Revista Exame

Confirmação da sentença de Lula é um bom sinal para democracia

A confirmação da sentença do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é mais um motivo para crer que estamos dando um passo à frente no regime democrático

Lei para todos: parte da sociedade via Lula como um inimputável  (Aloisio Mauricio/Foto Arena/Estadão Conteúdo)

Lei para todos: parte da sociedade via Lula como um inimputável (Aloisio Mauricio/Foto Arena/Estadão Conteúdo)

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Da Redação

Publicado em 1 de fevereiro de 2018 às 05h00.

Última atualização em 3 de agosto de 2018 às 09h01.

A democracia brasileira é ótima, boa, regular, ruim ou péssima? No momento atual, desconfio que uns 30% dos eleitores brasileiros desprezariam as cinco alternativas dessa pergunta e diriam simplesmente que nosso regime não é democrático. Sem ir tão longe, em editorial de 28 de janeiro, o jornal francês Le Monde afirmou que a democracia brasileira está em estado de decomposição. A afirmação foi feita no contexto de um comentário sobre a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em segunda instância pelo Tribunal Regional Federal de Porto Alegre. Referindo-se à abrangência da corrupção na classe política brasileira, o jornal francês dá um número: 45 dos 81 senadores estão sendo investigados ou já estão envolvidos em processos judiciais. O raciocínio subjacente é idêntico à atitude de meus hipotéticos pesquisados, 30% dos quais, em vez de celebrar a ação da Justiça, perderiam a crença na democracia. Veriam o fato como sinal de um atraso irremediável, e não como o avanço pelo qual tanto ansiaram.

Tais reações são compreensíveis num momento crítico como o que vivemos, mas não se sustentam numa perspectiva histórica mais ampla. Nenhuma das democracias atualmente existentes se desenvolveu da noite para o dia. Todas se desenvolveram aos trancos e barrancos, avançando num aspecto, estagnando ou retrocedendo em outro. Comparando o Brasil de hoje com o de um século atrás, uma avaliação razoável é a de que temos uma democracia bastante desenvolvida em alguns aspectos e extremamente atrasada em outros.

Um esclarecimento preliminar: a democracia a que me refiro é um sistema político, uma engrenagem institucional, não uma ideia filosófica tomada em abstrato; tampouco é a utopia da “democracia direta”, jamais praticada em país algum. E muito menos aquela invocada em sentido populista por parte da classe política e até por intelectuais e pelo clero, para os quais a plenitude democrática é uma multidão raivosa na rua, quebrando vidraças ou impedindo a circulação de veículos a pretexto de fazer alguma manifestação ou greve legítima.

General view of the hemicycle during the questions to the government session at the National Assembly in Paris, France, September 26, 2017. REUTERS/Stephane Mahe – RC169EB00100

Como engrenagem institucional, a democracia se constitui historicamente à medida que os reinados absolutistas europeus são substituídos por Estados constitucionais. O regime sucessor do absolutismo por definição excluía a sucessão no poder pela via dinástica. Haveria de ser uma organização deliberadamente construída, um conjunto de instituições. Nos primórdios, as minúsculas aristocracias dominantes julgaram-se capazes de excluir a maioria da população do processo de escolha das autoridades, mas essa perspectiva não resistiu aos embates sociais e políticos que marcaram o século 19. Assim, a instituição-chave passou a ser uma assembleia legislativa, cuja legitimidade por sua vez repousava no eleitorado, ou seja, no voto dos cidadãos, tomado individualmente e com peso igual. 

Eis porque, no sentido hoje quase universalmente aceito do termo, democrático é um sistema político no qual as posições de autoridade são preenchidas mediante eleições limpas e livres, das quais a maioria da população adulta esteja habilitada a participar. Os pontos críticos são, portanto, a abrangência do eleitorado e a lisura do processo eleitoral, entendido este em toda a sua extensão, que começa na habilitação a votar e culmina na contagem e na proclamação dos resultados. Numa escala de 1 a 10, que nota a democracia brasileira merece atualmente? Nas primeiras décadas do século 20, o eleitorado brasileiro mal atingia 5% da população total; a maioria da população vivia no campo ou em minúsculos municípios e era facilmente controlada por meio do chamado “voto de cabresto”. Hoje, ele perfaz 70% da população e encontra-se altamente concentrado em grandes cidades. A televisão influencia, mas sua presença no processo eleitoral é regulamentada com razoável rigor. Em certas regiões, os eleitores permanecem sujeitos ao clientelismo — desse ponto de vista, o Bolsa Família foi um retrocesso colossal —, mas é exagero dizer que o resultado global de uma eleição nacional possa ser cabalmente influenciado.

O que dizer de Lula?

Evitemos, porém, o otimismo excessivo. No quesito “eleições limpas e livres”, o avanço é inegável, diria mesmo espetacular, mas esse quesito implica dois outros cuja importância não pode ser subestimada: o acesso à informação e a chamada accountability — ou seja, a possibilidade de efetivamente chamar às falas os indivíduos que desatendam as finalidades dos cargos que ocupem, ou que deles se valham com objetivos ilícitos. Em linguagem corrente, estamos aqui falando do imperativo de coibir a impunidade. Mas o episódio Lula tem um aspecto que requer menção específica. Não só entre os militantes do PT, mas em toda a sociedade, Lula foi visto durante anos como inimputável. As alegações seriam falsas. O juiz Sergio Moro teria condenado o ex-presidente sem provas. Nem o placar de 3 a 0, o aumento da pena e o comportamento impecável da 8a Turma do TRF parecem suficientes para encerrar o assunto. Os petistas não se deram por achados: entoa-ram de imediato o mote “eleição sem Lula é fraude”. A presidente do PT, Gleisi -Hoffmann, e o senador Lindbergh Farias entregaram-se de corpo e alma à incitação da violência. Vindo do partido, não há o que estranhar, mas e Marco Aurélio de Mello, ministro do STF, que dias antes do julgamento afirmou que a eventual prisão de Lula “incendiaria o país”? Se esse fosse o pensamento geral da sociedade, melhor seria estabelecer uma monarquia absoluta e entregar uma coroa a Lula, proclamando-o “Lula Primeiro e Único, o Inimputável”. Felizmente, vivemos numa República, nosso regime é democrático e tudo faz crer que estamos dando um grande passo à frente.

A associação entre o acesso à informação e o direito ao voto é evidente. Votar é escolher, mas que sentido tem a escolha entre a situação e a oposição, ou entre partidos, quando nada sabemos sobre suas reais intenções e comportamentos? É de toda evidência que uma imprensa livre e competitiva é um pilar fundamental da engrenagem democrática. Mesmo uma democracia bem organizada na esfera eleitoral pode ser deficiente onde inexista uma imprensa forte. No Brasil, os acontecimentos recentes são muito instrutivos a esse respeito. Em que pesem os importantes avanços logrados do ponto de vista jurídico, o fato é que mesmo a “elite” — as camadas mais escolarizadas do país — ainda sabe pouco sobre o real funcionamento do governo e das estatais. Assim, além de uma imprensa atuante, é fundamental que parcelas cada vez mais amplas da sociedade compreendam as práticas do governo, em particular o gasto público e as relações financeiras entre os diferentes entes públicos, o empresarial e outros setores sabidamente influentes — o artístico, por exemplo.

Na mesma linha de raciocínio, o direito de votar e o acesso à informação sofrem um importante “deságio democrático” quando o sistema de justiça não é capaz ou não tem coragem de coibir práticas incompatíveis com as finalidades dos diferentes cargos. A ele cumpre o dever de investigar, julgar e punir ocupantes de cargos públicos e organizações privadas que desviem as agências do Estado de suas finalidades constitucionais. Também aqui os acontecimentos recentes — falo em particular da Lava-Jato — estão revelando a enorme extensão de nosso atraso democrático.

Evolução: há 100 anos, apenas 5% da população brasileira votava | Arquivo / Ag. O Globo

Isso posto, quanto chão precisamos ainda percorrer para nos tornarmos uma democracia respeitável? Que deficiências precisamos sanar o mais rápido possível? Essa indagação invariavelmente suscita duas respostas que devem ser examinadas com cautela: por um lado, avançar no campo econômico, elevando substancialmente a renda anual por habitante e reduzindo a desigualdade em sua distribuição; por outro, aumentar de maneira igualmente substancial o nível médio de escolaridade da população. Formuladas dessa maneira, não há o que discutir, são respostas corretíssimas. A redução das desigualdades sociais e o aumento da escolaridade certamente reforçam o processo democrático, contribuindo para sua consolidação. Mas transformam-se num grave equívoco se tomados como pré-requisitos, ou condições prévias para a instauração de um regime democrático. O sistema institucional a que chamamos democracia não é uma forma política perfeita, à qual somente as nações ricas e igualitárias devem ter acesso. Não é uma condição a ser desfrutada por povos afortunados que já tenham percorrido todo o caminho do desenvolvimento econômico. Bem ao contrário, é uma engrenagem que permite mesmo às sociedades mais pobres equacionarem seus conflitos com o mínimo possível de violência. Na verdade, a ameaça econômica à democracia brasileira não está no presente, mas no futuro. Somos um país aprisionado no que os economistas denominam “armadilha da renda média”. Em volume, somos a sexta ou sétima economia do mundo, mas nossa renda anual por habitante é pífia, mal chegando a 11 000 dólares, e pessimamente distribuída. Crescendo a uma taxa média de 3% ao ano, levaremos uma geração inteira para dobrá-la, o que significa alcançar o nível já atingido pelos países mais pobres da Europa. Com uma população de 210 milhões, essa é uma projeção aterradora, pois significa uma elevação brutal do nível de conflito na sociedade como um todo.

A mesma linha de raciocínio aplica-se ao nível educacional. A democracia não é um paraíso de mestres e doutores; é uma arena dentro da qual todos os cidadãos têm em princípio a chance de participar da defesa de seus interesses. A “sabedoria” média do corpo eleitoral ajuda, mas não é o ponto decisivo. O que importa é que todo indivíduo adulto esteja habilitado a participar, sem que o voto de um valha mais do que o de qualquer outro. A base individualista do sistema, este sim, é essencial, pois é dele que deriva a incerteza, ou, dito de outro modo, a impossibilidade de qualquer setor ou partido determinar de antemão os resultados globais das contendas. Esse é o cenário de uma democracia precariamente capaz de funcionar e de se robustecer ao longo do tempo, insegura até quanto às fronteiras do Estado que lhe serve de base. No entanto, apesar do terreno difícil, demos passos significativos contra o atraso. Gritaria à parte, a Lava-Jato representa um brutal avanço na busca por um ambiente político moderno. 


Bolívar Lamounier: Sociólogo com doutorado em ciência política pela Universidade da Califórnia, em Los Angeles, é sócio da consultoria Augurium

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