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Enquanto isso, no mundo real...

As empresas apostam no longo prazo e continuam investindo

EXAME.com (EXAME.com)
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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 11h08.

"É preciso que essa gente saia dos seus gabinetes e ande pelo Brasil, para ver o Brasil que trabalha."

A frase acima foi proferida pelo presidente da República, Fernando Henrique Cardoso em 13 de junho, quando a histeria do mercado financeiro atingia o ponto máximo. O presidente lançou a provocação ao comparecer à inauguração de uma nova fábrica no complexo industrial da Toyota, em Indaiatuba, cidade vizinha a Campinas, no interior paulista. A montadora japonesa completou investimentos de 300 milhões de dólares para expandir a linha de montagem da nova versão do modelo Corolla, gerando 1 000 empregos diretos e firmando o Brasil como base de abastecimento na América Latina.

O recado de Fernando Henrique foi endereçado a indefinidos "especuladores", tidos como responsáveis pelo tumulto que tomou conta do mercado financeiro na primeira quinzena de junho. Independentemente do mérito do presidente no julgamento de quem deve levar a culpa por colocar o mercado à beira de um ataque de nervos, ele tem toda a razão em um ponto: a realidade vista por quem circula pelo país para conferir o andamento da produção é bem diferente da percepção emitida por alguns analistas de bancos e investidores financeiros.

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"A economia real vai bem, mais devagar do que se imaginava no começo do ano, mas está andando", diz o economista José Roberto Mendonça de Barros, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. "Há um mundo de investimentos em curso." Comprovando a afirmação de Mendonça de Barros, curiosamente a mesma quinzena do pânico foi marcada por diversas inaugurações e anúncios de investimento no setor industrial. Uma semana antes de a Toyota dar partida a sua nova linha de montagem, a Nestlé havia promovido uma festa em Araras, no interior de São Paulo, para assinalar o início das obras de sua 24a fábrica no Brasil. Orçada em 95 milhões de reais, quando ficar pronta, no segundo semestre de 2003, a unidade poderá produzir até 22 000 toneladas de café solúvel por ano e deverá exportar toda a produção para Rússia e Ucrânia. "É uma decisão estratégica para a Nestlé mundial", diz Ivan Fábio Zurita, presidente da subsidiária brasileira. "Até 2004 devemos quadruplicar as vendas externas e aumentar sua proporção no nosso faturamento." Atualmente, cerca de 5% das receitas da empresa, de 5,7 bilhões de reais em 2001, vêm do exterior.

O exemplo da Nestlé é um indicador da disposição das empresas estrangeiras de continuar participando e crescendo no mercado brasileiro. Apenas na aquisição da Garoto, concluída no sábado de Carnaval deste ano, a empresa desembolsou 550 milhões de reais, conforme estimativa do mercado. O importante é que cerca de 70% desse total foi transferido pela matriz suíça -- o que mostra o grau de confiança que o grupo Nestlé, presente há mais de 80 anos no país, deposita no Brasil. O ingresso de recursos para a aquisição da Garoto entrou na conta do investimento direto estrangeiro registrado em 2002 -- segundo o Banco Central, até maio o bolo já somava 7,3 bilhões de dólares, dos 18 bilhões previstos para o ano (veja gráfico na pág. 48), mantendo o Brasil no grupo dos países emergentes mais atraentes do mundo, ao lado de China e México. Com uma crescente participação do setor industrial, esse aporte se dá a despeito dos temores diante dos desdobramentos do processo eleitoral. "Ao decidir por um investimento, as empresas analisam o potencial do país", afirma Ana Cláudia Além, gerente da área de planejamento do BNDES. "Esse tipo de investidor pensa no longo prazo."

No caso da Nestlé, há mais bala na agulha. "Ainda temos em vista a compra de mais duas companhias de médio porte neste ano, que já estamos negociando", diz Zurita. Segundo ele, a Nestlé separou mais 150 milhões de dólares para investir no país neste ano. "Aplicaremos metade desse total na renovação do maquinário e o restante para ampliar a capacidade de produção de algumas de nossas fábricas", afirma. "Mas só faremos o que for considerado realmente necessário, como a troca de tecnologia ultrapassada."

Quem ouvisse, na segunda semana de junho, uma conversa dos diretores do grupo Suzano, na sede da empresa, na avenida Faria Lima, em São Paulo, não acreditaria que o país estivesse passando naquele exato momento por um dos momentos de maior descrédito entre os investidores. "Estamos fazendo miséria", diz Armando Guedes Coelho, vice-presidente responsável pela área petroquímica do grupo, que neste ano deve investir em todos os seus negócios algo em torno de meio bilhão de dólares. Em sociedade com a Petrobras e a Unipar, a Suzano pretende inaugurar dentro de dois anos a Rio Polímeros, um complexo industrial de 1,1 bilhão de dólares na Baixada Fluminense. Projetado para usar o gás natural como matéria-prima, o projeto é a mais ambiciosa incursão do grupo na área petroquímica, na qual investe desde o início dos anos 70.

Não deverão faltar também investimentos no setor que deu origem à Suzano -- o de papel e celulose. Um total de 150 milhões de dólares está sendo investido neste ano na modernização e ampliação de sua fábrica situada na cidade de Suzano, na Grande São Paulo. Além disso, no primeiro semestre de 2001, o grupo adquiriu o controle total da BahiaSul, pagando 320 milhões de dólares pela outra metade da companhia, então pertencente à Vale do Rio Doce. Em meados de junho deste ano, a Suzano fechava mais um negócio -- a compra, junto com a Aracruz, de 40 000 hectares de eucaliptos da Vale no Espírito Santo. Cada um dos sócios pagou 25 milhões de dólares pela floresta.

O fato de o setor de papel e celulose ser de capital intensivo e de maturação lenta exige investidores com determinação de assumir riscos de longo prazo. "Pode haver turbulência pela frente, mas estamos sempre pensando num horizonte de longo prazo", diz David Feffer, controlador e presidente da Suzano. Antes de tomar a decisão de construir uma fábrica, é necessário primeiro, com sete anos de antecedência, plantar a floresta que abastecerá a linha de produção. A razão de tanta confiança no setor? Assim como na agricultura, o Brasil tem na indústria de papel e celulose uma das áreas mais dinâmicas e com mais vantagens competitivas em relação a concorrentes estrangeiros. Disponibilidade de terras, clima adequado, mão-de-obra barata e o uso do eucalipto, que dispensa o replantio a cada corte, colocaram o país entre os cinco maiores produtores de papel e celulose do mundo. Um setor que, em 1970, importava 2 bilhões de dólares e hoje tem exportações beirando os 3 bilhões anuais. "Cada vez que adicionamos investimentos e estabelecemos metas de produção, pode acreditar que algum produtor em alguma parte do mundo está sendo deslocado", diz Feffer.

A perspectiva de usar o Brasil como plataforma de exportação é um dos fatores que mais estimulam as corporações, tanto nacionais como internacionais. "Os investimentos voltados para a exportação, que representam um movimento em curso maior do que se imagina, não se deixam abalar por algumas turbulências porque têm uma dinâmica própria de maturação", afirma Mendonça de Barros. "Qualquer que seja o próximo governo, terá de incentivar as exportações, até por necessidade." Esse movimento de internacionalização das empresas brasileiras ajuda a explicar, em parte, o intenso movimento de empresários nos balcões do BNDES. De janeiro a maio deste ano, o banco desembolsou 10,8 bilhões de reais, 32% a mais que no mesmo período de 2001, em financiamentos à produção. "No BNDES não há crise", diz Isaac Zagury, diretor financeiro da instituição. "O lado real da economia é muito diferente do lado do mercado financeiro."

A Unilever, gigante anglo-holandesa dos setores de higiene e limpeza e de alimentos, resolveu um ano e meio atrás dar partida a uma nova operação no Brasil. Dentro de um plano mundial de reestruturação, decidiu que o país teria condições de abrigar sua terceira fábrica de sabonetes Dove -- as demais ficam na Alemanha e nos Estados Unidos. A inauguração da fábrica também coincidiu com a quinzena do pânico: foi realizada na manhã de 14 de junho por Vinícius Prianti, presidente da subsidiária do grupo, em Valinhos, a 80 quilômetros de São Paulo. Construída no antigo complexo de fábricas da Gessy, adquirida pela Unilever nos anos 60, a obra consumiu 33 milhões de reais. Parte da produção já começou a ser exportada para Argentina, Uruguai e Chile. "Investimos 170 milhões de reais em 2001", diz Prianti. "Manteremos a média neste ano."

O que anima a Unilever a sustentar os investimentos em meio às turbulências? "Não há motivo para pessimismo", diz Prianti. "Vemos uma distância entre o Brasil real e a conjuntura financeira, que está sujeita a boatos e especulações." Segundo ele, a Unilever projeta um aumento de 10% sobre o faturamento de 7,7 bilhões de reais registrado no ano passado. Até maio, a empresa havia crescido 13% em relação aos primeiros cinco meses de 2001.

Então as empresas estão passando incólumes pelos tremores do mercado financeiro e ignorando a incerteza do processo eleitoral? "A economia real também sente os efeitos do nervosismo, e isso pode postergar decisões de investimentos", afirma o economista Antônio Corrêa de Lacerda, presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da Globalização Econômica (Sobeet). "Além disso, a volatilidade faz o consumidor retrair as decisões de compra." O impacto tende a ser maior nos bens duráveis, porque dependem mais de crédito.

Esse é bem o caso das vendas de automóveis, 70% das quais realizadas por meio de financiamento. O problema aí não é nada novo: a permanência dos juros num patamar elevado. A comercialização de automóveis no varejo brasileiro de janeiro a maio somou 614 000 unidades, uma queda de 13% sobre o resultado dos cinco primeiros meses do ano passado. No mesmo período, as montadoras reduziram a produção em quase 9%, de 814 000 para 742 000 unidades. Maio, particularmente, foi um mês depressivo: o volume de financiamentos, de 772 milhões de reais, foi 16% inferior aos 918 milhões de abril. "Podemos atribuir essa queda, em parte, à turbulência, mas no Brasil entramos em depressão e euforia quase quinzenalmente", diz Flavio Croppo, presidente da Associação Nacional das Empresas Financeiras das Montadoras (Anef) e vice-presidente do Banco Fiat. Há, segundo ele, outros fatores a considerar -- abril havia sido um mês atipicamente aquecido, porque as montadoras fizeram muitas promoções. "Mas, coincidentemente, a queda de abril para maio foi similar à ocorrida em 1998, o último ano com eleição presidencial", diz Croppo. Em junho, as vendas continuaram retraídas.

"A agitação do mercado financeiro deixa um clima psicológico desfavorável", diz Ricardo Carvalho, presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) e diretor de assuntos governamentais e jurídicos da Volkswagen do Brasil. "Mas esse fator deverá ser passageiro. É uma situação alimentada por boatos do dia-a-dia, e não proveniente da base econômica do país. Acredito que haverá uma recuperação no segundo semestre." A Anfavea mantém a previsão de aumento de 5% no volume de produção de veículos neste ano. Há muitos investimentos em curso ainda no setor. De 1996 até 2000, as montadoras injetaram 12 bilhões de dólares no Brasil. De 2001 a 2003, devem completar mais 6,8 bilhões de investimentos. "Não haverá mudanças nesses valores", afirma Carvalho. "As empresas consideram projeções de médio e longo prazo quando avaliam investimentos nas fábricas. Nessa perspectiva, não há sinais que indiquem uma crise econômica."

O que está mudando é o perfil dos investimentos. Foram abertas 21 novas fábricas de carros no Brasil nos últimos sete anos. Na nova fase, não há mais necessidade de ampliar a capacidade de produção -- as mais recentes expansões foram a da Ford, na Bahia, e a da Toyota, em Indaiatuba. Capacitado para produzir 3,2 milhões de unidades por ano, o setor opera com uma grande capacidade ociosa -- no máximo deverá montar 1,9 milhão em 2002. Para ocupar a capacidade, deverá intensificar a exportação. Já há algum tempo o governo e as montadoras estão empenhados em fechar acordos automotivos com México e Chile. Para o Chile, com o acordo já concluído, até 2005 deverão ser vendidos 200 000 veículos. Com o México, no mesmo prazo, os embarques poderão ser de 700 000 unidades -- 140 000 veículos apenas nos primeiros 12 meses, a contar de julho. Com a queda das vendas para a Argentina, que também baqueou o mercado no ano passado, o México se tornou o segundo maior mercado de exportação de automóveis do Brasil. O mercado argentino já representou 40% das vendas externas de veículos produzidos no país. Hoje não alcança 15%.

A GM está entre as montadoras que contam com a abertura de novos mercados no exterior. A empresa planeja investir 1 bilhão de dólares no Brasil até o fim de 2004. "Não vamos alterar a capacidade de produção, que, no país, é mais do que suficiente", afirma José Carlos Pinheiro Neto, vice-presidente da GM. "Mas investiremos na modernização das fábricas e na adequação da linha de produção para novos lançamentos." A unidade de Gravataí, no Rio Grande do Sul, receberá 250 milhões de dólares entre 2002 e 2004 em investimentos para o lançamento de novos produtos. Entre eles está o Celta na versão com cinco portas, com entrada no mercado prevista para os próximos meses. "Não alteramos o prazo de lançamento", diz Pinheiro Neto. "Para conquistar o consumidor é preciso sempre ousar e mostrar que há novidades. Isso vale quando o mercado está mais receptivo ou quando não." Ao todo, a montadora completará cinco lançamentos neste ano. Mas, com vendas na casa de 30 000 unidades por mês, a GM descartou a possibilidade de aumentar neste ano o faturamento em relação a 2001. A capacidade ociosa nas linhas de produção da empresa chega a 40%. "Até o fim do ano passado, acreditávamos que seria possível crescer", diz Pinheiro Neto. "Agora, se mantivermos a receita, já estará bom. De qualquer maneira, avaliamos que a turbulência seja temporária. Para nossos investimentos, não consideramos esse tipo de interferência."

De imediato, contudo, há efeitos sobre as vendas, que se tornaram mais custosas para os fabricantes. "Temos concedido descontos e promoções adicionais", diz Pinheiro Neto. "Os juros zero, por exemplo, saem caro para nós." A GM, como as demais montadoras, também paralisou temporariamente suas linhas nas últimas semanas, concedendo férias coletivas aos funcionários para adequar o volume produzido à demanda. A única exceção até há pouco era a fábrica de Gravataí. Mas também essa unidade tinha previsão de parada do dia 21 a 24 de junho. As vendas do Celta, que até então vinham resistindo à retração do mercado, caíram 28% de abril para maio.

Podem ocorrer cortes nos investimentos? "Não conheço empresa que tenha pisado no freio", afirma Lacerda, da Sobeet. "Para o setor produtivo, a maior preocupação está na indefinição de regras, e é isso o que gera incerteza e pode provocar a postergação de projetos." As lacunas de regulamentação são sentidas especialmente em setores como o de energia e o de saneamento básico. "O mais importante é termos um marco regulatório definido para os investimentos fluírem", diz José Augusto Marques, presidente da Associação Brasileira da Infra-Estrutura e Indústrias de Base (Abdib), entidade que representa 162 empresas cujo faturamento conjunto foi de 103 bilhões de reais em 2001. "Mas isso depende de vontade política, e só esperamos as principais decisões para o ano que vem." Em todo caso, segundo ele, as empresas do setor miram o longo prazo e as necessidades do país. "A sociedade não tem nada a ver com os prazos políticos e continuará demandando energia, transporte, água e esgoto", afirma. Alguns dados para reforçar essa visão: o consumo brasileiro de energia de 2 300 quilowatts-hora por ano ainda é inferior à média mundial de 2 500 e está longe dos 9 000 dos americanos. Na cidade de São Paulo, 500 000 pessoas deslocam-se a pé todo dia por falta de transporte ou de dinheiro. "É uma demanda absolutamente visível", diz Marques.

Segundo a economista Lídia Goldenstein, da MB Associados, o principal problema da economia brasileira é que sua capacidade de crescimento está comprometida. "A atual situação permite apenas um crescimento medíocre", diz Lídia. "Chegamos a esse ponto devido ao elevado endividamento externo, que nos deixa vulneráveis a qualquer alteração no humor internacional." O ano começou razoavelmente bem, com expectativa de crescimento de 2,5%. Como o cenário não permitiu uma redução dos juros, essa taxa não se confirmou, e a projeção dos analistas caiu para a casa de 1,5% -- pífio, mas ainda positivo, muito diferente da perda de 10% do PIB prevista para a Argentina. "Há tendências positivas, como o processo de internacionalização das empresas e o movimento de aumento das exportações", diz Mendonça de Barros. "Em resumo, o mundo não vai acabar."

Colaboraram: Cláudio Gradilone, Consuelo Dieguez, Cristiane Mano, Eduardo Ferraz, José Maria Furtado, Lidia Rebouças e Nely Caixeta

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