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Acidente de morte

Leia abaixo mais trechos do livro Matarazzo de Ronaldo Costa Couto. "Segundo semestre de 1919. Cansado de guerra, o conde volta ao Brasil e reassume o trono do império. Ermelino, exausto, sai em viagem de férias aos Estados Unidos e Europa. Passa alguns meses em Nova York, Londres e Paris. Em meados de janeiro de […]

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Da Redação

Publicado em 10 de outubro de 2010 às 03h40.

Leia abaixo mais trechos do livro Matarazzo de Ronaldo Costa Couto.

"Segundo semestre de 1919. Cansado de guerra, o conde volta ao Brasil e reassume o trono do império. Ermelino, exausto, sai em viagem de férias aos Estados Unidos e Europa. Passa alguns meses em Nova York, Londres e Paris. Em meados de janeiro de 1920, já na hora de voltar, decide passar alguns dias na Itália.

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Na manhã do dia 25 de janeiro de 1920, está em Turim. Junto com o irmão Giuseppe e outros amigos, resolve ir de carro até o Mont Cenis, na França, ao norte de Besancon, quase na fronteira com a Itália, na altura da cidade de Susa. Muita neve, muita paisagem bonita. "O programa dos meus tios consistia num passeio de trenó, imagino que puxado por cavalos", diz, 84 anos depois, a historiadora Maria Angélica. Uma viagem comum, sem maior risco, mas que vai terminar em tragédia sem igual para os Matarazzo e a Matarazzo.

Bruzolo, Piemonte, 18 de outubro de 2000. O conde Raffaele Leonetti di Santo Janni o Buby e sua mulher, Graziella Matarazzo Leonetti, neta do conde Matarazzo, visitam a cidadezinha de menos de dois mil habitantes. O conde Leonetti conta como contam o acidente:

Como foi, Buby?

Ermelino estava num carro muito especial para a época. Tinha o volante do lado direito, dois lugares na frente, dois no meio e dois atrás. Vinha devagar, numa estrada ampla, de uns quinze metros de largura. O tráfego tinha sido proibido naquele dia, devido a manifestações de rua. Puderam passar, porque traziam uma autorização especial do prefeito de Turim. Além do motorista, estavam o Ermelino, o vice-prefeito de Turim, o prefeito de um município próximo à fronteira com a França e Giuseppe, o Peppino, filho mais velho do conde Francesco Matarazzo. O motorista não tinha o costume de dirigir sentado à direita. Ao ver de longe um ciclista cruzando a pista, atrapalhou-se. O carro, desgovernado, subiu no barranco e virou exatamente do lado em que estava o Ermelino. Não chegou a capotar, não havia velocidade para isso. As rodas dianteiras subiram no barranco e o carro virou, matando o Ermelino.

Assim, Graziella descobre que o acidente que matou seu tio no começo do século vinte ainda é assunto vivo. Ermelino é nome de rua e também da escola infantil que seu pai mandou construir. O conde também fez erguer, no exato lugar da morte, um monumento de mármore. "É lindo!", diz Buby. Em destaque, bela mulher chorando, com as mãos sobre o peito.

Matarazzo cuidou de tudo pessoalmente, ficou mais de um mês em Turim. Fez doações a Bruzolo e lugarejos vizinhos. Recebeu homenagens tocantes da comunidade, inclusive título de cidadania. Sua dor e seus gestos ainda são lembrados.

Palavra de novo para a historiadora Maria Angélica, também sobrinha de Ermelino e Giuseppe: "O motorista cometeu um grande erro ao tentar evitar a colisão com um ciclista. Virou bruscamente o volante, fazendo com que o veículo caísse numa vala de um metro e meio de profundidade, matando instantaneamente tio Ermelino e outro passageiro, ferindo tio Peppino, um outro passageiro e o chofer. A sexta pessoa saiu ilesa".

Ela informa que Ermelino não era casado e não deixou filhos. E que todos os que o conheceram falavam de um homem inteligente, afável, refinado e também bonito. "Parece que havia amado uma mulher de São Paulo, muito linda, mas com quem não podia se casar, por motivos nunca explicitados. Meu avô lamentou sua perda durante toda a vida e, quando eu era criança, falou-me com grande dor do seu fim prematuro. Minha avó ficou dilacerada pela dor e nunca mais tirou o luto". E ainda: "Ermelino tinha sido a esperança para o futuro, havia gozado de toda a sua confiança e Francesco sabia muito bem o quão difícil seria substituí-lo em tudo que se relacionasse com os negócios e a família".

Por vontade do conde Matarazzo o corpo foi embalsamado e levado para São Paulo. O irmão caçula Luiz Eduardo pai de Graziella veio na mesma viagem. Tinha dezoito anos.

A. Andrea Matarazzo conta que o conde fechou o quarto de Ermelino tal como estava e nunca mais abriu. E que todos os que conviveram com ele dizem que começou a morrer ali. Nunca mais teve a mesma alegria de antes.

Dor martirizante, gravada para sempre na alma e coração. Vazio sem fim, tristeza adimensional, inesgotável.

São Paulo, 14 de fevereiro de 2000. Trecho de diálogo com a neta Filomena Matarazzo Suplicy, de 91 anos, filha do conde Andrea - o segundo filho do fundador - e mãe do senador Eduardo Matarazzo Suplicy:

Alguma lembrança especial daquele tempo, dona Filomena?

Sim. Lembro-me de que o meu avô tinha no quarto um armariozinho de vidro em que guardou sempre a roupa que o tio Ermelino estava usando e mais uns dois ou três pertences dele. Como uma lembrança, uma relíquia.

Nápoles, Via Stazio, 22 de janeiro de 2002, casa do neto Ermelino Matarazzo di Licosa, 83 anos:

Como reagiu o seu avô ao acidente, Ermelino?

A perda de meu tio Ermelino foi um choque muito forte para ele. A partir daí, teve uma queda muito grande. Era um homem habituado a trabalhar, trabalhar, só trabalhar. Ele sentiu muito o golpe.

Acontecimento fundamental. Um marco, cruz pesada na vida do conde Matarazzo e família. E também do colosso empresarial.

O destino às vezes tem a mão pesada ou segue caminhos estranhos. Ignora mérito, ignora justiça. Muda instantaneamente o futuro. Ou, quem sabe, não muda nada? Já era isso mesmo. Das velhinhas carolas de Minas: "Às vezes a gente faz um plano, Deus faz outro".

Mas não dá nem para imaginar Deus ocupado com o planejamento ou com a execução de acidente de carro para matar um rapaz como Ermelino. Ou qualquer outro filho Dele.

Ermelino tinha ligação muito forte com Luiz Eduardo. Devido à grande diferença de idade vinte anos e convivência diária na casa da avenida Paulista, acabou se tornando uma espécie de pai-irmão do caçula. "Para o meu pai, o irmão Ermelino era tudo. Ele ajudou a criá-lo", conta, em 10 de dezembro de 1999, Claudia Matarazzo Theotoky.

O que mais lhe chegou de seu tio Ermelino, Claudia?

Ele dirigiu muito bem o grupo. Além disso, era uma pessoa ótima, que fazia muitas obras de caridade, ajudava todo mundo. Foi uma perda colossal para a família e as empresas Matarazzo. A morte dele mudou a história toda."

"(...) Com a morte de Ermelino, o fundador teve de reassumir tudo, olhar para a frente, tratar do presente e do futuro das IRFM, pensar de novo a sucessão. Na preparação de alguém que no futuro pudesse centralizar o comando do grupo e mantê-lo coeso. Um substituto de Ermelino.

Corre que no momento mais crítico da substituição do filho morto, o cimento do túmulo ainda fresco, a dor imensa drenando até o gosto de viver do coração e da alma, Francesco recebeu no escritório central o banqueiro inglês Henry Lynch, representante do Grupo Rothschild e Schroeder no Rio de Janeiro. Teria então ocorrido o diálogo seguinte.

Lynch a Matarazzo:

Seu sucessor [Ermelino] está morto. O Chiquinho não vai poder desempenhar essa função. Seus filhos mais velhos ultrapassaram a idade em que poderiam ser preparados para a sucessão. Talvez o melhor fosse o Grupo Rothschild formar um novo grupo que comprasse suas empresas. Analisam-se os balanços e vê-se se os dividendos estão à volta de uns 12%. Nesse caso, a transação pode situar-se ao nível de uns cem mil contos. Se Chiquinho se revelar capaz, faremos dele superintendente-geral. Se não se revelar capaz, faremos dele presidente.

Matarazzo, irônico, talvez para se livrar da impertinência e frieza do banqueiro:

Fale com o Chiquinho e veja o que ele pensa sobre isso.

Lynch vai ao jovem Chiquinho e ouve:

Penso que posso prosseguir sozinho.

E mais não disse.Terá sido exatamente assim? É difícil acreditar que o poderoso, próspero e altivo Matarazzo, mesmo abatido pela perda do filho, não tenha reagido a avaliações tão inoportunas, descorteses e descabidas, mesmo sabendo o que Chiquinho ia dizer. A fria fala atribuída a Lynch não parece parte de conversa comum, de um diálogo respeitoso.

Observe-se ainda que, se esse episódio é verdadeiro, o fundador já estava fixado em Chiquinho como sucessor desde essa época. A ele, quase um adolescente, teria cabido comunicar à poderosa Rothschild a decisão de que iria continuar sozinho."

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