pessimismo que tomou conta do país com as denúncias de corrupção, a crise econômica e a recente greve dos caminhoneiros. Giannetti defende que a mistura de culturas na formação do Brasil está na origem de um modo de vida mais espontâneo, que valoriza as relações humanas. É algo que, segundo ele, os países desenvolvidos perderam ao longo do tempo. “O verdadeiro complexo de vira-lata é a ideia de que há algo errado em ser vira-lata”, afirma o economista. Atualmente um dos conselheiros da pré-candidata à Presidência da República Marina Silva (Rede), Giannetti deu a entrevista a seguir.

Em seu novo livro, o senhor defende uma revisão da ideia do complexo de vira-lata do brasileiro. Por quê?

O termo “complexo de vira-lata” só foi nomeado nos anos 50 por Nelson Rodrigues. Mas o fato não coincide com sua nomeação. É um sentimento que acompanha a experiência de ser brasileiro desde que o Brasil é Brasil. Agora, o que sempre me incomodou foi o nome de batismo que o Nelson escolheu para essa experiência de inferioridade brasileira. Por que eleger o vira-lata para isso? Em primeiríssimo lugar: será que é melhor ser o poodle da madame ou o dobermann da polícia secreta do que ser o vira-lata? Sou muito mais o vira-lata. Eu prefiro ser o vira-lata. E, depois, é o seguinte: o que é o vira-lata?

E o que é?

O vira-lata é o mestiço. Aquele que não é de raça pura. É exatamente o que nós somos. E é belo. Ainda bem que nós somos assim. Não apenas na genética, mas principalmente na cultura, no modo de ser e nas expressões simbólicas de nossa existência. Na música, na dança, na culinária, na literatura. Os três gênios universais brasileiros são vira-latas: Aleijadinho, Machado de Assis e Pelé. Eles são o que de melhor o Brasil produziu como expressão de sua universalidade. Então, sempre me incomodava muito o uso do vira-lata como sinônimo daquilo que temos de negar para ser merecedores de respeito e de autoestima. O elogio do vira-lata inverte o nome que Nelson Rodrigues escolheu para batizar esse sentimento. O verdadeiro complexo de vira-lata é a ideia de que há algo errado em ser vira-lata.

Como quebrar essa concepção do complexo de vira-lata?

Com a tranquilidade de ser o que se é. Nós somos vira-latas. Vamos assumir isso e vamos valorizar isso, porque não é uma coisa condenável ou a ser escondida. É o que temos de melhor. Fiquei muito chocado, ao estudar esse assunto, de ver que um estadista e diplomata da estatura do barão do Rio Branco [1845-1912] se envergonhava da condição mestiça brasileira e retirou do Itamaraty todas as pessoas de pele escura. Chegou a esse ponto. Havia uma ideologia de que a mistura de raças era uma degeneração. E o incrível é que muitos intelectuais brasileiros aceitaram esse tipo de racismo.

Além do ensaio sobre o vira-lata, seu livro reúne artigos sobre o Brasil, alguns publicados nos anos 90. Como foi revisitar esses textos e ver que muitos argumentos ainda se aplicam hoje?

Eu selecionei 25 ensaios que ainda têm alguma coisa a dizer de relevante no presente. Mas o livro abarca um período de 30 anos. Ao fazer essa recuperação, avaliei um pouco minha trajetória desde que voltei de um período longo, de sete anos, na Inglaterra, numa torre de marfim, que é a Universidade de Cambridge. Quando voltei para o Brasil, era um acadêmico puro. Estava engajado na tarefa de me tornar viável profissionalmente na academia. E tinha uma visão de que o Brasil precisava se modernizar. A modernização do Brasil, para mim, era a grande aspiração, principalmente na economia. Com o tempo, eu fui mudando nas duas coisas. Abandonei aos poucos minha inserção puramente acadêmica e passei a me engajar no debate público. E também fui me interessando pela possibilidade de o Brasil se tornar uma alternativa ao modelo civilizatório, o modelo ocidental na vertente anglo-americana, que está vivendo uma crise profunda. Acho que o livro reflete um pouco o arco dessa trajetória.

O que o fez mudar de visão em relação ao desenvolvimento do Brasil?

Não houve uma grande epifania, um momento de iluminação. Mas fui me dando conta de que o Brasil é portador de coisas muito belas e valiosas, das quais nós não deveríamos abrir mão no afã de nos tornarmos um país de Primeiro Mundo.

Por exemplo?

Por exemplo, a espontaneidade, a vitalidade das relações pessoais, certa disposição para desfrutar o momento. O dom da vida como celebração imotivada, que é uma característica brasileira. E o modo peculia-ríssimo e extraordinário de como diferentes matrizes culturais se fundiram na cultura brasileira. A matriz ameríndia, a matriz africana e a matriz da imigração europeia — portuguesa e de outras nacionalida-des. Acho que isso dá ao Brasil uma singularidade, algo que precisamos aprender a cultivar, preservar e engrandecer. É daí que pode surgir nossa originalidade. Não se trata de negar o que o Ocidente tem de espetacular no campo da ciência, da tecnologia, das instituições. Mas devemos ter o cuidado de não abrir mão daquilo que nós também temos, que nos diferencia.

O que mais nos diferencia?

É o modo como se fundiram aqui elementos modernos e pré-modernos que dão à textura da vida no Brasil uma característica que os países altamente desenvolvidos perderam. É o que o Rousseau [Jean-Jacques Rousseau, filósofo suíço] chamava de “o doce sentimento da existência”. Uma vida espontânea, menos polida por padrões rigorosos de lógica, de calculismo, de competição, de busca de posição relativa, de cálculo permanente.

Quadro Antropofagia, de Tarsila do Amaral: para Giannetti, o Brasil precisa valorizar sua condição de mestiço | Timothy A. Clary/AFP Photo

Mas seguir o modelo ocidental significa necessariamente abrir mão dessas características da cultura brasileira?

Vejo dois campos de pensamento em relação ao futuro do Brasil. Um eu chamo de mimético. Dentro dele está a maioria dos economistas, que acreditam que, se tudo der certo no Brasil, nós viraremos um país não muito diferente do que são os países ricos de hoje. O Brasil viraria uma espécie de estado do sul dos Estados Unidos, ou um país do sul da Europa. O que nós temos de fazer é imitar, e imitar direito. É reproduzir aqui o que eles já fizeram e o que, nessa visão, deu certo. O outro campo de pensamento, chamo de profético. Nessa linha de pensamento, o Brasil não é um país que imitou mal os países ricos. Nós não somos uma cópia canhestra de um modelo de civilização que nunca alcançamos. Somos portadores de uma promessa de originalidade, diante desse modelo que enfrenta hoje enormes problemas. Os dois lados — o mimético e o profético —, quando vão para extremos radicais, têm problemas. Mas os dois têm muito a aprender, e precisam conversar melhor entre eles. De toda maneira, eu hoje me posiciono mais para o lado dos que acreditam na possibilidade de um modelo de civilização brasileiro.

Aterro sanitário em Nova York: o modelo econômico ocidental ameaça o equilíbrio ambiental | Brendan McDermid/Reuters

Não é uma visão muito otimista?

Não é uma questão de otimismo ou pessimismo. É uma questão de valores. O que torna uma vida humana e uma coletividade eticamente merecedoras de respeito e admiração? A métrica que nos é oferecida pelo mundo ocidental é extremamente economicista. O sucesso é medido em renda per capita. Em acesso a bens de consumo. E isso deflagrou uma corrida consumista que, entre outras coisas, coloca em risco o equilíbrio ambiental do planeta. Não me parece um caminho eticamente válido e, além disso, é perigoso do ponto de vista ecológico. O Brasil tem tudo para não entrar nisso. Tem tudo para mostrar um modo de existência que não seja subordinado ao primado dos valores econômicos nas aspirações e na imaginação humana.

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Diante da crise que passamos, muita gente tende a dizer que o Brasil nunca vai ser um país civilizado.

Primeiro eu me pergunto: o que é que se entende por civilização? A Alemanha nazista era civilização? O Donald Trump é civilização? A gente se esquece, mas os Estados Unidos vivem atualmente uma crise dos opioi-des, que matam 40 000 pessoas por ano. Por que isso está acontecendo? Qual é a doença psíquica que leva uma sociedade a isso? No fundo, é muito na linha do que Freud dizia sobre o mal-estar na civilização. A conquista dos confortos, da segurança e da riqueza da civilização será paga a um preço elevado. Está sendo paga com a perda de uma vitalidade, de uma espontaneidade, de uma integridade psíquica, que vão sendo solapadas, vão sendo minadas. A utopia brasileira é a civilização sem o mal-estar. O pesadelo brasileiro existe também: é o mal-estar sem a civilização. 

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