Opinião: Por que todo bom economista deveria ser um feminista
Economistas deveriam ser os primeiros a saber dos efeitos perversos da concentração excessiva de poder, escreve Luigi Zingales, da Universidade de Chicago
João Pedro Caleiro
Publicado em 23 de setembro de 2018 às 08h00.
Última atualização em 24 de setembro de 2018 às 11h36.
Artigo de Luigi Zingales, professor da Universidade de Chicago e ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI), publicado originalmente no blog ProMarket
Casos de assédio sexual raramente chegam aos tribunais, especialmente quando envolvem um acadêmico.
A vítima não tem nenhum interesse em aparecer como causadora de problemas em uma comunidade fechada. A universidade que emprega o suposto assediador tem ainda menos interesse em aparecer na capa dos jornais como uma instituição não amigável aos estudantes ou ao corpo docente mais jovem.
O problema é frequentemente resolvido com um entendimento, um acordo de confidencialidade e a transferência do suposto assediador para uma outra instituição – ações similares à forma com que a Igreja Católica lidou com os padres acusados de pedofilia.
Por essa razão, o mundo acadêmico, e especialmente as profissões econômicas e de finanças, podem aprender imensamente com um caso de assédio sexual que de fato chegou aos tribunais: Ravina v. Columbia, decidido há pouco mais de um mês em uma corte federal em Nova York.
Enrichetta Ravina, então uma professora assistente na Columbia Business School, alegou que Geert Bekaert, um professor titular no mesmo lugar, fez propostas sexuais a ela.
Ravina declarou que quando ela o rejeitou, Bekaert a retaliou, falando mal dela na comunidade acadêmica e paralisando seu projeto de pesquisa conjunta, no qual ele é que tinha o controle dos dados.
O júri absolveu Bekaert da acusação de assédio sexual, mas julgou que ele teve responsabilidade pela retaliação, forçando ele e a Columbia a pagarem 750 mil dólares em danos compensatórios, com Bekaert, sozinho, pagando outros 500 mil dólares em danos punitivos.
A primeira lição a ser aprendida do julgamento é que casos de assédio sexual são muito difíceis de provar em uma corte, mesmo quando várias mulheres reclamam ao mesmo tempo, como aconteceu nesse caso.
Na falta de evidência corroborativa, casos de assédio sexual frequentemente acabam se resumindo à palavra dela contra a palavra dele e à credibilidade relativa de cada uma das partes.
O litígio é caro demais (tanto financeiramente quanto emocionalmente) e insuficiente. Então, ao mesmo tempo que devemos encorajar e apoiar as mulheres para que falem publicamente, também precisamos explorar outras formas de tornar a academia um ambiente onde as mulheres podem prosperar.
Nós que somos do corpo docente sênior (e em particular, do corpo docente masculino sênior) deveríamos fazer do comportamento respeitoso em relação às mulheres um fator explícito nas nossas decisões de promoção e contratação, da mesma forma que são atualmente o ensino e a mentoria a alunos de PhD.
Além disso, deveríamos exigir – como sugerido por Paola Sapienza, do corpo docente de Finanças na Universidade de Northwestern e membro do conselho do Comitê Acadêmico Feminino de Finanças – de contratados de fora, especialmente daqueles que vêm com uma oferta de tenure [estabilidade]*, uma declaração própria de que se comportaram de acordo com o código de ética das suas instituições prévias, tornando mais difícil para assediadores notórios se reciclarem.
É triste que o desejo legítimo de aumentar as taxas de tenure no ramo da economia e das finanças tenha levado a mais discussões sobre relaxar o padrão para tenure das mulheres em vez de sobre como melhorar o ambiente em que elas operam.
Criar um ambiente onde a perspectiva dominante não é definida apenas pelos homens enriquece as universidades com talentos que de outra forma seriam perdidos. Em contraste, criar diferentes padrões diferentes de tenure para homens e mulheres teria apenas o efeito de estigmatizar o corpo docente feminino merecedor, como se fosse de segunda classe.
A segunda lição a ser aprendida deste julgamento é o poder de controle dos dados. Bekaert foi condenado por retaliação porque abusou do seu poder – seu poder, como membro sênior do corpo docente, em relação à opinião da sua profissão, e seu poder, como intermediário essencial, em relação ao uso dos dados.
Apesar do abuso do grau de antiguidade não ser único à profissão acadêmica (Harvey Weinstein usou seu grau de antiguidade maciçamente no seu benefício no mundo do entretenimento), o poder dos bancos de dados é bastante único e relativamente novo, uma situação que exige algumas reflexões.
O valor dos dados explodiu não apenas nos negócios, mas também na academia. O acesso aos dados corretos pode fazer uma carreira. Dados que fazem uma carreira foi o que Ravina esperava obter quando aceitou a oferta de Bekaert para trabalhar com ele em um projeto.
Mas o acesso aos dados não é um negócio de oportunidades iguais. Apesar do júri ter julgado Bekaert inocente da acusação de uso do seu acesso único aos dados para demandar favores sexuais, o que apareceu dos e-mails revelados no julgamento é que ele estava utilizando os dados para obter uma série de publicações sem saber muito sobre o tema específico do trabalho acadêmico.
Também foi revelado que na medida que Ravina havia investido longos períodos na “limpeza” dos dados, Bekaert estava em uma posição de retardá-la, no sentido mais tradicional do termo.
Este poder de bloqueio, especialmente quando combinado com o "ou sobe ou cai fora" típico da academia, é muito perigoso.
Professores assistentes tem apenas poucos anos para provar seu valor e ganhar tenure. Do contrário, serão demitidos. Investir um par de anos em limpar um banco de dados enorme pode levar a vários trabalhos acadêmicos vitoriosos que fazem uma carreira.
Mas o impacto destes trabalhos acadêmicos é maximizado se forem circulados e publicados antes que o membro docente seja avaliado para tenure.
Se a publicação destes trabalhos estiver sujeita à arbitrariedade de apenas uma pessoa, então essa pessoa ganha uma quantidade de poder excessiva.
Em um apelo ao reitor, o corpo docente da Columbia Business School propôs uma regra padrão interessante para resolver estes desequilíbrios de poder.
Em caso de disputa entre um docente júnior e um sênior, o direito de propriedade intelectual de um projeto conjunto deve ser automaticamente alocado ao membro júnior para proteger o lado contratante mais fraco. Uma regra assim deveria ser adotada por todos os departamentos.
O abuso de poder em uma relação de mentoria é explicitamente estigmatizado pelo código de ética recentemente aprovado pela Associação Financeira Americana (AFA), a associação profissional tanto do demandante quanto do réu. Se a AFA quer que seu código seja levado a sério, portanto, deveria aplicá-lo neste caso.
Assédio sexual não é apenas sobre sexo, mas sobre poder. Quanto maior o desequilíbrio de poder, mais provável é que o assédio sexual ocorra, independente da autoridade moral das pessoas envolvidas.
Trabalhadores de assistência, por exemplo, frequentemente abusam sexualmente das mesmas pessoas que escolhem ajudar (veja os casos no Haiti, Nepal e na África Ocidental).
Nós economistas deveríamos ser os primeiros a saber dos efeitos perversos produzidos pela concentração excessiva de poder e os primeiros na fila para limitar esta concentração e os abusos potenciais de poder que advém dela.
Como todo bom economista sabe, os mercados funcionam melhor quando são competitivos. Por isso, parafraseando Victoria Bateman, todo bom economista também deveria ser um feminista, defendendo um campo nivelado de jogo para todos os gêneros.
Esta defesa deveria acontecer em todos os mercados, mas especialmente naquele dos economistas acadêmicos, onde não temos ninguém para culpar além de nós mesmos.
Nunca haverá igualdade de gênero na academia até que os homens se importem tanto com o assédio sexual quanto as mulheres, até que a criação de um ambiente imparcial de gênero seja tão importante quanto ser um bom professor e até que o poder conferido pelo controle dos dados não seja deixado para a arbitrariedade dos indivíduos.
Se este julgamento tiver ajudado a nos mover mesmo que um pouco nesta direção, a dor e sofrimento que ele causou não terá sido em vão.
* Tenure, em inglês, é um cargo universitário marcado pela maior estabilidade, liberdade e influência, sem equivalente exato no sistema brasileiro.
Tradução: João Pedro Caleiro