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O Uber e o papel das empresas na mudança do mundo

Travis Kalanick, CEO e fundador do Uber pediu demissão. Foi por imposição dos investidores. Essa foi a gota d’água. No entanto, o que mudou efetivamente o jogo foi a pressão externa de funcionários, clientes, motoristas, mídia e comunidade em geral. Apesar de admirar o modelo de negócios disruptivo que virou substantivo e verbo (a uberização […]

TRAVIS KALANICK, DO UBER: sua queda mostra que cidadãos unidos em torno de causas estão transformando as organizações por dentro, como colaboradores e por fora, como consumidores / Danish Siddiqui/ Reuters
TRAVIS KALANICK, DO UBER: sua queda mostra que cidadãos unidos em torno de causas estão transformando as organizações por dentro, como colaboradores e por fora, como consumidores / Danish Siddiqui/ Reuters
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Silvio Genesini

Publicado em 23 de junho de 2017 às, 16h50.

Travis Kalanick, CEO e fundador do Uber pediu demissão. Foi por imposição dos investidores. Essa foi a gota d’água. No entanto, o que mudou efetivamente o jogo foi a pressão externa de funcionários, clientes, motoristas, mídia e comunidade em geral. Apesar de admirar o modelo de negócios disruptivo que virou substantivo e verbo (a uberização do mundo), o público espera que as empresas sejam também um exemplo de conduta e tenham um papel ativo na construção de um mundo melhor. A cultura organizacional agressiva e o estilo de liderança abrasiva do CEO, nos últimos tempos, foram o oposto de tudo isso.

Travis poderia ter resistido uma vez que, junto com seu grupo de fundadores, tem o controle efetivo da empresa (através de ações com mais poder de voto). Obviamente, pode também ter pesado o falecimento da mãe em um acidente recente. Mas, como diz o artigo desta semana de David Cohen em EXAME Hoje (Uber: as lições da queda de Kalanick): “No ambiente de startups, em que frequentemente a companhia é deficitária e se sustenta com rodadas de investimento, o principal chefe é o capitalista”. Os capitalistas entenderam bem o recado das ruas e escritórios.

Em outro assunto recente, o presidente Trump decidiu retirar os Estados Unidos do Acordo do Clima de Paris, cumprindo mais uma de suas promessas de campanha. Como reação, cerca de 1000 companhias e investidores americanos avisaram que não concordam e decidiram continuar suportando o acordo.

Eles são signatários da carta aberta “We are still in” dirigida às Nações Unidas. A iniciativa foi liderada por Michael Bloomberg – empresário e ex-prefeito de Nova York – e incluiu também prefeitos, governadores e líderes universitários. Entre as empresas que assinaram estão todas as gigantes de tecnologia – Google, Apple, Facebook, Amazon, Microsoft, Yahoo, Twitter – e muitas outras como Target, Nike, Starbucks e Unilever.

Os participantes se comprometem a fazer a sua parte na meta de redução de 26% das emissões de carbono, que é o objetivo do Acordo de Paris. Uma demonstração de que as corporações estão decididas a ter um papel de liderança, independente de governos, na transformação do mundo. É um movimento que não começou hoje e vem evoluindo há algum tempo. Parece até natural que aconteça dada nossa crescente expectativa, como cidadãos, que seja este, exatamente, o papel das organizações.

A nova postura não nasceu dentro das empresas. Veio de fora. Por desejo, ou até imposição, dos clientes, consumidores e empregados tornados cidadãos. Veio do nascimento de um novo humanismo de causas. O humanismo, como se sabe, é um conjunto de doutrinas que aposta no homem como centro e força motora do universo.

O humanismo original era hierárquico e acreditava em ideais: a pátria, a revolução, o bem-estar coletivo. O humanismo atual é horizontal e acredita que somos felizes e realizados em uma relação de iguais com quem amamos. Organizamo-nos em tribos – ou em rede como convém em tempos conectados – e defendemos causas que nos são afetivamente próximas.

Elas são múltiplas e orbitam em torno da defesa de grupos de indivíduos que são discriminados, rejeitados ou desassistidos; ou na afirmação de novos comportamentos que marcam a singularidade dos tempos atuais.

A lista é imensa, familiar e inclui entre muitos: a sustentabilidade e a proteção do clima; a defesa das minorias; a promoção da igualdade das mulheres no mercado de trabalho; o comportamento ético de líderes e liderados; a proteção dos pobres e vulneráveis; o movimento do saudável, do orgânico e dos pequenos produtores; a preservação e proteção dos animais, e muitas outras.

Com raras exceções, que tendem para o exagero – como as plantas terem sentimentos – ou para o politicamente correto excessivo, as causas são razoáveis e justas. Mas, mais do que justificadas elas são um fato incontestável. O mundo as adotou e elas se impuseram como uma realidade, que só tende a crescer e ocupar mais espaço nos nossos corações e mentes.

Li recentemente, por sugestão de uma amiga querida, o livro Good is the new cool de Afdhel Aziz e Bobby Jones, dois executivos de marketing. O livro, simplificadamente, defende que é possível ganhar dinheiro fazendo o bem e que, cada vez mais, companhias incorporam o propósito de melhorar o mundo como parte do seu modelo de negócios. Querem, dessa maneira, ser admiradas (cool) e bem sucedidas ao mesmo tempo.

Um exemplo contado logo no início do livro é da Warby Park, loja de óculos, que fabrica e vende todos os seus modelos por 95 dólares. Para cada exemplar adquirido doa outro para alguém, com necessidade, em algum lugar do mundo. Conheci a loja de Nova York, que fica no final do High Line. Casa cheia de clientes experimentando óculos de design moderno e preço acessível. Uma festa por um bom produto e uma boa causa.

Na mesma linha, com referência a uma organização que apesar de global nos é bastante próxima, a edição da revista The Economist de 10 de Junho, que tratou da dissidência empresarial à decisão de Trump de sair do acordo do clima, conta o projeto da AB InBev de uso de energia renovável na produção de cerveja.

Tony Milkin, chief sustainability officer, contou à revista que o conglomerado estabeleceu a meta de passar dos 7% atuais para 100% do uso de fontes renováveis até 2025. Uma ousadia em se tratando de uma transição tão complexa. A boa surpresa é que se trata da mesma empresa e do mesmo grupo que conhecemos por comprar companhias em série, cortar custos agressivamente e ter uma cultura meritocrática aguerrida.

Para não deixar dúvidas sobre a mudança da cultura, o executivo explica: “Temos uma boa parte dos nossos consumidores habituais que são da geração millenium, e muitos consideram seriamente as questões ambientais. Minha geração, como um baby boomer, pensava que ar limpo e energia eram recursos infinitos. As novas gerações pensam totalmente diferente”.

Em um regime capitalista as empresas não foram feitas para fazer o bem desinteressadamente. Se fosse o caso, o regime não seria capitalista. Se o interesse em fazer o bem acontece por oportunidade, interesse ou imposição pouco importa. Importa que o bem seja efetivamente feito. O que conta é que cidadãos unidos em torno de causas estão transformando as organizações por dentro, como colaboradores e por fora, como consumidores.

Como exemplo de que a onda está virando um tsunami, a escultura conhecida como Fearless Girl ganhou 3 Grand Prix (o prêmio máximo) no primeiro dia do festival de publicidade de Cannes. A estátua da garota, em atitude de desafio, foi colocada em frente ao famoso touro de Wall Street para representar o poder das mulheres nos negócios.

Para terminar e para não dizer que eu não falei dos espinhos, o papel das empresas na transformação do mundo também deve ser ético, no seu sentido mais estrito: que o comportamento de líderes e liderados seja harmônico com os princípios e valores do mundo melhor que estão ajudando a criar.

A crise ética brasileira é claramente uma oportunidade de negócios para quem enxergar o futuro como ele será. Ser ético pode ser bom, cool e lucrativo.