5 livros da língua portuguesa de autores africanos para o fim de semana
Em artigo, Selma Caetano, curadora do prêmio Oceanos de Literatura, apresenta um panorama das literaturas africanas de língua portuguesa
Rodrigo Caetano
Publicado em 20 de novembro de 2020 às 14h05.
Última atualização em 20 de novembro de 2020 às 14h10.
Conhecer as literaturas africanas de língua portuguesa — no plural porque a expressão cultural de cada país é singular embora, muitas vezes, sejam tratadas na homogeneidade —, nos dá ideia da diversidade do continente. É importante lembrar que a luta pela independência dos países africanos foi também uma luta de resgate dessa diversidade.
As políticas culturais do Brasil, de todos os tempos, minimizam a presença do negro e da África na cultura brasileira, quando esta é inseparável da construção e da dinamização de nossa própria identidade.
Lograr uma relação de 5 livros que dê conta de demonstrar essa diversidade não é fácil. Vale tentar pois é fundamental para o Brasil conhecer e se aproximar da produção literária dos países africanos que, se literariamente muito devem ao Brasil, hoje suas histórias e trajetórias presentes no literário buscam a utopia de transformar a sociedade e os homens.
Luuanda (1963), do luso-angolano Luandino Vieira — Companhia das Letras*, Brasil, 2006 (*está esgotado – é possível comprar em sebo)
A obra de Luandino Vieira foi quase toda escrita na prisão de mais de uma década, acusado de envolvimento com o Movimento Popular de Libertação de Angola - MPLA, inclusive Luuanda cuja história da primeira edição parece inverossímil. Para despistar a polícia política, o livro foi impresso na tipografia do jornal ABC, de Angola, e inscrito ao concurso literário da Sociedade Portuguesa de Escritores, do qual foi vencedor acarretando o fechamento da entidade e a prisão dos três componentes do júri. Depois disso, o livro tornou-se muito procurado e uma edição à revelia do autor foi feita por dois agentes da Polícia Internacional e de Defesa do Estado de Portugal - PIDE, e apresentada como sendo uma edição “brasileira”, de uma editora fantasma de Belo Horizonte.
Nas três narrativas que compõem o livro, deve-se destacar a linguagem que utiliza o português falado pelo povo de Luanda e expressões do kibumdu para, com alto nível literário, construir a vida pobre dos bairros periféricos de Luanda, os musseques, e dar voz às pessoas comuns. O primeiro conto, a incômoda estória da “Vavó Xixi e seu neto Zeca Santos”, poderia ter como cenário as favelas ou periferias das cidades brasileiras onde, apesar da ausência de qualquer vislumbre de oportunidade, o povo teima em sonhar. O passar dos anos não tirou a atualidade da obra desse angolano, nascido em Portugal, por isso, dele, qualquer leitura é oportuna.
“Instruções para uso posterior ao naufrágio”, do cabo-verdiano José Luiz Tavares — Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Portugal, 2019
A relevância de José Luiz Tavares para a poesia cabo-verdiana é imensa. Trabalho de 15 anos, a editora abysmo lançou em 2019 sua tradução de 65 sonetos de Camões ao crioulo cabo-verdiano, numa edição bilíngue intitulada Ku Ki Vos/Com Que Voz. “ Nalguns passos terei traído miseravelmente o grande Camões, mas a língua cabo-verdiana terá ganho um incontornável monumento literário, fecundo solo onde amanhã poderão enraizar-se os poetas cultos e eruditos, e todos aqueles que apostam num porvir de poética resplandecência para a nossa sagrada e maltratada língua materna ”, disse no lançamento da obra.
Nascido em Tarrafal, Ilha de Santiago, Cabo Verde, José Luiz é um dos grandes nomes da moderna poesia cabo-verdiana traduzido para inglês, espanhol, francês, alemão, italiano, letão, finlandês, russo, mandarim, neerlandês e galês. A editora brasileira Escrituras dele publicou Contrabando de cinzas e Lisbon Blues, que reúne dois de seus títulos (todos esgotados e disponíveis em sebo). Destaco seu último livro, Instruções para uso posterior ao naufrágio, poemas que prenunciam que o verso mente pois entre o ver e o verso há o intervalo que obscurece a realidade. “Busca nos versos a antiga morada? / Recorda-te que a vida é só pancadas, / por isso foge tu de tais maçadas, / recolhe as velas já enfumadas. (...)
Um rio preso nas mãos , da angolana Ana Paula Tavares — Kapulana, Brasil, 2019
As 38 crônicas que compõem Um rio preso nas mãos ressaltam o conhecimento da autora sobre a diversidade e a política de Angola, e os problemas não resolvidos no pós-independência. Mitologia, literatura, língua, tradição oral, política, resistência e o povo de Angola, sobretudo as mulheres, são alguns dos temas que Ana Paula visita com muita lucidez e poesia.
“Desafiar o silêncio” reivindica o direito à escola para as mulheres — tanto do campo quanto das cidades, “Os passados mais antigos combinaram-se com os passados mais recentes para tornar a escola uma coisa de homens e mesmo para estes só para alguns”, escreve. “As minhas pedras” fala do aprendizado do esforço de existir num tempo em que “a desordem e a ausência instituiu nas nossas vidas outros sentidos que não os que rotinas mais recentes haviam criado”. “Aprender a falar a língua de Angola” fala dos contatos e das misturas a modificar a língua que “ se fez luz e arte e ocupou geografias afastadas que o trabalho escravo cimentou”. Textos poéticos ao tempo dos sonhos e das lutas revolucionárias mas melancólicos no balanço final, quando, depois de tantos anos de guerras e sangue derramado, a utopia da liberdade foi corrompida por políticas e economias neocoloniais.
Autora de mais de uma dezena de livros, Ana Paula Tavares é poeta, cronista, historiadora e professora. Nasceu em Lubango, Angola, e vive em Lisboa.
Sua Excelência, de corpo presente , do angolano Pepetela — Texto Editores, Angola, 2018; Dom Quixote, Portugal, 2018; Kapulana, Brasil, 2020
Sua excelência, de corpo presente, finalista do Oceanos 2019, é um livro singular que diz respeito à literatura brasileira, especificamente à Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Com fina ironia, Pepetela reconstrói a história política de muitos países africanos, e do Brasil, através da voz de um defunto, um militar incompetente que, de artimanha em artimanha, chega à presidência do país.
Em seu próprio velório, o protagonista/defunto/presidente, sem nome, repassa os meandros corruptos do poder, o nepotismo familiar, as traições, o desastre que foi sua gestão pública etc etc numa alegoria que muito faz lembrar a tragicomédia política brasileira atual.
Pepetela nasceu em Benguela, Angola, e lutou com o MPLA nos anos 60 e 70. Depois da independência de Angola, tornou-se Vice Ministro da Educação. Tem mais de 20 livros publicados e, entre sua obra, destaco ainda Mayombe, de 1980, sobre a luta armada da qual fez parte e o sentido da história.
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Vácuos , do moçambicano Mbate Pedro — Cavalo do Mar, Cabo Verde, 2017; Cepe, Brasil, 2018
Mbate Pedro nasceu e vive em Maputo, Moçambique. Médico, poeta e editor, dedica-se também ao fomento da literatura em língua portuguesa, em especial a moçambicana e a brasileira.
Vácuos, seu quarto livro de poesia, é estruturado em 7 poemas permeados pela angústia diante da morte das coisas e dos seres, e pelo amor.
Há / sempre no lugar do morto / um outro corpo novinho / a reluzir... / encravado numa morte antiquíssima / mais antiga que o dilúvio / e entretanto / prestes a acender uma vela / para que o rosto não se afogue / na caligrafia do medo / (haverá maior naufrágio?)
O Prêmio Oceanos
Criado no Brasil em 2003, com o nome de Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira, o Oceanos expandiu a sua abrangência e tornou-se uma das principais referências no cenário literário. Em 2007, passou a contemplar todos os livros escritos em língua portuguesa publicados no Brasil. De 2007 a 2014, o prêmio garantiu por regulamento a seleção de 20% de livros portugueses e/ou africanos entre os semifinalistas e finalistas.
Em 2015, o Banco Itaú assumiu o patrocínio do prêmio. Com a parceria do Itaú Cultural, responsável por todo o operacional do prêmio, a curadora Selma Caetano e um conselho formado pelos estudiosos de literatura Antônio Carlos Secchin, Beatriz Resende, Benjamim Abdala Jr., Flora Sussekind, José Castello, Leyla Perrone-Moisés, Lourival Holanda e Manuel da Costa Pinto avaliaram e aperfeiçoaram o regulamento. Com a mesma estrutura democrática e a diversidade do corpo inicial de jurados, o prêmio passou a chamar-se Oceanos.
Em 2017, depois de 14 edições contemplando obras de literatura em língua portuguesa editadas no Brasil, o Oceanos abriu as suas inscrições para livros escritos em língua portuguesa publicados em qualquer lugar do mundo. Tornou-se, assim, um prêmio transnacional em sua estrutura e em sua dinâmica de avaliação, com júris compostos por especialistas de países do continente africano, Brasil e Portugal.
Em 2019, o Oceanos firmou apoio institucional com a CPLP — Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e parceria com o Ministério da Cultura e das Indústrias Criativas de Cabo Verde. O Oceanos tem como objetivo seguir com os avanços conquistados até então, possibilitando, futuramente, a participação de pelo menos um curador natural de cada um dos nove países da CPLP.
Selma Caetano é gestora cultural, curadora do Prêmio Oceanos e presidente do conselho deliberativo da Associação Oceanos Expressivos da Língua Portuguesa