Revista Exame

O melhor é a prevenção

Tragédias como a do Rio de Janeiro podem ser evitadas com planejamento. Eis aqui três exemplos — todos no Brasil

Alagados, na periferia de Salvador, na Bahia: um projeto de reurbanização bem-sucedido tirou 24 000 famílias de moradias precárias e as levou para conjuntos habitacionais dotados de infraestrutura (esq.). Na década de 90 (dir.), dezenas de milhares de pessoas viviam em palafitas na área (Reprodução)

Alagados, na periferia de Salvador, na Bahia: um projeto de reurbanização bem-sucedido tirou 24 000 famílias de moradias precárias e as levou para conjuntos habitacionais dotados de infraestrutura (esq.). Na década de 90 (dir.), dezenas de milhares de pessoas viviam em palafitas na área (Reprodução)

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Da Redação

Publicado em 7 de julho de 2011 às 18h16.

Em 1986, o cantor e compositor Herbert Vianna, do grupo Paralamas do Sucesso, compôs uma música inspirada na miséria de três favelas: Trenchtown, em Kingston, capital da Jamaica, a da Maré, no Rio de Janeiro, e Alagados, em Salvador, na Bahia. Vianna havia abandonado o curso de arquitetura no último ano e quis fazer uma crítica à omissão do Estado nas áreas de periferia.

O destaque para Alagados, que deu título à canção, fazia sentido. Nenhuma outra favela retratava tão bem o caos que a falta de planejamento urbano provoca. Alagados começou a se formar na década de 40, com a ocupação de enseadas da Baía de Todos os Santos. Sob a vista grossa dos governos, a invasão avançou na água com palafitas equilibradas em paus, folhas de papelão, pneus, enfim, em qualquer coisa que sustentasse a estrutura.

Mesmo sem água, luz e esgoto e usando o lixo para fazer aterros, Alagados inchou. Em 1973, mais de 85 000 pessoas viviam nos barracos sobre a maré, e o governo decidiu removê-las. Após 11 anos, no entanto, o reassentamento mostrou-se infrutífero. Enquanto as palafitas eram derrubadas de um lado da baía, outras surgiam na margem oposta.

Sem condições de sustentar um imóvel regular, famílias já removidas vendiam a casa oferecida pelo governo e retornavam ao convívio com o mau cheiro e doenças como lepra e cólera. Como outras ocupações anárquicas nas regiões metropolitanas, Alagados parecia sem solução.

Mas não era. Um novo plano de reassentamento, iniciado em 1993, surtiu efeito e 24 000 famílias foram transferidas. As últimas 600 ainda faveladas devem mudar até 2013. As palafitas de Alagados estão perto de virar apenas uma citação na letra de um clássico do pop-rock nacional.

No momento em que o país ainda conta os mortos de mais uma tragédia — a das chuvas torrenciais que assolaram o estado do Rio de Janeiro —, o exemplo que vem de Salvador é uma lição. Estima-se que haja no Brasil 1,4 milhão de residências em áreas de risco e 10,5 milhões sem serviços básicos, como água encanada, coleta de esgotos e energia elétrica.

“A ocupação das cidades na América Latina deu-se sem nenhum planejamento, em áreas irregulares, muitas delas de risco, sem infraestrutura e serviços essenciais”, diz a mexicana Cecília Martinez, diretora da ONU Habitat, organismo internacional voltado para a área de habitação.

“Temos conhecimento técnico e dinheiro para mudar essa realidade, mas precisamos de vontade política e visão de futuro.” A urbanização de Alagados começou a dar certo com ações de desenvolvimento da economia nos locais para onde as famílias foram transferidas. A lista inclui a oferta de cursos de qualificação, creches para que as mulheres pudessem trabalhar e orientação para a profissionalização de pequenos negócios.

Cerca de 25% do valor da obra, que totalizou 450 milhões de reais, foi aplicado para criar condições de manter as famílias nas novas moradias. “O imóvel regular gera novos custos ao morador”, diz o sociólogo italiano Francesco di Villarosa, consultor do Banco Mundial. “Muitas pessoas, quando percebem que a conta subiu, preferem vender a casa, embolsar o dinheiro e ocupar outra área.”

O programa Minha Casa, Minha Vida já sofre com esse tipo de problema. No seu primeiro conjunto habitacional, entregue há seis meses em Feira de Santana, na Bahia, a inadimplência está acima da média, e vários apartamentos foram revendidos porque os beneficiados não tinham como mantê-los.

O segundo acerto em Alagados foi a adoção de uma gestão compartilhada. Dela participam o governo baiano, a ­Avsi, ONG ligada ao governo da Itália, a Aliança das Cidades, organismo internacional voltado para a extinção de favelas, o Banco Mundial, entidades comunitárias e, mais recentemente, o Ministério das Cidades e a Caixa Econômica Federal.

O diálogo torna o processo mais lento. Se o prazo final de 2013 for cumprido, terão sido 20 anos de trabalho. No entanto, a parceria eleva a garantia de que o projeto será concluído. “Como há compromissos multilaterais e financiamento internacional, o programa resiste às trocas de governos”, diz Fabrizio Pellicelli, diretor da Avsi no Brasil. O projeto agora será levado para favelas de Recife, em Pernambuco.


O efeito do projeto na vida das pessoas é um capítulo significativo. Em 2005, Zenilda Santos de Jesus, o marido e os dois filhos receberam uma casa de quarto, sala, banheiro e quintal, num conjunto habitacional em terra firme, a poucos quilômetros de onde moravam, em Alagados. A renda familiar mensal era de miseráveis 150 reais.

Não muito longe da nova casa, inaugurou-se uma creche, que ofereceu 23 vagas a moradores. Zenilda passou na seleção, o que incentivou o marido a largar os bicos como estofador e conseguir um emprego com carteira assinada. O casal recebe hoje dois salários mínimos, o limiar de renda da classe C. A casa da família está ganhando mais um quarto para os meninos. Sacos de cimento dividem espaço na sala com a geladeira dúplex, o videogame e o computador.

Futuro planejado

Consertar as grandes cidades brasileiras não será uma tarefa simples nem barata. O programa Morar Carioca, lançado no ano passado com a ambição de reurbanizar as favelas do Rio de Janeiro nos próximos dez anos e beneficiar mais de 1 milhão de pessoas, tem investimento previsto de 8 bilhões de reais. Se adotarem a prevenção como estratégia, as médias e pequenas cidades, candidatas a ser grandes no futuro, podem obter resultados com menos esforços e recursos.

Um caminho é a adoção de plano diretor com regras e limites para a expansão urbana. Gramado, na Serra Gaúcha, tem plano diretor desde 1975. “Já naquela época a administração da cidade ficou preocupada com a ocupação das encostas e decidiu limitar a construção de moradias nas áreas mais elevadas”, diz Juliana Cardoso, secretária de Planejamento e Urbanismo de Gramado.

No ano 2000, a cidade começou a atrair um número crescente de moradores que se instalavam nos morros. Temendo perder o controle e também preocupada em preservar a característica da arquitetura em estilo alemão, que alimenta o turismo, em 2006 a prefeitura tornou o plano mais restritivo.

Adotou como política comprar áreas de encostas de particulares para preservar as matas nativas que dão sustentação ao solo. Até o típico plantio de hortênsias ganhou novo sentido. São vistas em trechos íngremes para proteger áreas suscetíveis a deslizamento. 

Com um bom plano diretor, cidades novas podem orientar seu crescimento desde o início. Um exemplo vem de Lucas do Rio Verde, em Mato Grosso. O município, emancipado há 23 anos, brotou amparado no agronegócio. É um dos maiores produtores de soja e milho do país. Para diversificar a economia, Lucas do Rio Verde começou a atrair indústrias.

Em 2006, recebeu uma unidade da Sadia. “As indústrias trariam migrantes e foi necessário organizar o crescimento”, diz Edu Pascoski, secretário municipal de Agricultura. O plano diretor, editado em 2007, foi feito para uma cidade de 200 000 habitantes — cinco vezes a população de hoje. Ele regula a construção e estabelece limites de localização para estabelecimentos comerciais, industriais, agrícolas e moradias.

Proíbe desmatar até a 100 metros das margens dos rios do município. “Se alguém construir irregularmente, pegamos um trator e derrubamos”, diz Pascoski. “A lei foi feita para ser cumprida.” É um bom princípio para tratar melhor as questões da urbanização — e, espera-se, evitar tragédias envolvendo os brasileiros de amanhã.

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