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A transformação da multinacional

Num capítulo do livro A Companhia, dois editores da The Economist analisam a história das empresas globalizadas

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Da Redação

Publicado em 14 de outubro de 2010 às 13h16.

No último quarto do século 20, tornou-se difícil descrever a história das multinacionais através de lentes nacionalistas. Afinal de contas, essa foi uma época na qual as seções das livrarias dedicadas a negócios exibiam títulos como The Borderless World (O Mundo sem Fronteiras), The Twilight of Sovereignty (O Crepúsculo da Soberania) e Sovereignty at Bay (Soberania em Perigo). Um famoso ensaio publicado na Harvard Business Review em 1983, de autoria de Theodore Levitt, afirmava que "a Terra é redonda, mas em muitos aspectos é mais sensato considerá-la plana". Era um exagero. A geografia ainda era importante. Em 1995, entre as 100 principais companhias em ordem de valor de mercado 43 eram dos Estados Unidos, 27 do Japão, 11 da Grã-Bretanha e cinco da Alemanha. Países grandes, como a Rússia, a China, a Índia, o Canadá, a Indonésia e o Brasil, não tinham nenhuma. No entanto, nesse período as multinacionais podiam surgir em qualquer lugar. Duas das mais bem-sucedidas companhias de telefonia celular, a Nokia e a Ericsson, brotaram nas fímbrias do Círculo Ártico. A Acer, terceira maior firma de computadores do mundo no ano 2000, foi fundada em Taiwan, que antes era sinônimo de rádios baratos.

Nesse período houve três mudanças importantes que afetaram todos os tipos de multinacional. A primeira foi um grande aumento do seu número. Em 2001 havia cerca de 65 000 empresas "transnacionais" no mundo, o quíntuplo das que existiam em 1975; em todo o mundo, elas reuniam 850 000 afiliadas estrangeiras, empregavam 54 milhões de pessoas e tinham rendimentos de 19 trilhões de dólares. Na década de 90, o investimento direto no exterior cresceu quatro vezes mais rapidamente do que a produção e três vezes mais que o comércio mundiais. Mais ou menos um terço dos fluxos de comércio consistia em pagamentos internos em companhias individuais, o que demonstra como os sistemas multinacionais de produção se espalhavam pelo mundo. Em 2000, o montante total de investimentos diretos no exterior ultrapassou 1 trilhão de dólares.

Em segundo lugar, as firmas menores impulsionaram a globalização nesse período tanto quanto as grandes. A redução de barreiras tarifárias, a expansão da desregulamentação e a queda nos custos do transporte e das comunicações, tudo isso permitiu aos Davis desafiar os Golias. A liberalização do comércio possibilitou às companhias pequenas, como a Microsoft, chegar aos mercados externos sem precisar estabelecer grandes escritórios no exterior. A desregulamentação dos mercados de capital facilitou a empresas menores a obtenção de empréstimos importantes, enquanto técnicas inovadoras de gerência, como a produção just-in-time, deu-lhes condições de imitar a eficiência de competidores maiores. As pequenas companhias também encontravam menos preconceitos políticos do que as grandes.

Terceiro, as multinacionais se esforçaram mais para tratar o mundo como um único mercado, mesmo sendo chamadas por nomes desagradáveis, como "transnacionais", "metanacionais" e "multinacionais de nova geração". A mudança foi particularmente marcante nas grandes companhias. Durante a maior parte do século 20, a Ford era essencialmente uma confederação de firmas nacionais. Em certo momento, a empresa lançara dois modelos do automóvel Escort, que haviam sido projetados e construídos de forma absolutamente separada. Mas já em 1990 desenvolvia "carros mundiais" com peças comuns, como o Mondeo, de nome adequado, e coordenava não apenas a fabricação mas também a publicidade desse modelo em escala mundial.

Tudo isso parece muito imperial. Na verdade, as melhores multinacionais fizeram grandes esforços não só para adaptar os produtos ao gosto local (até mesmo dividindo o mercado americano) mas também para percorrer o mundo inteiro em busca de idéias. Com efeito, numa época em que era fácil ter acesso à maioria dos mercados, a única justificativa para ter agentes locais em toda parte era a utilização de suas inteligências. As multinacionais gastaram fortunas em novos sistemas eletrônicos para agilizar a expedição de mensagens por toda a organização e começaram a experimentar algo que poderia ser chamado arbitragem intelectual: juntar designers italianos com especialistas japoneses em miniaturização, por exemplo.

Muitas das mudanças estruturais ocorridas nesses anos decorriam do desejo de combinar escalas globais com conhecimento. A Nestlé instalou na Itália sua sede dos negócios de massas. Na Asea Brown Boveri, oriunda de uma fusão suíço-sueca de 1988, Percy Barnevik descentralizou diversas coisas (dividindo a firma em 1 300 companhias separadas que, por sua vez, se subdividiam em 5 000 centros de lucros) e centralizou outras: fez do inglês o idioma oficial da empresa, embora somente para um terço dos empregados essa fosse a língua materna, e nomeou uma guarda pretoriana de gerentes internacionais para supervisionar a empresa.

Terá funcionado? A guarda pretoriana da ABB se deslocou à volta do mundo tão constantemente que um cônjuge se queixou de que essa rotina servia apenas para homossexuais sem parceiros. Problema maior foi que grande quantidade de multinacionais ainda imaginava que "global" significava simplesmente "mais internacional". A maior parte trazia os chefes de seus países de origem. Até mesmo modelos de multiculturalismo, como a Unilever e a Shell, tinham muito poucos altos funcionários provenientes da China e do Brasil, dois dos mercados mais promissores do século 21. Algumas empresas consideravam o mundo em desenvolvimento como fonte de mão-de-obra barata, mais do que de idéias. Essa "economia Nike", que dependia de trabalhadores baratos do Terceiro Mundo, contribuiu para alimentar uma rejeição às multinacionais.

A GRANDE MAL-AMADA

  • No fim do século 20, as multinacionais eram rotineiramente denunciadas como vilãs da globalização. Manifestantes antiglobalização promoveram distúrbios em Seattle, Washington e Londres ao protestar contra o imenso poder das multinacionais, insurgindo-se contra companhias como McDonalds, que na metade da década de 90 servia 3 milhões de hambúrgueres por dia em 100 países. Raymond Vernon, autor de um dos estudos clássicos sobre multinacionais, Sovereignty at Bay (Soberania em Perigo), previu um futuro sombrio para as multinacionais em seu último livro, In the Hurricanes Eye (No Olho do Furacão), de 1998, pois as pessoas se voltariam contra elas.

    Seria tão grande assim seu poder? Em grande parte os culpados dessa idéia eram os homens de negócios. Haviam sempre sonhado, como disse o presidente da Dow Chemical, em "comprar uma ilha que não pertencesse a nenhum país e estabelecer a sede mundial da Dow no território realmente neutro dessa ilha, sem dever nada a nenhum país ou sociedade". Os chefes das grandes corporações gostavam de dar a impressão de que suas companhias eram capazes de levantar acampamento e abandonar qualquer governo que as desagradasse.

    Na verdade, as multinacionais tinham consideravelmente menos poder do que seus críticos imaginavam. A idéia, comum nos círculos antiglobalização, de que essas companhias representavam 51 das 100 maiores economias do mundo, baseava-se na comparação do faturamento das empresas com o PIB de alguns países. Mas o PIB é uma medida de valor agregado, não de vendas. Usando uma medida de valor agregado para as companhias, só 37 multinacionais apareciam entre as 100 maiores economias do mundo no ano 2000, e apenas duas chegavam às 50 maiores (Wal-Mart, no 44o lugar, e Exxon, no 48o). A Wal-Mart quase não alcançava o tamanho de um país pequeno da Europa, como a Bélgica ou a Áustria, embora fosse maior do que o Paquistão ou o Peru. Longe de ganhar poderio econômico, as multinacionais estavam perdendo. No período 1980 a 2000, as 50 maiores firmas do mundo cresceram mais lentamente do que a economia mundial como um todo.

    Além disso, riqueza não é o mesmo que poder. A Wal-Mart podia ser mais rica do que o Peru no ano 2000, mas pareceria débil posta ao lado até mesmo desse país bastante disfuncional. A Wal-Mart não tinha poderes coercitivos, não podia criar impostos, levantar um exército nem prender gente. Em cada um dos países onde operava, era obrigada a obedecer aos governos locais. Gigantes anteriores, como a ITT ou a Companhia das Índias Orientais, haviam sido capazes de exercer poder real; a Wal-Mart era simplesmente competente nas vendas a varejo.

    A história das multinacionais nos leva a duas conclusões contraditórias. A primeira é que elas se tornaram em geral forças benfazejas, ou pelo menos deixaram de pecar de maneira tão evidente. As primeiras companhias licenciadas com cartas reais eram monopólios estatais, com tendência à conquista e à exploração. As iniciais da Royal African Company foram marcadas a ferro em brasa no peito de muitos escravos, e a RAC recebeu apoio não apenas do Estado (seu primeiro presidente foi Jaime, duque de York, cujo nome foi dado a Nova York) mas também da sociedade civil (entre seus acionistas estava John Locke, o grande filósofo da liberdade). "No Oriente, as leis da sociedade e as leis da natureza foram imensamente violentadas", argumentou a Comissão Burgoyne em 1773, ao condenar a Companhia das Índias Orientais. "Todas as formas de opressão se estampam no rosto de pobres nativos indefesos; e a tirania em sua forma incruenta ronda no exterior."

    Essa tradição de exploração sem dúvida prosseguiu no século 19. O relatório do cônsul britânico Roger Casement sobre a administração do Estado Livre do Congo é uma leitura horripilante. Uma sentinela que trabalhava para uma das companhias concessionárias relatou que mantinha 11 mulheres reféns até que seus maridos "trouxessem a quantidade exigida de borracha no dia do mercado". No entanto, no fim do século 20, os pecados das multinacionais tendiam a ser menos de comissão do que de omissão: por exemplo, a Shell foi amplamente criticada por não haver se empenhado mais para impedir a execução de Ken Sarowiwa, um dissidente nigeriano, em 1995. Elas já não iam pelo mundo derrubando governos.

    E que dizer da objeção de que as multinacionais pagavam salários miseráveis? A questão é saber se os salários eram "miseráveis" segundo os padrões ocidentais ou os locais. Em 1994, o salário médio nas filiais estrangeiras das multinacionais era 50% maior que os salários locais; no caso de países de baixa renda, a quantia era o dobro dos salários das manufaturas domésticas. As multinacionais em geral adotavam padrões trabalhistas mais elevados do que suas rivais locais. A chave de seu sucesso não era o pagamento de salários baixos, e sim a introdução de capital, capacidade e idéias superiores (que melhoram o padrão de vida e ampliam as escolhas à disposição dos consumidores locais).

    Oferecer melhores bens e serviços -- desde máquinas de lavar roupa até contas correntes bancárias e mesmo hambúrgueres -- tem sido sempre a justificativa central para os negócios multinacionais. Ela vale por si mesma. Mas também vale a pena registrar que as multinacionais nem sempre foram motivadas exclusivamente pela cobiça. Elas construíram escolas e hospitais por todo o mundo. Até mesmo os mais sórdidos episódios de sua história em geral aparecem lado a lado com exemplos de decência. Em 1910, William Lever viajou ao infeliz Congo Belga e adquiriu uma vasta área de cerca de sete enormes fazendas, na qual construiu uma comunidade-modelo com hospitais, escolas e estradas. O Congo não lhe proporcionou um só tostão de lucro durante sua vida, mas Lever considerava essas vilas uma de suas maiores realizações.

    A segunda conclusão é que as multinacionais jamais foram amadas, nem em seus países, nem no exterior. Em 1902, um comentarista britânico, F. A. Mackenzie, publicou The American Invaders (Os Invasores Americanos), que era uma denúncia desabrida contra as multinacionais americanas que plantavam fábricas no solo da Grã-Bretanha. Durante grande parte do século 20 a esquerda inglesa hostilizou o investimento estrangeiro com a alegação de que roubava o pão de cada dia de algum operário britânico em algum lugar, argumento que J.A. Hobson (e mais tarde Lênin) transformou em toda uma teoria do imperialismo. Anos mais tarde, os americanos Pat Buchanan e Ross Perot cantavam o mesmo hino.

    Seria fácil dizer que esses são exemplos de analfabetismo econômico, oportunismo político e xenofobia. Mas as multinacionais sem dúvida suscitam temores demasiadamente arraigados para que possam ser desfeitos com algumas estatísticas. Há um elemento de preocupação quando se sabe que o emprego depende de decisões de administradores que vivem em países distantes. Por isso, as multinacionais continuarão a representar muito do que há de melhor nas companhias: sua capacidade de aperfeiçoar a produtividade e, portanto, o padrão de vida das pessoas comuns. Mas também continuarão a personificar o que há de mais preocupante -- talvez mais alienante -- nas companhias.

    Trecho de A Companhia -- Breve História de uma Idéia Revolucionária, de John Mickletwaith e Adrian Wooldridge, recém-lançado pela editora Objetiva (276 páginas, 37,90 reais)

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