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Ao contrário do Brasil, França pode barrar reforma trabalhista

Reforma trabalhista levada a ferro e fogo por Macron está encontrando forte reação das centrais trabalhistas do país

PROTESTO CONTRA LEI TRABALHISTA: A nova ordenança define que em 11 pontos das regras do trabalho, como salário mínimo e tempo de teste, quem dará o ponto final serão os acordos de categoria / Charles Platiau/ Reuters
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Da Redação

Publicado em 18 de novembro de 2017 às 08h30.

Última atualização em 18 de novembro de 2017 às 11h30.

PARIS – Assim como o Brasil, a França se vê às voltas com uma reforma trabalhista . Mas, ao contrário do que acontece no Brasil, na França a reação de grupos organizados está levantando dúvidas sobre a entrada em vigor da nova lei. É uma das principais bandeiras do presidente Emmanuel Macron, que durante a campanha já dizia “vamos simplificar o direito do trabalho”. A proposta era levar as negociações trabalhistas para “mais perto das empresas e dos trabalhadores” e “retirar os obstáculos para contratações permanentes”.

Macron reforçava a necessidade de se renovar o código de trabalho francês para “dinamizar o mercado” e “relançar a economia francesa”. Quando foi eleito, em maio, não perdeu tempo: a proposta oficial de reforma foi adotada pela Assembléia Nacional apenas um mês depois e o seu conteúdo foi apresentado pelo primeiro-ministro Edouard Philippe no fim de agosto.

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Muitas das novidades apresentadas pelo governo foram recebidas com revolta pelos grupos sindicais do país. A Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), união mais antiga do país, logo convocou manifestações para lutar contra a “precarização das condições de trabalho”. Setembro foi marcado por dois protestos, que levaram às ruas respectivamente 223.000 e 132.000 pessoas. No mês seguinte, quando os detalhes da reforma foram publicados no Jornal Oficial, a união sindical Solidaires se uniu ao movimento, resultando em um novo protesto que reuniu 25.000 pessoas em Paris. Até agora, contudo, a oposição à reforma não parece ter surtido efeito. O presidente Macron disse que não cederia à pressão.

Mas os sindicatos não desistem. Mesmo que o conteúdo da reforma tenha sido incluído no Jornal Oficial para entrar em vigor imediato, eles só será legalmente válido após a ratificação pelo parlamento. O processo se estendeu um pouco porque a Assembleia Nacional do país determinou dar prioridade às medidas envolvendo a política financeira do país. O resultado é que primeira a leitura da proposta acontecerá só na semana que vem. Para os sindicalistas, é agora ou nunca.

Juntos, os grupos convocaram os cidadãos para uma derradeira manifestação na quinta-feira do dia 16 de novembro, em uma tentativa de pressionar os parlamentares a barrar as medidas polêmicas do código. “Ainda não perdemos a esperança de que essas ordenanças serão rejeitadas”, disse a EXAME Catherine Perret, secretária da CGT responsável por assuntos ligados à lei do trabalho. “As manifestações continuarão a acontecer para impedir que tirem dos trabalhadores direitos que lutamos tanto para conseguir”.

Lições do passado

A reforma proposta por Macron chega para dar continuidade a mudanças que começaram a ser feitas durante o governo de seu predecessor, François Hollande – de quem era primeiro ministro. O projeto anterior, conhecido como Lei El Khomri (referência ao nome da então ministra do trabalho Myriam El Khomri), foi definido por um processo longo e difícil para o governo, para as empresas e também para os sindicatos.

Tudo começou em fevereiro de 2016, quando a imprensa francesa divulgou o texto de um projeto de lei que visava “instituir novas liberdades e novas proteções para empresas e trabalhadores” antes de o documento ter sido formalmente apresentado aos ministros. Entre as mudanças propostas, estavam a negociação de horas extras e férias, que passariam a ser feitas dentro das empresas. Além disso, a lei estabeleceu que em casos de baixa de receita ou serviços durante semestres consecutivos, a empresa poderia demitir funcionários sob a justificativa de “dificuldades econômicas”.

No dia seguinte à divulgação do projeto pela imprensa, uma petição online foi criada para barrá-lo. Em duas semanas, a página já contava com 1 milhão de assinaturas. Em março, a força sindical convocou uma manifestação nacional – manifestações nacionais, assim como a manteiga e a baguete, fazem parte da identidade francesa. No dia 31 do mesmo mês, 1,2 milhão de pessoas foram às ruas em todo o país. Em Paris, grupos de manifestantes se reuniam em assembleias noite após noite na Praça da República.

Como reação à rejeição pública, o governo começou a reescrever as partes mais polêmicas da lei. Quando o texto seguiu para a Assembléia Nacional, mais de 7.000 emendas foram sugeridas pelos parlamentares, das quais 4.857 foram analisadas – quase o mesmo número da aprovação do casamento gay no país, caso que ficou conhecido como exemplo de obstrução parlamentar. No senado, o texto foi mais uma vez reescrito, com a adoção de 157 novas modificações. Enfim a versão final da lei foi adotada em 20 de julho, o que não impediu os sindicalistas de continuar protestando até setembro. Nos trancos e barrancos, o caso se estendeu por quase sete meses (210 dias).

Não é de surpreender que Macron, uma das testemunhas desse longo processo, tenha tentado evitar o mesmo desgaste durante o seu governo. A sua estratégia foi apresentar o projeto logo no início do verão, época de férias escolares em que quase 60% dos franceses viajam, de acordo com levantamento do Ipsos. Depois, o governo recorreu ao parágrafo 3 do artigo 49 da Constituição francesa, que permite ao conselho de ministros adotar uma lei sem precisar passar antes pelo parlamento. Em teoria, essa deveria ser uma medida de exceção utilizada apenas em casos de urgência. No entanto, desde 1958, a brecha já foi usada 85 vezes.

Por fim, o presidente divulgou que as medidas seriam adotadas em forma de ordenanças, método em que o poder legislativo aceita ceder ao executivo o papel de criar leis por um período limitado. O parlamento votou e aceitou essa prerrogativa em sessão extraordinária no início de outubro. “Existe um intervalo entre a eleição e a capacidade de reação dos movimentos sociais, e essa pressa do governo em aprovar a reforma mostra claramente a intenção de evitar o debate público”, disse Catherine Perret, da CGT.

Os pontos delicados

Com o nome de “Projeto de lei de habilitação a tomar por ordenanças as medidas para o reforço do diálogo social”, as cinco ordenanças que constituem a nova reforma foram publicadas no site do governo no fim de agosto, com forma de 36 medidas.

Uma das características das propostas é a inversão da hierarquia das normas no país. A ordem normal diz que a regulação suprema é estabelecida pelo Código do Trabalho. Abaixo dele, estão os acordos feitos por cada categoria ou setor de trabalho, e por último vêm os acordos feitos dentro de cada empresa. A “inversão” quer dizer que pontos antes definidos pelo código de trabalho agora poderão ser decididos em acordos de categoria, ou mesmo em acordos dentro de empresas. Essa tendência foi iniciada pela lei El Khorim, que permitiu que empresas estabelecessem tempo de trabalhos menos favoráveis do que aqueles determinados pelos acordos de categoria.

A nova ordenança define que em 11 pontos das regras do trabalho, como salário mínimo e tempo de teste, quem dará o ponto final serão os acordos de categoria. Antes, algumas dessas questões eram definidas pelo Código de Trabalho, como os termos de contratos de tempo determinado. Para os sindicatos, essa mudança representa um retrocesso às conquistas trabalhistas. Em outros quatro tópicos, são as categorias que escolhem qual acordo deve prevalecer: o feito por elas mesmas, ou o feito dentro das empresas. É o caso das questões sobre inserção de deficientes e prevenção de riscos profissionais. Para as outras questões, quem predomina são os acordos de empresa, mesmo que eles sejam desvantajosos aos trabalhadores.

A atual ministra do trabalho, Mariel Pénicaud, diz que é uma questão de “clarificar o que é do campo da lei – direitos e princípios fundamentais – e o que não faz sentido ser definido pela lei”.

A maior briga com os sindicatos é que as empresas contratem funcionários apenas com contratos de duração limitada (chamados de CDD). Existem regras para evitar que isso aconteça: o CDD só pode ser renovado uma vez e deve ter duração máxima total de 18 meses. Além disso, no fim de um contrato temporário, o empregador deve pagar ao empregado uma “indenização pela precariedade” que corresponde a 10% do seu salário bruto. Com a reforma, contudo, quem passará a definir as condições dos contratos temporários são as categorias. Os contratos temporários também eram autorizados para projetos específicos na área de construção, e a proposta é que essa permissão seja estendida a outros setores também.

Por fim, os sindicatos, tal como no Brasil, brigam por sua própria sobrevivência. Poucos países são tão camaradas com sindicatos como a França. As grandes empresas antes deviam contar com quatro representantes: o delegado sindical, o delegado do pessoal, o comitê de empresa e o comitê de higiene, segurança e condições de trabalho. A reforma vai fusionar os três últimos postos. Nas pequenas e médias empresas, onde não é preciso haver delegados sindicais, se antes era necessário obedecer os acordos de categoria, agora tudo pode ser resolvido em negociações internas.

Mesmo que tenham esperança de ver as ordenanças de Macron serem rejeitadas, a CGT admite já estar trabalhando com um plano B. A ideia é fornecer aos representantes sindicais propostas de acordos a serem apresentadas aos empresários, para que as negociações sejam feitas com base em um texto fundamentalmente favorável aos trabalhadores. Além disso, ela conta que a confederação também treinará os delegados para que eles tenham uma postura mais ofensiva no desenvolvimento dos acordos.

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