Revista Exame

O socialismo financeiro de Jack Bogle ameaça o capitalismo?

Jack Bogle, morto agora, aos 89 anos, criou um setor de investimentos que movimenta trilhões de dólares — e pode ameaçar o sistema capitalista

Jack Bogle em seu escritório, na Pensilvânia: em vez de ficar bilionário, ele criou uma empresa cujos donos são os próprios investidores | Ryan Collerd/The New York Times/Fotoarena /

Jack Bogle em seu escritório, na Pensilvânia: em vez de ficar bilionário, ele criou uma empresa cujos donos são os próprios investidores | Ryan Collerd/The New York Times/Fotoarena /

DC

David Cohen

Publicado em 31 de janeiro de 2019 às 05h36.

Última atualização em 31 de janeiro de 2019 às 05h36.

Aposte na mediocridade. Essa era a receita de um dos maiores investidores do século passado, o americano John (conhecido como Jack) Bogle, morto na quarta-feira, 16 de janeiro, aos 89 anos. Mediocridade no bom sentido, claro, de média; não no sentido pejorativo, de ruim. Essa receita revolucionou o mercado financeiro e gerou bilhões de dólares para os meros mortais que colocam suas economias em fundos de renda variável. Bogle tornou-se um dos maiores inovadores das finanças, tendo praticamente criado um setor inteiro do mercado, os fundos de índice, com ativos hoje na ordem dos trilhões de dólares. Só a companhia que ele criou, o Vanguard Group, gera 4,9 trilhões de dólares — perto de duas vezes e meia o PIB do Brasil — para cerca de 20 milhões de clientes em todo o mundo. Sua invenção facilitou a entrada de milhões de pessoas no mercado financeiro — mas há quem diga que ela é, para o sistema capitalista, um perigo pior do que o marxismo.

Estudante brilhante de origem humilde, Bogle começou a se interessar pelo mercado financeiro ao ingressar na Universidade Princeton. Lá pelas tantas, concluiu que os custos de administração eram um dos principais fatores para o resultado dos investimentos. “Em finanças, você ganha pelo que não paga”, afirmou. Mais: em 1976, numa época em que se festejavam grandes estrelas dos bancos de investimento, ele apontou que a busca de resultados acima da média do mercado era uma quimera.

Não é que ninguém se dê melhor do que a média. Mas quase ninguém se dá melhor do que a média consistentemente. Sendo assim, pagar taxas altas de administração a alguém que promete “bater o mercado” equivale, na maioria das vezes, a jogar dinheiro fora. A inconveniente verdade do mercado financeiro é que a maioria dos gestores perde dinheiro (ou ganha menos do que a média). Estudos mostram que o mundo das finanças parece seguir a regra de Pareto (80% do resultado provém de 20% do esforço): a cada ano, cerca de 80% dos gestores apresentam lucros abaixo da média do mercado. E não é o caso de apenas identificar os 20% melhores. As estrelas de um ano, em geral, não sustentam o desempenho no ano seguinte. Para o investidor comum, essa volatilidade é ainda mais perniciosa, porque ele tende a ser atraído pelas estrelas quando elas estão perto de seu pico de eficiência. E acaba acompanhando sua queda.

Como afirma o colunista de finanças Matt Levine, da agência de notícias Bloomberg, “escolher as ações certas requer habilidade excepcional e um infindável trabalho duro, além de um bocado de sorte”. Há muitas companhias em que investir, e o número de informações sobre elas é assombroso. Mesmo se você conseguir compreender bem uma empresa e suas perspectivas, ainda precisa avaliar até que ponto seu potencial sucesso já está precificado no valor atual das ações. São muitas incógnitas numa equação só. Por isso, a solução só aparece por tentativa e erro. Muito erro. Quando um fundo consegue resultados extraordinários ao longo do tempo, você pode estar diante de um gênio como Warren Buffett. Ou de um farsante como Bernie Madoff.

A solução de Bogle foi quase óbvia. Em vez de tentar adivinhar quais ações vão subir mais, deve-se comprar todas. Ou melhor, comprar uma carteira que mimetize algum índice representativo do mercado. No caso dele, o escolhido foi o S&P 500, que acompanha as 500 maiores companhias listadas nas bolsas americanas. “Não fique procurando a agulha no palheiro”, escreveu Bogle em um de seus livros, em 2007. “Compre o palheiro todo.”

Como a maioria das ideias revolucionárias, a sugestão foi ridicularizada. Chamavam-na de “a loucura de Bogle”. Até o dia em que ele morreu, a “loucura” de investir no índice S&P 500 durante essas quatro décadas deu um retorno de 8.559%. Esse retorno excepcional é resultado de uma estratégia de investimento passiva. Em resumo, a descoberta de Bogle é que as taxas cobradas pelas corretoras, pelos gestores de fundos e pelos conselheiros desidratam os lucros de milhões de trabalhadores que querem poupar para a aposentadoria. Sua solução foi reduzir drasticamente as taxas e entregar o dinheiro aos poupadores. “Investidores inteligentes vão usar os fundos de índice para construir um portfólio diversificado de ações e títulos, e vão se manter no curso”, escreveu.

Fiel a suas palavras, Bogle estruturou seu Vanguard Group como uma empresa dona de seus próprios fundos mútuos, cujos acionistas, por sua vez, são os investidores. Dessa forma, garantiu que as taxas permanecessem baixas. Por outro lado, deixou passar a oportunidade de ficar bilionário. Sua fortuna pessoal é estimada em 80 milhões de dólares, irrisória para os fundadores de grandes empresas de investimentos (e o Vanguard é uma das maiores), que ficam na casa dos bilhões de dólares. Bogle defendeu sua opção em um livro lançado em 2008, Enough: True Measures of Money, Business, and Life (O Suficiente: as Verdadeiras Medidas do Dinheiro, dos Negócios e da Vida, em tradução não oficial), em que critica a acumulação incessante de riquezas. Sua perspectiva de vida foi provavelmente afetada pelo permanente risco de morte: ele teve seis ataques cardíacos, o primeiro aos 31 anos de idade. Aos 66, sofreu um transplante de coração. Volta e meia era internado porque o corpo rejeitava o órgão.

Não foi seu desapego à riqueza (ou à riqueza exagerada, porque 80 milhões de dólares são uma quantia nem um pouco desprezível) que o torna, aos olhos de alguns críticos, uma ameaça ao capitalismo. É o fato de que sua invenção fez tanto sucesso que pode abalar o sistema. O argumento é o seguinte: a concorrência é um dos pilares da economia de mercado, e as empresas são geridas de acordo com os interesses dos acionistas. Ora, se os acionistas detêm parcelas do mercado inteiro, não têm interesse particular nessa ou naquela empresa. Isso configura monopólio: os mesmos acionistas controlando todas as empresas de vários setores.

“Uma economia supostamente capitalista em que o único investimento é passivo é pior do que uma economia de planejamento central ou uma economia com gestão de capital ativa”, escreveu uma equipe da firma de gestão de capital Sanford C. Bernstein, em um artigo que descrevia o investimento passivo como “uma estrada silenciosa rumo à servidão” e uma ameaça “pior do que o marxismo”.

O FIM DO CAPITALISMO?

Esse argumento só faria sentido se os fundos passivos crescessem demais — o que tem acontecido. Primeiro, apenas alguns jornalistas especializados se converteram às ideias de Bogle; depois, alguns acadêmicos, como o prêmio Nobel de Economia William Sharpe; e muitos, muitos clientes. Na década de 90, surgiu a indústria dos ETFs (exchange traded funds), fundos que espelham o desempenho de algum índice. Eles hoje representam cerca de um terço de todo o dinheiro investido por fundos nos Estados Unidos. São quase 2 000 fundos, de umas 150 companhias, gerindo 3,5 trilhões de dólares. O Brasil, com uma regulação mais dura e um mercado mais restrito, ainda tem relativamente poucos ETFs. São 15, seguindo índices como o Ibovespa, o mercado imobiliário e empresas de consumo, com investimentos de 4 bilhões de reais.

Mesmo com todo esse sucesso, não há evidência de que as empresas tenham arrefecido sua gana pela competição. Em parte, possivelmente, porque as gestões profissionais criam uma cultura até certo ponto isolada dos acionistas (o que é, talvez, outro problema). A lógica, porém, é cristalina: se um fundo de pensão controla as companhias aéreas A, B e C, não tem nenhum interesse em que elas entrem numa guerra de preços. E isso vai contra o interesse dos consumidores.

Bogle nas telas da Bolsa de Nova York um dia depois de sua morte: homenagem ao líder dos fundos de investimentos passivos | Brendan McDermid/Reuters

Os legisladores da União Europeia, com quem sempre se pode contar para propor uma regulamentação, já estão de olho na indústria dos investimentos passivos. Numa sessão neste mês, o Parlamento Europeu alertou que níveis maiores de propriedade comum resultam em “custo social oculto e reduzida proteção à concorrência”. Uma comissão parlamentar já investiga se o investimento passivo prejudica a competição.

O próprio Bogle havia dito, alguns anos atrás, que se os fundos de índice se tornassem dominantes poderiam distorcer o funcionamento do mercado. Tem acontecido mais do que isso: o investimento passivo foi, de certa forma, engolido pelo sistema. Como? Os ETFs seguem índices, mas são eles próprios papéis, que podem ser negociados em bolsa. Em vez de seguir a recomendação básica de Bogle, de manter a carteira estável através dos tempos (curiosamente, a mesma estratégia do megainvestidor ativo Warren Buffett), os ETFs permitem especulação: entrar e sair conforme a percepção dos movimentos do mercado. Os maiores fundos de ETFs americanos têm rotatividade acima de 100% (a troca total da carteira) ao mês.

Quer dizer: Bogle liderou uma revolução, demonstrando que a ambição de superar a média costuma levar a resultados piores, pela ação das taxas de corretagem e administração, dos impostos e da incerteza quanto ao desempenho. Se as pes-soas aprenderam, isso é outra história.

Acompanhe tudo sobre:CapitalismoFundos de investimentoMercado financeiro

Mais de Revista Exame

Negócios em Expansão 2024: 62 empresas que cresceram na categoria 2 a 5 milhões; veja ranking

Sucesso de bilheteria: como a A24 se tornou a produtora queridinha de Hollywood

TikTok, Taylor Swift, poder feminino: conheça Jody Gerson, CEO da Universal Music Publishing Group

Do vôlei para o mundo dos negócios: a sacada do ex-atleta Tande para o empreendedorismo

Mais na Exame