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Quem ficou com o mico?

Boom de flats deixa rastro de prejuízos entre hoteleiros e investidores paulistanos

EXAME.com (EXAME.com)
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Da Redação

Publicado em 14 de outubro de 2010 às 13h16.

Quandov o Ford modelo T já havia virado um sucesso de vendas nos anos 30 do século passado, Edsel Ford, filho do fundador da montadora americana, identificou um lote de veículos abaixo dos padrões estabelecidos. Preocupado com os efeitos que isso pudesse trazer, comunicou o problema ao pai. Henry nem piscou. "Não se preocupe, filho. Vamos vender todos", disse. "A cada minuto nasce um bobo que compra qualquer coisa."

O empresário Nelson Baeta Neves, presidente da seção paulista da Associação Brasileira da Indústria de Hotelaria (Abih), cita esse episódio para ilustrar o raciocínio que move os lançamentos e a aquisição de flats na capital paulista. Assim como o Ford T do século passado, flats são um bom investimento. Mas o lançamento generalizado desse tipo de imóvel está deixando um rastro de prejuízos no mercado paulistano. Segundo a Abih-SP, o boom da hotelaria colocou no mercado quase 30 000 apartamentos nos últimos cinco anos. São Paulo conta hoje com 44 000 quartos. Metade deles são flats que operam como hotéis, mas foram construídos, comercializados e pagam impostos como se fossem empreendimentos residenciais. Até dezembro de 2003, a cidade deverá ter por volta de 66 000 leitos. São Paulo vai encostar em Nova York, que conta com 67 000 apartamentos. A diferença é que a cidade americana recebe, em média, 37 milhões de viajantes por ano. São Paulo, 5 milhões.

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Com tantos quartos para acomodar tão poucos visitantes, a taxa de ocupação nos flats e nos hotéis caiu de 70% para 40%. Há estabelecimentos amargando índices de 15%. Para garantir o freguês, as promoções proliferam. As diárias caíram pela metade. Hoje, é possível se hospedar nos melhores endereços da cidade pagando de 80 a 100 reais. Há quatro anos, os quartos mais baratos não saíam por menos de 120 reais.

O que parece pechincha para o cliente é o caos financeiro para o dono e para o investidor. No primeiro semestre, 14 hotéis do centro fecharam as portas. Edifícios de flats novos estão virando residenciais. Donos de apartamentos em prédios de alto padrão querem vender, mas não conseguem um preço digno. "Flat em São Paulo virou um grande mico", diz o consultor imobiliário Celso Sampaio Amaral Neto. "As incorporadoras lançaram um atrás do outro, preocupadas com o lucro rápido, e prometeram rentabilidade que jamais poderiam garantir."

A construção de flats explodiu no auge das privatizações, quando executivos de companhias transnacionais começaram a freqüentar São Paulo com regularidade. Desde então, os empreendimentos são erguidos por grandes incorporadoras, como InPar, Setin e Gafisa. Os investidores são profissionais liberais: médicos, advogados, engenheiros, representantes da classe média paulistana que vêem oportunidades de ganho no mercado imobiliário. Pagam em média 150 000 reais por unidade, com a expectativa de receber de 1% a 1,5% de rentabilidade sem ter de se preocupar com o dia-a-dia do negócio. Os empreendimentos são administrados por companhias experientes. Parthenon (do grupo francês Accor), Meliá Confort (do espanhol Sol Meliá) e Blue Tree são algumas das bandeiras. O negócio tinha tudo para dar certo -- mas só acumula perdas.

200 reais por mês

Entre os mais decepcionados estão os donos de flats. Gente que acreditou poder fazer no Brasil o que gira bilhões nos Estados Unidos: sair das aplicações tradicionais para virar investidor imobiliário. O designer Antonio Carlos Teixeira da Silva, presidente da Associação dos Proprietários de Flats (APFlats), chegou a ter cinco. Quando a queda da rentabilidade acusou problemas, vendeu os três mais antigos. Os dois restantes são imóveis novos que dão permanente dor de cabeça. O apartamento do Transamérica Nações Unidas rendeu-lhe exatos 200 reais em maio. Teixeira pagou 120 000 reais pelo imóvel. Quando fechou o negócio, no final de 2000, anunciaram-lhe um retorno de 1,2% mensal: cerca de 1 400 reais. O outro apartamento, na rua José Maria Lisboa, no coração dos Jardins, está dando a maior mão-de-obra. Um grupo de proprietários decidiu pela troca da bandeira. Ainda assim, o retorno do imóvel é incerto.

"Nas condições de hoje, receber 200 reais é melhor do que tirar dinheiro do bolso quando o chapéu corre", diz José Eduardo Loureiro, diretor executivo da Transamerica Flats. Em nenhum dos 14 flats da marca em São Paulo o "chapéu correu", mas a rede sofre reestruturações. Neste ano, foram demitidos 16 funcionários, e a empresa negocia o fim de suas operações em dois empreendimentos. O faturamento mensal está em 1,6 milhão de reais, quando deveria ser três vezes maior. "A rede cobra sua remuneração sobre o valor distribuído e perde junto com os investidores", declara Loureiro. No mercado, no entanto, existem várias modalidades de remuneração e algumas geram discórdia entre as partes. A taxa de administração de muitos negócios recai sobre a receita bruta e também sobre a receita gerada pelo movimento dos hóspedes.

Os donos ganham sobre a receita líquida e pagam todas as taxas: luz, lavanderia, telefone. Quando as diárias são reduzidas, a receita bruta pode ser menor, mas a receita com o movimento cresce. As administradoras ganham mais. Os donos dos flats ganham menos. "O que a entidade defende é uma relação mais correta, menos leonina, por parte das administradoras", diz Teixeira.

As operadoras, no entanto, não querem ouvir falar em mudança no contrato. O maior argumento é a própria conjuntura: boas administradoras são essenciais para assegurar o mínimo de movimento na crise de hospedagem. "Querer negociar é matar a vaca para tirar o carrapato", diz o executivo Orlando de Souza, diretor de operações da Hotelaria Accor Brasil. Os resultados nos flats da marca Parthenon acompanham o mercado e convivem com a baixa rentabilidade. "As comercializadoras devem ter avisado o investidor de que todo negócio tem seus riscos." A bandeira da empresa está em 119 empreendimentos no Brasil, dos quais 78 são flats. Em São Paulo, está em nove hotéis e 34 flats. Detalhe: esses flats são exemplares raros no mundo. Fora do Brasil, a Accor só tem um flat. Na opinião de Soares, a saturação ocorreu porque falta legislação específica para flats.

Imbróglio jurídico

O terreno jurídico dessa polêmica é um capítulo à parte. A legislação municipal desconhece a palavra flat. Por falta de enquadramento, esse tipo de imóvel é considerado residencial: não precisa ter sistema completo antiincêndio, paga 15% de imposto de renda, não recolhe ISS e paga IPTU e demais taxas, como luz e água, como se fossem imóveis residenciais, não comerciais. Flats também podem ser erguidos em áreas estritamente residenciais, proibidas para hotéis. A Abih-SP e o Secovi-SP, o sindicato da construção civil, exercitam o poder de pressão nos gabinetes do município e do estado para regulamentar essa situação: o primeiro para mudar as regras, o segundo para que as mudanças não sejam tão radicais. "Construíram muito em São Paulo, mas não podemos esquecer que faltavam hotéis e a demanda caiu por fatores externos, como os atentados de 11 de setembro e a crise da economia", diz Basílio Jafet, vice-presidente de incorporação imobiliária do Secovi-SP. "Não somos especuladores: nosso negócio é construir enquanto houver demanda, e havia na época." A pressão nos bastidores é grande. No ano passado, os hoteleiros apoiaram o projeto de autoria do deputado Campos Machado, que equiparou flats a hotéis, mas o texto recebeu 22 vetos do governador Geraldo Alckmin. "Não passa de uma lei de dois artigos que não vale nada", diz o advogado imobiliário Flavio Gonzaga. Profissionalmente, Gonzaga prefere não emitir sua opinião sobre o mercado imobiliário. É membro do conselho jurídico do Secovi-SP e advoga em favor de construtoras. Mas, pessoalmente, não tem dúvida. "Flat é uma fria", diz. "Quem não comprou, dispense. Quem comprou, mantenha a calma e não venda para não realizar prejuízo." Gonzaga é proprietário de dois. No mês passado, pagou 500 reais pelo condomínio do flat nos Jardins. O imóvel custou 120 000 e vale 50 000.

A corretora Shirlei Sorvilo, proprietária da Oliver, imobiliária especializada em flats, é adepta da máxima "compre na baixa e venda na alta". "Quem tiver dinheiro pode adquirir ótimos flats a bons preços", diz Shirlei. Imóveis que há dois anos valiam 130 000 hoje custam 80 000 ou menos. Na tentativa de escapar do prejuízo, donos de prédios também estão vendendo as unidades para formar condomínios residenciais com serviços. O flat EZ Plaza, da EZ TEC, está nessa lista. Seus 66 apartamentos foram colocados à venda por 4 000 reais o metro quadrado. O empreendedor nem precisou fazer reforma.

Quem não tem saída são os hotéis. A queda no número de hóspedes afetou até os gigantes da hotelaria paulistana, como o Maksoud Plaza. O cinco-estrelas tem ofertas generosas. Entre elas, fim de semana para casal por 180 reais, com café da manhã. O hotel está cercado por flats. Há um mês, o Maksoud instalou um luminoso no aeroporto Santos Dumont reforçando as promoções. O anúncio em letras garrafais diz: "Hospede-se em um hotel de verdade". A frase é uma criação do empresário Henry Maksoud e expressa seu desapontamento com o mercado. "As pessoas não sabem que existem hotéis de mentira, baseados na fraude dos grandes rendimentos", diz Maksoud. Na avaliação do empresário, a "maldição dos flats" ainda fará muitas vítimas. Aliás, no meio dessa polêmica, só existe um ponto de consenso. Todos as pessoas ouvidas nesta reportagem estimam que vão amargar prejuízos e presenciar contratempos imobiliários pelos próximos três a cinco anos. "Ninguém revoga a lei da oferta e da procura", diz Baeta Neves, da Abih-SP.

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