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Paraíso nórdico em risco: problemas na Saúde expõem fissuras no Estado de bem-estar social na região

Em 2022, 20% dos funcionários municipais no cuidado de saúde deixaram o serviço, de acordo com um relatório do governo; movimento é chamado por pesquisadores como 'grande renúncia'

Em 2022, 20% dos funcionários municipais no cuidado de saúde deixaram o serviço em países nórdicos (Benoit Tessier/Reuters)

Em 2022, 20% dos funcionários municipais no cuidado de saúde deixaram o serviço em países nórdicos (Benoit Tessier/Reuters)

Agência o Globo
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Agência de notícias

Publicado em 25 de fevereiro de 2024 às 08h53.

“Eu tinha muito medo de matar alguém durante meu turno”, conta a ex-enfermeira Tanja Rossau Adsersen, de 28 anos. Após atender até oito pacientes no pós-cirúrgico ao mesmo tempo, ela não sabia se esquecera de algum medicamento ou de passar informação necessária para a colega que a substituíra.

Em “alerta total todos os dias” diante da sobrecarga de trabalho e psicológica, ela desistiu da enfermagem após engravidar há dois anos: pediu demissão, apesar de não ter um novo emprego, e hoje trabalha com procedimentos estéticos.

— Agora eu sou uma mãe melhor porque não tenho mais medo — conta ela, na clínica onde trabalha, no centro da cidade dinamarquesa de Aarhus.

‘Grande renúncia’

A decisão da enfermeira faz parte da chamada “grande renúncia”, como definem pesquisadores dinamarqueses ouvidos pela reportagem. Em 2022, 20% dos funcionários municipais no cuidado de saúde deixaram o serviço — mais da metade deles, abaixo dos 25 anos — de acordo com um relatório do governo. A evasão é uma das raízes do “maior problema” do setor da saúde dinamarquês: a escassez de trabalhadores, nas palavras da ministra do Interior e da Saúde. A realidade, porém, afeta não apenas a Dinamarca, mas também as outras quatro nações nórdicas — Suécia, Noruega, Finlândia e Islândia — expondo lacunas no Estado de bem-estar social construído por esses países ao longo do século XX e gerando preocupações de longo prazo, de acordo com especialistas e pesquisas dos diferentes países.

De maneira geral, é um reflexo — e também consequência — do envelhecimento da população. os cinco países viram nos últimos anos a proporção da população acima dos 65 anos aumentar, em média, 34%.

Com isso, os países enfrentam dois problemas. Idosos são os que mais utilizam os serviços da saúde, o que leva a uma maior procura do setor. Além disso, há mais profissionais se aposentando, enquanto o grupo jovem em idade de trabalho não acompanha esse crescimento.

Esse desequilíbrio pressiona um setor já sobrecarregado pela carga de trabalho que exige turnos estendidos e plantões noturnos e aos fins de semana, particularmente no caso de enfermeiros e de quem trabalha com idosos. A carga horária é a maior reclamação dos profissionais e o que torna tão difícil tanto a retenção como o recrutamento de profissionais. O resultado: os poucos trabalhadores que sobram se sentem mais atolados e pressionados.

— Muitos dos meus colegas na faculdade pensavam em continuar estudando para se tornarem professores, para não terem que trabalhar [em hospitais] — conta Adsersen.

Recurso a imigrantes

A Dinamarca estima uma escassez de 15 mil funcionários na área até 2035, o que levou o governo a firmar um acordo no fim de janeiro para facilitar a entrada de mil imigrantes para o setor de saúde e cuidados. Isso num país que já tentou forçar refugiados sírios a voltarem a seu país natal e introduziu leis visando limitar o número de pessoas “não ocidentais” em determinados bairros.

O problema da evasão e falta de funcionários no país é mais latente não nos escalões mais graduados, como médicos e enfermeiros, mas no de assistentes e ajudantes, de acordo com pesquisadores. Eles compõem a maior parte dos trabalhadores da área e carregam, praticamente sozinhos, a carga dos turnos estendidos, já que se ocupam dos lares de idosos e outros serviços que demandam atendimento 24 horas por dia.

Adsersen, a enfermeira dinamarquesa, trabalhou por um período prestando cuidados domiciliares a idosos e relata que “não havia tempo suficiente” para tratar cada um. Com diversos pacientes para atender em um dia, ela não conseguia fornecer todo o auxílio necessário.

— Você tem um tempo específico, porque talvez a próxima pessoa que vai visitá-lo só viria depois de seis horas, e eles precisam ir ao banheiro — conta. — Era tão triste.

Há um terceiro fator no cenário dinamarquês que contribui para o problema: seu setor produtivo aquecido e o bom momento de suas multinacionais.

Jovens são disputados

O mesmo acontece com as oportunidades de cursos universitários que precisam “disputar” os jovens disponíveis. Naturalmente, um setor que exige muito, mas não é tão compensador financeiramente, vai ser deixado de lado. Essa situação levou também ao aumento de pessoas sem formação em saúde ou cuidados.

— A questão que temos de abordar é que tipo de tarefas esses profissionais não qualidades podem executar sem constituir uma ameaça à segurança dos pacientes — afirma Mickael Bech, membro da Comissão de Robustez do Setor de Saúde dinamarquês

Na Finlândia, um estudo publicado em 2023 com 2 mil enfermeiros que trabalham com idosos no país concluiu que um terço deles não se sente capaz de providenciar cuidados suficientes. E o governo estima que o país precisa de mais 30 mil enfermeiros até 2030.

Teppo Kröger, diretor do Centro de Excelência em Pesquisa sobre Envelhecimento e Cuidados da Universidade de Jyväskylä, aponta dois problemas principais na Finlândia: falta de trabalhadores e de recursos no setor.

É um “ciclo vicioso”, ele diz: os recursos não estão no nível adequado, então a equipe de funcionários também não. Logo, o trabalho se torna mais difícil e mais pessoas deixam o setor, o que por sua vez mina o trabalho de quem permaneceu.

— Mesmo que houvesse mais pessoal disponível, não haveria recursos suficientes para empregá-los — explica o pesquisador.

Apesar de terem territórios de distintos tamanhos, Dinamarca, Finlândia, Suécia e Noruega têm um outro problema em comum: desequilíbrios na distribuição dos cuidados de saúde em seus municípios e áreas rurais.

Na Noruega, por exemplo, mesmo com recursos e salários melhores do que nos vizinhos, as “longas distâncias” dificultam o trabalho do setor, afirma o médico Gunnar Bovim, que liderou uma comissão montada pelo governo para avaliar o setor da saúde.

— Há um problema em fazer com que as pessoas consigam o serviço de enfermagem domiciliar se tiverem que percorrer 40 quilômetros — diz.

O pesquisador sugere tornar mais eficazes os serviços de saúde e sociais para lidar com o problema, além de promover mais digitalização e desenvolvimento tecnológico.

‘Pode haver uma ruptura’

Nos nórdicos, em geral, a maior parte do setor da saúde é responsabilidade das prefeituras. Em 2023, na Finlândia, o governo alterou isso, passando o bastão para conselhos regionais em uma tentativa de reduzir desigualdades na prestação de serviço.

Já na Dinamarca, governos locais atuam para reduzir as diferenças no trabalho. Algumas prefeituras começaram a distribuir os turnos extras entre todos os trabalhadores do setor, a fim de aliviar a carga do segundo escalão de trabalhadores.

A questão geográfica anda lado a lado com a demográfica. Com cada vez mais jovens se mudando para as grandes cidades para estudar ou trabalhar, pais e mães, ao chegar numa idade mais avançada, passam a não ter mais o cuidado informal dos filhos, dizem especialistas.

E todo esse cenário põe uma questão maior sobre o Estado de bem-estar social no qual os nórdicos são formados. Cidadãos pagam altos impostos porque confiam que o Estado dará retorno em diversos serviços, incluindo acesso à saúde gratuita.

— Quando há cada vez mais lacunas entre as promessas oficiais e a realidade, isso pode se tornar [um desafio] muito grande — diz Kröger, o pesquisador da Finlândia. — E isso pode constituir algum tipo de ruptura. Essa é certamente uma possibilidade no futuro.

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