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Retorno fácil e gigantesco no Brasil é coisa do passado

Por duas décadas, os brasileiros investiram em títulos públicos e conseguiam retorno de mais de 20% por ano. Hoje, isso não existe mais

Mercado financeiro: as corretoras estão reforçando as equipes de pesquisa de renda variável (Bolsa/Divulgação)

Karla Mamona

Publicado em 17 de dezembro de 2019 às 16h09.

(Bloomberg) -- Era o tal do Kit Brasil. Por duas décadas, investidores seguiram religiosamente uma regra simples: despejar recursos em títulos públicos, acrescentar alguns poucos ativos diferentes e embolsar um retorno fácil e generoso de 10%, 15% e, às vezes, mais de 20% ao ano.

Hoje, porém, após sucessivos cortes na taxa Selic nos últimos anos para pouco mais de um ponto percentual acima da inflação de 3,3%, o Kit está praticamente morto.

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Em seu lugar, surgiu algo raramente visto por estas bandas: a disposição de correr risco para obter retorno. Os investidores de repente passaram a estudar relatórios de pesquisa, comprar ações badaladas e se interessar por títulos de alto rendimento. Isso não é novidade em grande parte do mundo, mas no Brasil é revolucionário.

Até agora, pelo menos, está tudo funcionando bem. Empresas estão vendendo quantidades sem precedentes de títulos de dívida para aproveitar essa nova demanda. A bolsa bate recorde quase diariamente. As corretoras estão reforçando as equipes de pesquisa de renda variável. E dezenas de executivos saíram de instituições financeiras de primeira linha nos últimos dois anos para abrir seus próprios fundos, acreditando que podem ganhar mais se guiarem clientes para investimentos mais complexos.

“É um mundo novo”, disse Daniel Motta, responsável pela área de negociação de renda fixa e variável do Goldman Sachs, em São Paulo.

Para a combalida economia brasileira, existem enormes benefícios potenciais nessa mudança. Ao obter acesso ao tipo de financiamento que nunca tiveram nos velhos dias do Kit Brasil, as empresas podem investir, expandir e contratar com mais facilidade. Existem perigos também. À medida que os brasileiros entram de cabeça em produtos financeiros mais arriscados que mal conhecem, alguns alertam para um movimento descontrolado que pode inflar os preços dos ativos, criando o risco de uma reversão nos mercados que poderia queimar os novatos.

“O número crescente de pessoas físicas ingressando no mercado de ações brasileiro é um risco, obviamente“, disse Fernando Siqueira, gestor da Infinity Asset Management. Esse risco, segundo ele, é mitigado em certa medida pelos novos produtos de pesquisa disponíveis aos investidores.

A taxa básica Selic caiu para 4,5% após o quarto corte deste ano, em 11 de dezembro. Embora os juros estejam baixíssimos ao redor do mundo — 0,25% em Israel, -0,5% na zona do euro e -0,1% no Japão —, o patamar da Selic é o mais chocante e o que melhor representa a nova normalidade do dinheiro fácil.

Há apenas três anos, a Selic passava de 14%. Em 1999, chegou a 45%, cerca de 40 pontos percentuais acima da inflação vigente.

Há tempos se desenrola um grande debate teórico sobre as razões para o juro brasileiro ser tão alto, mas um componente indiscutível é o passado de hiperinflação e o quanto aquilo assustou os investidores. À medida que essa memória se distanciou, as autoridades monetárias ganharam espaço para reduzir a Selic, no esforço de impulsionar uma economia com crescimento praticamente nulo por boa parte da última década.

O impacto da queda dos juros talvez tenha sido mais visível no mercado de títulos corporativos doméstico. As emissões aumentaram de cerca de R$ 67 bilhões em 2016 para R$ 165 bilhões no acumulado deste ano, segundo dados compilados pela Bloomberg.

Entre as companhias que estão captando pela primeira vez está a Usina Coruripe Açúcar e Álcool. Sua dívida recebeu classificação Caa1 pela Moody’s Investors Service, nota sete níveis abaixo do grau de investimento. Ainda assim, investidores adquiriram cerca de R$ 713 milhões em papéis com vencimento em seis anos na colocação feita em novembro.

Os títulos têm juros pós-fixados e colateral. A tranche sênior pagou 3 pontos percentuais acima da taxa local atrelada à Selic e as notas subordinadas pagam 9 pontos percentuais acima da taxa. Nas cotações atuais, são cerca de 7,9% e 13,9%, respectivamente.

Os investidores também estão aplicando cada vez mais em fundos multimercado e fundos de ações.

Os fundos multimercado captaram mais de R$ 200 bilhões nos últimos quatro anos, mais de cinco vezes o total registrado entre 2006 e 2015. Os fundos de ações captaram R$ 67,5 bilhões nos primeiros 11 meses de 2019, mais que o dobro do valor acumulado no ano passado e a maior quantia em uma década.

Esses fluxos contribuíram para a alta de 50% da bolsa nos últimos dois anos. Em dólares, o ganho é 10 vezes maior que o do índice de referência para mercados emergentes.

Um IPO (initial public offering ou abertura de capital) representa perfeitamente o clima e o momento do mercado: a oferta de US$ 2,25 bilhões da XP na semana passada e o salto de 40% no papel nos três dias seguintes.

A XP é a maior corretora do Brasil em volume de negociação de ações, especializada na compra e venda de ações para pessoas físicas, grupo que pela primeira vez supera em número as pessoas presas no Brasil: 1,5 milhão versus 800.000. O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, destacou com entusiasmo essa comparação em uma conferência em São Paulo no mês passado.

Esse contingente, contudo, ainda representa menos de 1% da população. Para se ter uma ideia, mais de 50% dos americanos investem no mercado acionário. Embora os investidores institucionais — fundos mútuos, fundos de pensão e etc. — invariavelmente detenham ações, a quantia continua sendo insignificante. Teresa Barger, presidente da Cartica Management, com sede em Washington, estima que investidores institucionais mantenham de 94% a 98% dos recursos estacionados em instrumentos de renda fixa, uma parcela que ela considera “espantosamente alta”.

“Essa grande rotação ainda tem um longo caminho a percorrer”, disse Barger, que supervisiona US$ 2 bilhões, grande parte no Brasil.

No entanto, tudo indica que esse movimento vai demorar para ganhar corpo.

A história brasileira é marcada por episódios em que as autoridades cortaram juros e precisaram reverter o movimento meses depois por conta do retorno da inflação. Desta vez, parece que os juros podem permanecer baixos por mais tempo. A taxa de inflação está próxima do menor patamar em duas décadas. Nem mesmo a recente depreciação do real — provocada em parte pelos cortes de juros — parece despertar o temor de retomada dos aumentos dos preços ao consumidor.

“A migração de ativos de investimentos de renda fixa no Brasil para produtos de maior rendimento e maior volatilidade está apenas começando”, disse Reinaldo Le Grazie, que já foi diretor do Banco Central e, em novembro, ingressou na Panamby Capital, gestora de recursos que está abrindo um fundo de hedge no País. O fundo investirá cerca de 40% da carteira em ações locais. “Haverá muitas oportunidades pela frente.”

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