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Um bilionário sem dinheiro

Livro mostra como o empresário Chuck Feeney, um dos fundadores do Duty Free, fez e desfez de sua fortuna sem que ninguém soubesse

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Da Redação

Publicado em 10 de outubro de 2010 às 03h40.

"Sua fortuna está crescendo como uma avalanche. O senhor precisa distribuí-la mais rápido do que ela aumenta! Se não fizer isto, ela vai não só esmagá-lo, mas também os seus filhos, e os filhos dos seus filhos". Este conselho foi dado no começo do século XX por um reverendo a ninguém menos que John Rockefeller, o primeiro bilionário do mundo. O magnata levou a sugestão tão a sério que acabou se transformando em um ícone da filantropia. Desde então, o mundo viu muita gente enriquecer, e hoje ricos com mais de um bilhão de dólares se tornaram tão comuns, que só nos Estados Unidos já somam pelo menos uns 500 deles. Mas até hoje ninguém ouvira falar de um tão despojado a ponto de doar todo o seu dinheiro de uma vez só, e em vida. Mas o mais surpreendente é fazer isto de forma secreta e anônima! É sobre esta incrível história que trata o livro "The Billionaire Who Wasn';t - How Chuck Feeney Secretly Made and Gave Away a Fortune" (O Bilionário que não era - como Chuck Feeney secretamente fez e se desfez da fortuna), lançado em setembro nos Estados Unidos, e ainda sem edição em português.

O premiado jornalista irlandês Conor O';Clery, com sete livros já publicados, e mais de 30 anos como editor e correspondente internacional do principal jornal do seu país, o Irish Times, abandonou tudo o que fazia em 2005 para se dedicar totalmente a essa obra. Em contrapartida, recebeu do americano, também de origem irlandesa, Charles Francis (Chuck) Feeney, classificado em 1988 como o 23º homem vivo mais rico dos Estados Unidos, a promessa de acesso ilimitado a informações privilegiadas dele e de seus amigos e beneficiários, a partir de então liberados de votos de silêncio. Durante dois anos, o autor remontou cuidadosamente a trajetória do ex-bilionário, numa pesquisa que incluiu os Estados Unidos e Havaí, Bermudas, Cuba, Inglaterra, França, Suíça, Austrália, Vietnã, e Hong Kong. O resultado está nas 337 páginas do livro, onde desfilam, num trabalho primoroso, Feeney e os principais personagens que conviveram com ele, assim como o passo a passo desta maratona. "Escrevi a história extraordinária do homem mais generoso que já encontrei. É alguém que, apesar da imensa fortuna quase nunca se sentiu confortável perante as armadilhas da riqueza", conta O';Clery. Ele tem razão. A prova disso é que até hoje, aos 76 anos, Feeney mantém a mesma vida frugal. Não possui propriedades, mora em apartamentos alugados pela sua fundação, só compra roupas prontas, viaja em avião em classe econômica, anda de metrô e ônibus. Os cinco filhos seguiram o exemplo, e quando pequenos todos trabalharam nas férias como garçons, arrumadeiras e caixas.

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A rigor, o livro poderia ser dividido em duas partes. A primeira, mais trivial, vai do nascimento do menino pobre, filho de operário, em plena Depressão americana, até seu enriquecimento. Mostra, por exemplo, como Feeney e seus sócios começaram há 50 anos a vender bebidas alcoólicas livres de impostos para marinheiros americanos em portos da Europa, até o negócio se expandir e transformar-se na maior rede de lojas duty free de aeroportos do mundo. Até aí esta poderia ser uma destas obras biográficas bem intencionadas que merecem ser lidas, mas que carecem de originalidade em relação a tantas outras que terminam melancolicamente empoeiradas nas bibliotecas.

A segunda parte do livro justifica a atenção - e até emociona. É a partir do momento em que Chuck Feeney, aos 53 anos, abre mão da boa vida e doa toda a fortuna a uma fundação filantrópica que cria. Resiste assim à tentação do consumismo que ninguém mais que ele próprio, devido à luta pela sobrevivência financeira, poderia ser uma vítima fácil. Melhor: numa demonstração de desapego à egolatria, tão comum entre outros colegas de fortuna, faz tudo isso na calada da noite, de forma quase invisível. Transfere seus bens nas Bermudas, longe de seu país, para garantir o segredo. (Nesse sentido, lembra o autor, Feeney adota a vida inversa de Donald Trump, o famoso milionário americano que costuma promover demonstrações públicas de sua riqueza.) Só em 1997, treze anos depois, o mundo toma conhecimento da decisão, após a venda da participação acionária do ex-bilionário na rede de lojas duty free DFS, da qual foi um dos fundadores.

Diante de tanto sigilo, o que o fez mudar de idéia, e contar sua história em livro? Para deixar um legado, quem sabe uma pequena concessão à sua existência franciscana? Nada disso. Trata-se de outra demonstração de despojamento. Ele revela que buscou estimular o modelo "doar-enquanto-vivo" junto a endinheirados. Seu exemplo de vida é ideal. O dinheiro originalmente doado foi ao longo dos anos multiplicado com competência por ninguém menos que o próprio Feeney através da Atlantic Philanthropies, que criou. Com isso, foi possível financiar projetos sociais selecionados graças ao seu tino inegável. Até hoje a fundação não aceita propostas, e prefere identificar suas prioridades de atuação. E o faz em grande escala, tendo gasto até hoje um total de quatro bilhões de dólares, nos Estados Unidos e em todo o mundo. Assim, contribuiu para a construção de clinicas de AIDS na África do Sul, tratamento de água e educação de crianças no Vietnã, programas de assistência à saúde em Cuba, pesquisa de câncer na Austrália, cirurgia para deformidades faciais de crianças nas Filipinas, escolas na Irlanda. Em retribuição à bolsa de estudos que permitiu o então menino pobre Feenway se graduar, a universidade de Cornell recebeu doações acumuladas de 600 milhões de dólares. Mais quatro bilhões de dólares deverão ser distribuídos até 2017, em média um milhão de dólares por dia, até a auto-extinção da instituição. A pressa tem uma razão: Feeney quer evitar uma eventual distorção dos objetivos após sua morte, como costuma ocorrer com várias instituições similares. Por isso, só no ano passado, a Atlantic Philanthropies distribuiu 458 milhões de dólares, mais que qualquer outra fundação americana, exceto a Ford e a de Bill Gates.

Paletó azul sobre uma camisa havaiana, quase uniforme desde 1987, depois de transferir a fortuna para a fundação, quando ficou com menos de 5 milhões de dólares, ele transformou seu gesto em piada: "Quer saber como se tornar um milionário? Primeiro se torne um bilionário", conta O';Clery. "Muita gente rica não percebe que há alternativas para gastar dinheiro com boas causas", comentou Feeney em recente entrevista. "Se soubessem como isso traz satisfação, nem seria necessário persuadir. Digamos que a imprensa registre que alguém é o mais rico do mundo. Só que esse bilionário não consegue calcular sua fortuna em número de sanduíches. Quantos deles ele conseguiria comer sozinho?"

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