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"Não é um momento de festa”, diz novo presidente do Peru ao assumir cargo

O perfil moderado de Sagasti surgiu como uma carta de consenso entre as novas bancadas do Congresso, a maioria populista

Peru: Novo presidente assume e fala sobre reflexão para saber onde o país perdeu o rumo (Sebastian Castaneda/Reuters)

Peru: Novo presidente assume e fala sobre reflexão para saber onde o país perdeu o rumo (Sebastian Castaneda/Reuters)

EC

Estadão Conteúdo

Publicado em 17 de novembro de 2020 às 17h53.

Francisco Sagasti, um ex-funcionário do Banco Mundial cuja aparência lembra a do personagem 'Dom Quixote', chegou à presidência do Peru com o enorme desafio de administrar um país abalado por uma crise política e uma pandemia devastadora que provocou uma forte recessão.

Escolhido na segunda-feira como novo presidente do Congresso por seus pares, Sagasti assumirá a presidência do Peru na tarde desta terça-feira, 17, em sessão solene (18h de Brasília).

"Não é um momento de festa, temos muitos problemas, tragédias e dificuldades (...). É um momento para nos perguntarmos onde foi que perdemos o rumo", declarou Sagasti após ser eleito novo chefe do Congresso.

Aos 76 anos, Sagasti é um estreante na política e no Parlamento, do qual é membro desde março de 2020 como um dos nove legisladores do partido Morado (centrista).

"Dom Quixote Sagasti é o novo presidente do Peru!!!! Agora vamos trabalhar contra a corrupção e a crise política!!!", tuitou a deputada de esquerda Rocío Silva Santisteban para saudar a eleição do novo presidente do Congresso e do país.

Sua barba grisalha contribui para a semelhança com Dom Quixote, embora os desafios de governar o Peru pareçam gigantescos em comparação aos moinhos de vento enfrentados pelo famoso personagem do escritor espanhol Miguel de Cervantes.

O perfil moderado de Sagasti surgiu como uma carta de consenso entre as novas bancadas do Congresso, a maioria populista.

Seu nome permitiu contornar a crise que começou há uma semana, quando esse mesmo Parlamento destituiu Martín Vizcarra e acendeu o estopim de protestos massivos que deixaram dois mortos e cem feridos pelas ruas do país.

Como líder da bancada do Partido Morado, Sagasti era contra a destituição de Vizcarra. No Congresso, presidia a Comissão de Ciência, Inovação e Tecnologia.

Sagasti começou na política partidária em 2016 com a criação do Partido Morado, do qual é cofundador.

Formado em engenharia industrial pela Universidade Nacional de Engenharia de Lima, Sagasti recebeu o doutorado em ciências sociais nos Estados Unidos pela Pennsylvania State University.

Trabalhou no Banco Mundial como consultor e chefe da Divisão de Planejamento Estratégico no fim dos anos 80 e lecionou na Universidade do Pacífico, na Pontifícia Universidade Católica do Peru, no Instituto de Negócios de Madri e na escola de Negócios de Wharton, na Pensilvânia.

Neto de um herói da guerra

Nascido em Lima em 10 de outubro de 1944, Sagasti é neto de Francisco Sagasti Saldaña, integrante do Exército peruano que derrotou as forças chilenas na Batalha de Tarapacá em novembro de 1879.

Sua família materna é de origem austríaca e radicada no Chile, onde vive.

Sagasti foi um dos 700 reféns do comando terrorista do MRTA que invadiu a residência do embaixador japonês em Lima em dezembro de 1996 (até abril de 1997), onde ficou por cinco dias antes de ser libertado.

Receita de Strauss

A música é um dos seus maiores hobbies: toca piano, violão, compõe canções e adora música clássica.

Além da semelhança com Dom Quixote, Sagasti é uma espécie de Mick Jagger político, já que não parece ter a idade que tem.

A receita para a jovialidade é que, além de se exercitar e se alimentar bem, Sagasti segue "a receita de Johann Strauss: Vinho amigas e música", explicou em uma entrevista em fevereiro de 2017 à jornalista Tamara Wong Fuster.

Casado três vezes e pai de sete filhos, o novo presidente peruano afirma já ter cumprido o "serviço conjugal obrigatório" por 37 anos.

Terceiro em oito dias

Sua eleição, em votação em que era o único candidato, fez dele automaticamente o novo presidente do Peru, o terceiro a ocupar o cargo em oito dias.

A crise foi desencadeada em 9 de novembro pelo próprio Congresso que destituiu o popular presidente Martín Vizcarra (centro-direita) num processo relâmpago de impeachment, sob a acusação de suposta corrupção quando era governador em 2014. A denúncia está sendo investigada pelo Ministério Público e a Justiça proibiu o ex-presidente de deixar o Peru por 18 meses.

No dia seguinte, o chefe do Congresso, Manuel Merino, também de centro-direita, tomou posse, mas milhares de cidadãos indignados principalmente jovens, saíram às ruas para protestar contra o que chamaram de "golpe de Estado".

Os protestos, que duraram cinco dias, foram reprimidos com violência pela polícia, deixando dois mortos e mais de cem feridos.

A bancada do centrista Partido Morado de Sagasti foi a única que votou em bloco contra a destituição de Vizcarra, o que contribuiu para que assumisse a liderança do novo governo de transição até 28 de julho de 2021, dia do bicentenário da Independência do Peru. As eleições presidenciais e legislativas estão convocadas para 11 de abril.

Beneplácito de Vizcarra

A eleição de Sagasti foi saudada na segunda-feira por centenas de manifestantes reunidos em frente ao prédio do Congresso, em outros pontos de Lima e em várias cidades.

O parlamentar disse que as prioridades de sua presidência interina de oito meses serão a pandemia do coronavírus (o país acumula 930 mil infecções e 35 mil mortes), a recessão econômica o combate à corrupção e à insegurança, além da realização de eleições limpas.

É basicamente a mesma agenda promovida por Vizcarra, que saudou a eleição de Sagasti, afirmando que ele "terá condições de suportar a difícil situação do país". O presidente deposto havia denunciado a falta de "legalidade e legitimidade" de Merino.

Abandonado pelo Congresso, Merino renunciou no domingo, cinco dias depois de assumir o cargo, encurralado por protestos nos quais Inti Sotelo, de 24 anos, e Jack Pintado, de 22, agora chamados de "Heróis do Bicentenário", morreram.

O placar da votação na qual foram escolhidos na mesma chapa Sagasti e os três novos vice-presidentes da mesa diretora do Congresso foi de 97 votos a favor e 26 contra. Com a nova composição, o país espera encontrar uma saída para a crise política, de legitimidade e de violência repressiva.

"O que oferecemos? O que falta ao nosso país neste momento, confiança", disse Sagasti depois de ser eleito, ocasião em que lamentou a morte dos dois jovens. "Quando um peruano morre, e mais ainda se é jovem, todo o Peru está de luto. E se ele morre defendendo a democracia, a indignação se soma ao luto", afirmou em um discurso emocionado, contrastando com a grosseria de Merino.

Com Sagasti como presidente, a liderança do Congresso será assumida pela esquerdista Mirtha Vásquez, que também votou contra a destituição de Vizcarra - ao contrário de outros em seu partido.

Porém, ninguém pode prever o que o Congresso fará no governo de Sagasti, depois de frequentes confrontos com Vizcarra nos últimos dois anos e com seu antecessor Pedro Pablo Kuczynski (2016-2018).

O fragmentado Parlamento é dominado por quatro partidos populistas. Antes, o fujimorismo tinha hegemonia, mas perdeu-a em janeiro nas eleições extraordinárias depois que Vizcarra dissolveu constitucionalmente o Congresso para superar outra crise, em setembro de 2019.

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