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Como a China está virando a principal exportadora de veículos do mundo?

À medida que as marcas de automóveis do país conquistam cada vez mais clientes estrangeiros, o país está prestes a se tornar o segundo maior exportador mundial de veículos de passageiros

Polestar 2, veículo elétrico da chinesa Geely Holding: dominância asiática. (HECTOR RETAMAL/AFP/Getty Images)

Polestar 2, veículo elétrico da chinesa Geely Holding: dominância asiática. (HECTOR RETAMAL/AFP/Getty Images)

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Agência de notícias

Publicado em 16 de fevereiro de 2023 às 06h00.

“Ele chama muito a atenção, em parte devido à cor, em parte porque as pessoas não sabem o que é”, diz Tatt, que esperou quatro meses para que o veículo fosse enviado de Luqiao, no leste da China. “Tinha algumas preocupações de que a qualidade de fabricação pudesse não ser a melhor”, diz ele. “Após o teste de direção, todas as outras dúvidas foram eliminadas.”

À medida que as marcas de automóveis da China conquistam cada vez mais clientes estrangeiros como Tatt, o país está prestes a se tornar o segundo maior exportador mundial de veículos de passageiros, um marco que pode remodelar a indústria automobilística global e desencadear novas tensões com parceiros comerciais e rivais.

As vendas internacionais de carros fabricados na China triplicaram desde 2020, atingindo mais de 2,5 milhões no ano passado, segundo dados da Associação de Carros de Passageiros da China. Isso é muito pouco (cerca de 60.000 unidades) atrás da Alemanha, cujas exportações caíram nos últimos anos. Os números da China, atrás do Japão, mas à frente dos Estados Unidos e da Coreia do Sul, anunciam o surgimento de um formidável rival para os estabelecidos gigantes automobilísticos.

As marcas chinesas são agora líderes de mercado no Oriente Médio e na América Latina. Na Europa, os veículos vendidos fabricados na China são principalmente modelos elétricos da Tesla e antigas marcas europeias de propriedade chinesa, como Volvo e MG, e marcas europeias, como Dacia Spring ou BMW iX3, produzidas exclusivamente na China. Uma série de marcas locais, como BYD e Nio, também está em ascensão, com ambições de dominar o mundo dos veículos de nova energia. Apoiada pela ­Berkshire Hathaway Inc., de Warren
Buffett, a BYD já está encantando os compradores de veículos elétricos em países desenvolvidos, como a Austrália.

É apenas o começo, de acordo com Xu Haidong, vice-engenheiro-chefe da Associação Chinesa de Fabricantes de Automóveis, apoiada pelo governo chinês. A meta é vender 8 milhões de veículos de passageiros no exterior até 2030 — mais do que o dobro das vendas atuais do Japão, diz ele.

(Arte/Exame)

A tendência ressalta que a China deixou de ser a “fábrica mundial” de aparelhos eletrônicos, eletrodomésticos e brinquedos de Natal de baixo custo. Ao mudarem para produtos mais complexos e sofisticados para mercados competitivos e altamente regulamentados, as empresas chinesas estão escalando a cadeia de valor da produção — um fator-chave do crescimento que transformou a outrora batalhadora economia comunista no rolo compressor quase capitalista de 18 trilhões de dólares de hoje. De fato, o Índice de Complexidade Econômica organizado pelo Laboratório de Crescimento da Universidade Harvard, que analisa a gama de produtos que um país exporta, classifica a China em 17o lugar no mundo, um aumento em relação ao 24o lugar há uma década.

“Temos de mantê-los na tela do radar, sem contar os suspeitos de sempre”, disse o CEO do Mercedes-Benz Group AG, Ola Källenius, durante o Paris Motor Show em outubro. “A intensidade competitiva está aumentando. É a época mais divertida para trabalhar no setor automotivo desde 1886” — o ano em que Carl Benz, o pai do automóvel, lançou o primeiro carro movido a gasolina — “mas também é a época mais incerta”.

O aumento nas exportações de carros passou despercebido nos Estados Unidos, em parte porque aconteceu durante a pandemia de covid-19 e em parte porque as montadoras chinesas estão focadas principalmente na Europa, na Ásia e na América Latina. A General Motors vendeu cerca de 40.000 de seus SUVs compactos Buick Envision, fabricados na China, nos Estados Unidos em 2021, mas as tensões políticas, a prevalência das tarifas da era Trump e os subsídios destinados a aumentar a produção doméstica de veículos elétricos diminuíram o apelo desse mercado.

Linha de produção da Geely Holding em Ningbo, na China: tecnologia para frear o impacto das big techs no mercado de automóveis (Gilles Sabrie/Bloomberg/Getty Images)

A entrada na Europa havia ­muito era uma meta para as empresas chinesas, que começaram a expor em salões de automóveis no continente no início dos anos 2000. Uma série de malsucedidos testes de segurança por volta de 2007 frustrou essas esperanças. “Francamente, pensei que isso seria para sempre”, diz Jochen Siebert, da JSC Automotive, empresa de consultoria automotiva em Singapura.

Mas, graças ao aumento da automação e à resultante padronização — o Grupo Goldman Sachs diz que as novas fábricas de automóveis na China têm os níveis mais altos de uso de robôs do mundo —, essas preocupações agora já não existem mais. À medida que a qualidade melhorou na última década, os carros chineses começaram a se sair bem nos testes europeus de segurança. As rígidas restrições da China à poluição do ar também ajudaram a maioria de seus carros a atender aos padrões europeus de emissões.

“Para enfrentar os chineses, teremos de ter comparáveis estruturas de custo”, afirmou o CEO da Stellantis, Carlos Tavares, em 19 de dezembro, falando a repórteres em uma fábrica de trens de força em Tremery, no norte da França. “Como alternativa, a Europa terá de decidir fechar as suas fronteiras, pelo menos parcialmente, aos rivais chineses. Se a Europa não quiser se colocar nessa posição, precisaremos trabalhar mais na competitividade do que já fazemos.”

Estacionamento da fábrica da Tesla nos Estados Unidos: a China pode estar na dianteira, mas a empresa de Elon Musk é a mais valorizada (Josh Edelson/AFP/Getty Images)

Em um ano divisor de águas para os carros fabricados na China, as exportações para a União Europeia aumentaram 156% em 2021, para 435.000 unidades, segundo a Eurostat. Mas o rápido aumento nas remessas de VEs do país corre o risco de provocar uma reação política na União Europeia, de acordo com Agatha Kratz, diretora do Grupo Rhodium. “Parte disso é apenas porque as empresas chinesas estão melhorando, mas parte disso é excesso de capacidade na China”, diz ela. “Isso vai ser um ponto de atrito. Isso poderia gerar uma reação muito forte na Europa em termos de proteções comerciais.”

O Polestar, carro de preço premium que Tatt comprou, é uma exceção: a China tende a exportar carros relativamente baratos. Cerca de 13.700 dólares, o preço médio de um veículo de passageiros fabricado na China e exportado foi cerca de um terço do valor do carro alemão em 2021 e cerca de 30% menor do que um japonês, de acordo com dados fornecidos pela Comtrade, da ONU. Isso significa que é mais provável que os carros chineses representem uma ameaça para os modelos japoneses e sul-coreanos mais baratos do que para as marcas alemãs.

As autoridades em Pequim não estão muito preocupadas, pelo menos por enquanto. “Está provado que a força da indústria automobilística de um país será finalmente testada pelo mercado internacional”, diz Gao Yang, diretor de investimentos estrangeiros do Ministério do Comércio. Ele acrescentou que o governo incentivará as montadoras chinesas a adquirir empresas estrangeiras.

Tendo demonstrado que é um confiável centro de fabricação para as principais empresas do setor, a China lidera o ataque na próxima fronteira: veículos elétricos. As montadoras locais acharam a plataforma elétrica relativamente fácil de dominar em comparação ao complexo motor de combustão interna.

“A mudança para a bateria significa que o motor não é mais um diferencial”, diz Alexander Klose, vice-presidente executivo de operações no exterior da Aiways Automobiles, fabricante de veículos elétricos puramente chinesa, que já vendeu vários milhares de veículos na Europa. Tecnologicamente, “criou-se um nivelado campo de jogo”, diz ele.

Um esforço global para reduzir as emissões de carbono e salvar o planeta levou Pequim a encorajar fabricantes e compradores de veículos elétricos com subsídios, enquanto uma robusta cadeia local de suprimentos tornou mais barato fabricar um veículo elétrico na China do que em qualquer outro lugar. A fábrica da Tesla em Xangai produziu quase 711.000 carros no ano passado e respondeu por 52% da produção mundial da empresa. As medidas também geraram dezenas de fabricantes nacionais, como a Aiways. Muitos mal conseguiram, mas BYD, Nio e XPeng estão entre os destaques com potencial para brilhar no cenário global.

(Arte/Exame)

A BYD, que também fabrica suas próprias baterias e chips, é a maior fabricante de veículos elétricos no país. Tem ambições de se tornar a Toyota dos EVs para o maior comprador mundial, e está apostando que suas próprias células e semicondutores a ajudarão a atingir esse objetivo.

A maior concorrente da Tesla provavelmente será uma empresa chinesa, disse o CEO, Elon Musk, em uma teleconferência com analistas após os resultados trimestrais da fabricante de veículos elétricos.

Questionado sobre as empresas automobilísticas chinesas, Musk disse que elas “trabalham mais arduamente e trabalham de maneira mais inteligente”, descrevendo-as como as mais competitivas do mundo. “Se eu fosse dar um palpite”, disse ele, “provavelmente alguma empresa fora da China seria a mais provável para ficar atrás da Tesla”.

“Não estamos escondendo o fato de que somos chineses, e os europeus estão lentamente se acostumando com o fato de que os produtos da China são de alta qualidade”, diz Alan Visser, diretor global da Lynk, uma marca de veículos elétricos da Geely,­ que diz ter mais de 180.000 usuários registrados na Europa para seus serviços de aluguel. A Geely disse que suas exportações totais foram de 190.000 veículos em 2022, e a meta é de 600.000 por ano até 2025.

Desde a venda de apenas alguns milhares de carros em meados da década de 1980, as montadoras chinesas percorreram um longo caminho. Até 2018, quando a Tesla foi autorizada a ser a única dona de sua fábrica na China, as montadoras estrangeiras tinham de formar parcerias com empresas locais para fabricar na China. Enquanto empresas estrangeiras guardavam sua tecnologia mais avançada, os players locais tornaram-se competitivos aprendendo processos com seus parceiros e por meio de aquisições de marcas como Volvo e Lotus. Um ritmo acelerado de crescimento na demanda doméstica fez da China o maior mercado automotivo do mundo em 2009.

Em 2018, as vendas domésticas caíram pela primeira vez em quase três décadas, enquanto os veículos fabricados localmente estavam se tornando competitivos nos mercados internacionais.

Linha de produção de joint venture da General Motors na China: disrupção na logística é ameaça para a expansão de montadoras chinesas (ren Yong/SOPA Images/LightRocket/Getty Images)

“As montadoras chinesas viram isso e disseram: ‘Este período de rápida expansão está chegando ao fim’. E muitas delas disseram: ‘Vamos tentar outros mercados’”, diz Stephen Dyer, diretor administrativo da consultora AlixPartners em Xangai e executivo da Ford.

O crescimento da cadeia de suprimentos na China também acompanhou a fabricação de automóveis. As empresas nacionais agora fabricam quase todas as peças, inclusive aquelas que importavam até cerca de uma década atrás, como aço de alta resistência e fibra de vidro reforçada. Como resultado, a China teve um superávit comercial em veículos e peças de veículos pela primeira vez em 2021. No entanto, as linhas de montagem ainda dependem de máquinas avançadas do Japão e da Alemanha.

“Parece que houve uma mudança radical”, diz Dyer. “A tendência de longo prazo é aumentar as vendas de marcas chinesas em todo o mundo.”

(Com Chunying Zhang, Selina Xu, Craig Trudell, Albertina ­Torsoli e Wilfried Eckl-Dorna.)

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