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<EM>A¿pontualidade, o relógio e o desenvolvimento</EM>

Leia a resenha do ex-ministro Mailson da Nóbrega na íntegra

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Da Redação

Publicado em 9 de outubro de 2008 às 10h47.

A pontualidade é uma virtude nos países ricos, mas nem
sempre nos demais. Quando morei e trabalhei em
Londres, me convenci definitivamente de que ser
pontual nada tem de esnobe. Todos ganham quando o
horário é cumprido. Benjamin Franklin estava certo:
"tempo é dinheiro".

A importância do tempo e da pontualidade, a história
do relógio e seu papel no desenvolvimento constituem o
objeto do livro A Geography of Time (New York:Basic
Books, 1997), do psicólogo social americano Robert
Levine.

Levine foi professor visitante na Universidade Federal
do Rio de Janeiro em 1976. Sua primeira aula seria das
10h às 12h. Muitos alunos apareceram às 10h30m e
outros depois das 11h. A surpresa maior veio no final.
Na Califórnia, Levine não precisava olhar o relógio
para perceber a hora do término da aula. Se ficasse
além do tempo, ouvia o barulho do fechar dos livros e
as reclamações dos alunos. Naquela aula aqui no
Brasil, poucos alunos saíram ao meio-dia. Alguns
continuaram com perguntas muito depois.

O descaso dos brasileiros pela pontualidade deve ter
sido um dos estímulos para que Levine estudasse o
tema. Suas pesquisas cobriram 31 países nas quais
constatou diferenças de comportamento entre lugares e
culturas. Para ele, muitos italianos e brasileiros se
ligam no tempo, mas as evidências mostram que os
primeiros tendem a ser menos conscientes do que os
suíços e os últimos mais descansados do que os
nova-iorquinos.

O passo da vida, diz ele, é um movimento caracterizado
por ritmo, seqüência e sincronia. Os indivíduos tendem
a andar mais rapidamente em lugares com elevado grau
de industrialização, maior população, clima mais frio
e cultura orientada pelo individualismo. Os ricos são
mais rápidos do que os pobres. Os índios americanos
falam no "tempo indígena". Os mexicanos distinguem a
"hora inglesa" (precisa) da "hora mexicana"
(despreocupada).

As horas trabalhadas começaram a aumentar na Revolução
Industrial. A Europa medieval tinha em média 115
feriados por ano. Ainda hoje, os países pobres têm
mais feriados do que os ricos. Constatei isso em
Londres, onde há apenas seis feriados por ano,
incluindo a Sexta-Feira Santa, o Natal e o Ano Novo.
Os outros três caem sempre numa segunda-feira. Aqui,
são perto de quinze e alguns permitem "enforcar" as
segundas ou as sextas-feiras.

Com a industrialização, a sociedade passou de uma
situação de "excesso de tempo", típica das economias
agrárias, para outra de "opulência de tempo" e em
seguida para a de "fome de tempo", que passa a ser
escasso porque se produz e se consome cada vez mais.

Nos países de cultura do individualismo, a realização
pessoal é uma característica social básica. Prevalece
a mentalidade de que "tempo é dinheiro". Em outros
países, as pessoas pensam diferentemente e pouco se
preocupam com a urgência. Em certas regiões da
Argélia, a pressa é considerada "falta de decoro
combinada com ambição diabólica".

O relógio, afirma Levine, é uma invenção relativamente
recente. A marcação do tempo já existia na Antiguidade
para os anos e para os meses, mas a medição em horas é
uma invenção moderna. Os minutos e segundos apareceram
mais tarde. O relógio solar surgiu há 5 500 anos.
Quinhentos anos depois veio o relógio de água, menos
impreciso. O mecanismo solar era usado durante o dia
(quando não estava nublado). O da água tinha a
vantagem de funcionar à noite. Ambos foram amplamente
superados pelo relógio mecânico (século 14) e pelo
relógio de pêndulo (século 16), que deve seu
aparecimento à descoberta de Galileu, de que havia uma
regularidade entre o vai-e-vem do pêndulo e seu
período de oscilação.

Os relógios primeiros mecânicos deram partido no que
seria uma grande revolução, ainda que não passassem de
geringonças quando comparados aos seus parentes
modernos. Sequer tinham ponteiros. As horas eram
anunciadas ao som de campainhas. Seu objetivo
específico era avisar os padres sobre a hora de chamar
os fiéis para as preces. Mais tarde, como assinalou
David Landes, o relógio com ponteiros e marcadores se
espalhou pelas praças públicas européias, o que
contribuiu para reduzir o poder da Igreja. Antes, a
duração das horas para as atividades eclesiásticas
dependia das estações do ano. O badalar dos sinos
indicava com precisão quando acordar, fazer refeições,
rezar e por aí afora. O relógio uniformizou a contagem
do tempo e ameaçou a autoridade eclesiástica. Não é à
toa que a Igreja levou um século para aceitar a
novidade.

A partir do século 18, o relógio mecânico mudou a
cadência da vida diária. O tempo ganhou relevância,
pois se tornou possível marcar o início e o fim de uma
ação. Antes, não havia como medir a pontualidade. O
termo inglês "punctuality" (pontualidade) surgiu em
princípios do século 19. Antes, pontual era a pessoa
dada a detalhes. Agora, define quem chega na hora.

A coordenação de atividades humanas, viabilizada pelo
relógio, contribuiu para o desenvolvimento. No
passado, a Natureza ditava quando arar a terra, quando
semear e até mesmo quando sentar ou ficar sem fazer
nada. As fases da Lula marcavam os meses. O relógio
liberou os indivíduos da dependência de formas não
confiáveis de medição do tempo. A sincronização e a
padronização dos movimentos foi o passo natural.

Até meados do século 19, havia diferentes bases para
referir o tempo. Podia ser o meio-dia, a meia-noite, o
por e o nascer do sol. Mesmo depois da popularização
da hora, a padronização era desconhecida. Em 1860, os
americanos conviviam com setenta diferentes fusos
horários. Viajantes que usavam o relógio de pulso
surgido por volta de 1850 precisavam ajustar a hora
ao passar de uma cidade para outra.

A ferrovia impôs a necessidade de coordenação e de
padronização da medida do tempo. Operar os trens com a
bagunça horária era um inferno. A estação de Búfalo,
no Estado de Nova Iorque, tinha três relógios, um para
a cidade e mais dois para outras linhas férreas. Em
1883, as companhias ferroviárias estabeleceram os
quatro fusos horários hoje adotados nos EUA. Uma lei
os confirmou em 1918.

A necessidade de padronização criou novos negócios. Em
1907, a International Trade Recording Company, que
mais tardia seria a IBM, se tornou a mais importante
fornecedora de relógios de ponto. Para vender mais,
realçava as virtudes da pontualidade, assinalando que
o relógio de ponto permitia "economizar tempo, impor
disciplina e contribuir para a produção". E
continuava: "nada é mais mortal para a disciplina de
uma fábrica, nada é mais desastroso para sua
rentabilidade do que trabalhadores que aparecem
irregularmente, chegam tarde ou saem em momentos
imprevisíveis". O relógio de ponto resolveria essas
inconveniências.

Nem todos, todavia, receberam a revolução de braços
abertos. Muitos temeram as conseqüências da nova
realidade na ordem social. Criticou-se a padronização.
Alegou-se a tirania da rigidez do relógio e a invasão
da privacidade. "Deixem-nos estabelecer o nosso
próprio meio-dia", reclamou o "Evening Transcript", um
prestigioso jornal de Boston. O "Courrier Journal", de
Louisville, referiu-se aos fusos horários como uma
"monstruosa fraude", uma "mentira compulsória". O
"Commercial Gazette" de Cincinnati condenou o atraso
de 22 minutos no tempo da cidade.

Apesar das resistências, a padronização se firmou e
ganhou impulso com a "engenharia da eficiência" de
Frederick Taylor, que com um livro sobre a matéria
(1911) se tornou conhecido como "pai da administração
científica". Surgiu o estudo dos tempos e movimentos.
Trabalhadores eram filmados. As funções da empresa
eram dividas em seus diversos componentes, fixando-se
padrões de tempo para cada movimento do corpo. Tempos
ótimos, calibrados até para frações de segundos, eram
estabelecidos para cada tarefa. O Taylorismo, assinala
Levine, "elevou o valor da eficiência e a importância
do relógio a novos níveis".

Malgrado a comprovada contribuição do relógio para o
desenvolvimento, a idéia de que tempo é dinheiro ou
que a padronização aumenta a produtividade não é
generalizada. Em suas pesquisas, Levine verificou que
em certos países o relógio não passa de um ornamento.
Os eventos começam e terminam sem consideração com o
horário. As atividades transcorrem sem compromisso com
o tempo.

O tempo costuma estar associado ao exercício de poder.
Fazer o outro esperar pode ser sinônimo de status.
Levine lista um conjunto de princípios que regem o
assunto: quem espera, quem não espera, quem espera por
quem, quem fica e quem não fica em filas e assim por
diante. Pessoas importantes não podem ser visitadas
sem prévia marcação do horário. Chefes podem fazer
subordinados esperar, mas não o contrário. E assim por
diante.

Se tempo é dinheiro, perder tempo é um custo. O valor
do tempo depende do tipo de profissão. Trabalhadores
são pagos por dias ou meses; advogados cobram em horas
e minutos, e a propaganda é remunerada em segundos. O
desperdício de tempo teria sido uma das patologias que
acarretaram as ineficiências e o colapso da União
Soviética.

O Brasil aparece de maneira desfavorável em diversas
partes da obra de Levine, o que por certo reflete as
impressões construídas no tempo em que viveu no Rio de
Janeiro, há quase trinta anos atrás. Para ele, os
brasileiros consideram que chegar na hora é sinal de
falta de prestígio ou sucesso. Quem não é pontual é
tido como tranqüilo, feliz e simpático, qualidades que
costumam ser associadas aos bem sucedidos.

Felizmente, há sinais de que estamos saindo desse
estereótipo em alguns lugares, mas a imagem de Levine
ainda está presente em muitos recantos. Basta
comparecer a um casamento em São Paulo e outras
cidades para constatar essa realidade. O atraso da
noiva parece ser proporcional à importância que a
família se atribui.

Ainda temos muito que caminhar para vencer as
imperfeições que nos distanciam do individualismo, da
eficiência e do empreendorismo dos paises ricos. A
idéia de que tempo é dinheiro precisa avançar. Daí a
importância das lições do livro de Robert Levine, um
passeio instrutivo e divertido sobre o relógio e suas
diversas dimensões.

*Ex-ministro da Fazenda, o economista Mailson da Nóbrega é sócio da Tendências Consultoria Integrada

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