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Bem-vindos à era em que a privacidade é uma mercadoria

O problema não é o Facebook e outras redes coletarem e armazenarem nossos dados, e sim a falta de transparência

MARK ZUCKERBERG: ao menos no Brasil, rede social permitirá que usuários escondam propaganda política / Stephen Lam/Reuters (Stephen Lam/Reuters)
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Da Redação

Publicado em 29 de março de 2018 às 16h04.

O mundo resolveu pegar pesado com o Facebook. Mark Zuckerberg sabe muito bem porque está apanhando. Tanto que publicou um anúncio nos principais jornais do mundo dizendo: “Nós temos a responsabilidade de proteger a sua informação. Se não o fizermos, não a merecemos”. Não fizeram e, portanto, não merecem.

Mais ainda, confessou que não sabe se o transtorno acabou. “Nós estamos investigando todos os apps que tiveram acesso a grandes quantidades de informações antes que consertássemos o problema. Achamos que existem outros”.

Como o primeiro aviso sobre as confusões da Cambridge Analytica foi dado em 2015, achar que ainda existam outros em 2018 é claramente imperdoável. Indesculpável também foi ter feito ameaças legais aos jornalistas e veículos durantes as investigações, incluindo a tentativa de impedir a publicação na véspera.

Por tudo isso, o inferno astral do Facebook vai durar muito. Não duvido até que haja uma ameaça à sua subsistência, a médio prazo. Do mesmo jeito que o “efeito rede” beneficiou-o exponencialmente na construção de uma base de mais de 2 bilhões de usuários, o “efeito manada” pode precipitar a sua queda.

Brian Acton, cofundador do WhatsApp, iniciou um movimento #deletefacebook no Twitter. Provocado no diálogo que se seguiu, Elon Musk mandou retirar as páginas da Tesla e do SpaceX do serviço. Usuários saindo, anunciantes reduzindo campanhas, valor da ação caindo e reguladores pressionando configuram uma prova de fogo para um gigante até então considerado inexpugnável.

Até aqui, tudo lembra o roteiro normal de uma grande empresa sendo enquadrada pelos mecanismos reguladores da sociedade. No entanto, há um risco encoberto de que toda essa onda punitiva venha a transformar-se em um movimento moralista e inibidor da inovação.

Os métodos da Cambridge Analytica eram claramente antiéticos como demonstram o vídeo gravado por jornalistas do Channel 4 britânico. Eles se fizeram passar por clientes interessados em eleger candidatos no Sri Lanka e constataram os golpes baixos usados pela consultoria nas campanhas eleitorais, incluindo a de Trump.

Mas, daí a concluir que deveríamos proibir qualquer tipo de acumulação de dados segmentados por renda, raça, idade, gênero e mesmo afinidade política, por meios regulares, é apostar contra o avanço da tecnologia e os benefícios advindos da sua correta aplicação.

Não haveria a evolução acelerada da inteligência artificial sem que uma quantidade astronômica de dados fosse reunida nos últimos anos. Tomemos, por exemplo, as aplicações em saúde, educação, segurança e mobilidade. A utilização de algoritmos inteligentes em grandes massas de dados trará uma revolução nas nossas vidas com tremendos benefícios para a humanidade.

Há claramente um lado benigno na guarda de dados pessoais. Também no caso das relações comerciais não há como negar o fato de que o atendimento é muito melhor quando somos mais conhecidos e os produtos e serviços são customizados para o que queremos e desejamos.

O problema do Facebook e de outras plataformas dominantes, monetizadas pela publicidade, é a falta de transparência na maneira como os dados são armazenados e como os algoritmos os tratam. Como disse Brian Acton e vários outros: se não está pagando pelo serviço, você é o produto. Se somos os produtos temos o direito de saber como e para quem estamos sendo vendidos.

Adicionalmente, com a proliferação de câmaras, sensores, Wi-Fi gratuitos, compras e pagamentos eletrônicos, a privacidade morreu. Não há criptografia ou mecanismo de segurança que garanta mais o nosso anonimato. Para o bem ou para o mal, vivemos em um mundo em que não há mais segredo possível.

No mês de maio começará a valer a lei de proteção à privacidade europeia, chamada de General Data Protection Regulation (GDPR). A regulação vai na direção certa. Foca em garantir que os usuários conheçam, entendam e concordem os dados que serão mantidos sobre ele. Eu teria ido além. Teria exigido que os algoritmos das plataformas, com presença de mercado dominante, tivessem seus programas conhecidos e disponibilizados para revisão por terceiros independentes.

Nada disso, porém, vai parar a histeria coletiva e o medo que tomou conta de parcelas da opinião pública com a divulgação das supostas técnicas de manipulação utilizadas pela Cambridge Analytica nas eleições americanas. De posse dos 50 milhões de perfis obtidos do Facebook, a consultoria passou a fazer “modelagens psicométricas baseadas em técnicas de preferências eleitorais para serem usadas em mensagens microdirecionadas”, seja lá o que isso significa. O eleitor americano médio seria tão tonto, inepto e facilmente manipulável?

Para se ter uma ideia do nível que chegou a paranoia foram publicadas que tais modelagens resultaram de associações, como por exemplo, entre preferências por tênis Nike, Kit Kat, cosméticos da Sephora e bonecas Hello Kitty com sentimentos anti-islâmicos, baixo nível de inteligência e abertura emocional. Também que, analisando as curtidas das pessoas, era possível afirmar categoricamente se alguém era gay, negro ou democrata. Haja artifício inteligente para tanto exagero, para não dizer bobagem.

O episódio serviu também para que o establishment liberal – no sentido americano de democrata ou de centro-esquerda – voltasse a provar seu ponto de que Trump foi eleito por falcatruas e não porque havia uma parcela significativa da população americana que se sentia alijada dos benefícios do progresso e da globalização.

Mark Lilla, cientista político e professor da Universidade de Columbia, publicou um artigo no New York Times em 2016, que depois virou livro, chamado “O fim do liberalismo identitário”. Nele o pensador de esquerda acusa os liberais americanos de centrar sua mensagem nas minorias –  negros, hispânicos, mulheres e cidadãos LGBT – alienando uma maioria que não se vê representada nesses grupos. Lilla sustenta que a incapacidade de comunicar uma visão agregadora de país levou à perda da eleição. Virou persona non grata dos seus amigos correligionários. Melhor culpar o Facebook e a Cambridge Analytica.

Há quem queira controlar o avanço da tecnologia e garantir que os seus efeitos sejam conhecidos, previsíveis e, unicamente, benéficos. Há quem queira ter privacidade e, ao mesmo tempo, ter a vantagem de ser conhecido e reconhecido. Há quem queira um futuro tecnológico previsível, contido e asséptico. Nada disso é possível na terra atual.

Haverá um dia em que desaparecerão Facebook, Google, Apple, Amazon e a tecnologia continuará fazendo milagres e trazendo perigos para a humanidade. Assim é o futuro. Apertem os cintos e curtam a viagem. O Facebook da época transmitirá ao vivo.

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O mundo resolveu pegar pesado com o Facebook. Mark Zuckerberg sabe muito bem porque está apanhando. Tanto que publicou um anúncio nos principais jornais do mundo dizendo: “Nós temos a responsabilidade de proteger a sua informação. Se não o fizermos, não a merecemos”. Não fizeram e, portanto, não merecem.

Mais ainda, confessou que não sabe se o transtorno acabou. “Nós estamos investigando todos os apps que tiveram acesso a grandes quantidades de informações antes que consertássemos o problema. Achamos que existem outros”.

Como o primeiro aviso sobre as confusões da Cambridge Analytica foi dado em 2015, achar que ainda existam outros em 2018 é claramente imperdoável. Indesculpável também foi ter feito ameaças legais aos jornalistas e veículos durantes as investigações, incluindo a tentativa de impedir a publicação na véspera.

Por tudo isso, o inferno astral do Facebook vai durar muito. Não duvido até que haja uma ameaça à sua subsistência, a médio prazo. Do mesmo jeito que o “efeito rede” beneficiou-o exponencialmente na construção de uma base de mais de 2 bilhões de usuários, o “efeito manada” pode precipitar a sua queda.

Brian Acton, cofundador do WhatsApp, iniciou um movimento #deletefacebook no Twitter. Provocado no diálogo que se seguiu, Elon Musk mandou retirar as páginas da Tesla e do SpaceX do serviço. Usuários saindo, anunciantes reduzindo campanhas, valor da ação caindo e reguladores pressionando configuram uma prova de fogo para um gigante até então considerado inexpugnável.

Até aqui, tudo lembra o roteiro normal de uma grande empresa sendo enquadrada pelos mecanismos reguladores da sociedade. No entanto, há um risco encoberto de que toda essa onda punitiva venha a transformar-se em um movimento moralista e inibidor da inovação.

Os métodos da Cambridge Analytica eram claramente antiéticos como demonstram o vídeo gravado por jornalistas do Channel 4 britânico. Eles se fizeram passar por clientes interessados em eleger candidatos no Sri Lanka e constataram os golpes baixos usados pela consultoria nas campanhas eleitorais, incluindo a de Trump.

Mas, daí a concluir que deveríamos proibir qualquer tipo de acumulação de dados segmentados por renda, raça, idade, gênero e mesmo afinidade política, por meios regulares, é apostar contra o avanço da tecnologia e os benefícios advindos da sua correta aplicação.

Não haveria a evolução acelerada da inteligência artificial sem que uma quantidade astronômica de dados fosse reunida nos últimos anos. Tomemos, por exemplo, as aplicações em saúde, educação, segurança e mobilidade. A utilização de algoritmos inteligentes em grandes massas de dados trará uma revolução nas nossas vidas com tremendos benefícios para a humanidade.

Há claramente um lado benigno na guarda de dados pessoais. Também no caso das relações comerciais não há como negar o fato de que o atendimento é muito melhor quando somos mais conhecidos e os produtos e serviços são customizados para o que queremos e desejamos.

O problema do Facebook e de outras plataformas dominantes, monetizadas pela publicidade, é a falta de transparência na maneira como os dados são armazenados e como os algoritmos os tratam. Como disse Brian Acton e vários outros: se não está pagando pelo serviço, você é o produto. Se somos os produtos temos o direito de saber como e para quem estamos sendo vendidos.

Adicionalmente, com a proliferação de câmaras, sensores, Wi-Fi gratuitos, compras e pagamentos eletrônicos, a privacidade morreu. Não há criptografia ou mecanismo de segurança que garanta mais o nosso anonimato. Para o bem ou para o mal, vivemos em um mundo em que não há mais segredo possível.

No mês de maio começará a valer a lei de proteção à privacidade europeia, chamada de General Data Protection Regulation (GDPR). A regulação vai na direção certa. Foca em garantir que os usuários conheçam, entendam e concordem os dados que serão mantidos sobre ele. Eu teria ido além. Teria exigido que os algoritmos das plataformas, com presença de mercado dominante, tivessem seus programas conhecidos e disponibilizados para revisão por terceiros independentes.

Nada disso, porém, vai parar a histeria coletiva e o medo que tomou conta de parcelas da opinião pública com a divulgação das supostas técnicas de manipulação utilizadas pela Cambridge Analytica nas eleições americanas. De posse dos 50 milhões de perfis obtidos do Facebook, a consultoria passou a fazer “modelagens psicométricas baseadas em técnicas de preferências eleitorais para serem usadas em mensagens microdirecionadas”, seja lá o que isso significa. O eleitor americano médio seria tão tonto, inepto e facilmente manipulável?

Para se ter uma ideia do nível que chegou a paranoia foram publicadas que tais modelagens resultaram de associações, como por exemplo, entre preferências por tênis Nike, Kit Kat, cosméticos da Sephora e bonecas Hello Kitty com sentimentos anti-islâmicos, baixo nível de inteligência e abertura emocional. Também que, analisando as curtidas das pessoas, era possível afirmar categoricamente se alguém era gay, negro ou democrata. Haja artifício inteligente para tanto exagero, para não dizer bobagem.

O episódio serviu também para que o establishment liberal – no sentido americano de democrata ou de centro-esquerda – voltasse a provar seu ponto de que Trump foi eleito por falcatruas e não porque havia uma parcela significativa da população americana que se sentia alijada dos benefícios do progresso e da globalização.

Mark Lilla, cientista político e professor da Universidade de Columbia, publicou um artigo no New York Times em 2016, que depois virou livro, chamado “O fim do liberalismo identitário”. Nele o pensador de esquerda acusa os liberais americanos de centrar sua mensagem nas minorias –  negros, hispânicos, mulheres e cidadãos LGBT – alienando uma maioria que não se vê representada nesses grupos. Lilla sustenta que a incapacidade de comunicar uma visão agregadora de país levou à perda da eleição. Virou persona non grata dos seus amigos correligionários. Melhor culpar o Facebook e a Cambridge Analytica.

Há quem queira controlar o avanço da tecnologia e garantir que os seus efeitos sejam conhecidos, previsíveis e, unicamente, benéficos. Há quem queira ter privacidade e, ao mesmo tempo, ter a vantagem de ser conhecido e reconhecido. Há quem queira um futuro tecnológico previsível, contido e asséptico. Nada disso é possível na terra atual.

Haverá um dia em que desaparecerão Facebook, Google, Apple, Amazon e a tecnologia continuará fazendo milagres e trazendo perigos para a humanidade. Assim é o futuro. Apertem os cintos e curtam a viagem. O Facebook da época transmitirá ao vivo.

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