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Os loucos anos 20 de volta?

Estudos mostram que guerras levam a enorme destruição de capital e pandemias à destruição de capital humano

Banco Mundial alerta para crise financeira se pandemia persistir (Anton Petrus/Getty Images)
Banco Mundial alerta para crise financeira se pandemia persistir (Anton Petrus/Getty Images)
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Sérgio Vale

Publicado em 10 de fevereiro de 2021 às, 11h57.

Como muitas pandemias, a Covid-19 segue padrão já visto em outros casos, talvez o mais parecido sendo a gripe espanhola de 1918. Assim como naquela época, a segunda onda que agora nos assola é mais mortal e veloz do que a primeira. Mas diferente daquela crise, dessa vez temos vacina, em que pese as dificuldades com as novas cepas que podem tornar este novo coronavírus mais permanente do que transitório.

Da mesma forma, a gripe espanhola se deu na entrada da década de 20 do século passado, o que traz mais assombrosas semelhanças. Mas como alento vale lembrar que aquela década foi conhecida como os loucos anos 20, com um enorme crescimento das artes e um boom econômico que desaguou na depressão iniciada em 1929.

É interessante pensar se também não vamos passar pelos nossos loucos anos 20 dessa vez, em uma resposta da sociedade a esse momento lúgubre que passamos. Mas será que aqui também as semelhanças com aquele episódio se sustentam? Creio que não.

O que causa confusão na análise da época é que a gripe aconteceu no final da Primeira Guerra Mundial. Duas crises monumentais que levaram certamente a um estado de esperança na década seguinte, mas o que deve ter pesado mais?

Sabe-se que há uma diferença de impacto econômico e social futuro entre pandemias e guerras. Estudos mostram que guerras levam a enorme destruição de capital e pandemias à destruição de capital humano. Mas restauração de capital humano com impacto na economia é algo que leva tempo para acontecer enquanto o de capital físico é muito mais rápido para ter efeitos. Não à toa, dois outros momentos de guerras que tivemos, as napoleônicas no início do século XIX e a segunda guerra mundial levaram à forte expansão mundial nas décadas seguintes.

Guerras amplas como essas trazem a semente natural de uma estabilidade de curto prazo pelo menos. Assim o foi com o Congresso de Viena de 1815 e também com a pax americana no pós-segunda guerra. Esse momento de estabilidade de horizonte é muito mais importante para os investimentos e o crescimento.

Os esforços de reconstrução da Europa e da Ásia com o Plano Marshall e o apoio especialmente ao Japão foram decisivos para a “paz econômica” em que vivemos nas décadas seguintes. O baby boom que surgiu da Segunda Guerra foi ter efeito mais forte na produtividade da economia mundial provavelmente nos anos 90, como alguns estudos mostram. O Congresso de Viena foi decisivo para o florescimento europeu no século XIX ao evitar que disputas entre os países impedissem a consolidação de investimentos que precisam de tempo para maturar. Até a próxima grande conturbação na Europa, nas manifestações de 1848, a Europa já havia dado passo significativo em termos de desenvolvimento.

Voltando ao nosso caso, a Covid19 não trouxe destruição de capital físico e a parada via lockdowns gerou efeitos econômicos de curto prazo. Claro que teremos consequências de longo prazo como o avanço do home office para muitos, por exemplo, o que em tese pode gerar mais qualidade de vida. Mas o que estudos também mostram de diferente de impactos de guerras é que pandemias geram mais desigualdade de renda.

De fato, pandemias levam normalmente a aumento da desigualdade social enquanto guerras, pela própria destruição de capital físico, costumam ter efeito de diminuir a desigualdade, até porque há esforço de arrecadação para diminuir a dívida e, no caso da Segunda Guerra Mundial, isso se deu com aumento de impostos para a população mais rica.

O florescimento das artes na década de 20 pós-gripe espanhola também parece mais na sequência do florescimento das artes nas décadas anteriores. A Bauhaus alemã já havia começado a se desenvolver na década anterior e o cinema, este sim com forte desenvolvimento de produção nessa década, dependia de capital mais físico que humano naquele momento para crescer, com a presença maciça dos grandes estúdios comandando as produções.

Fica posta a questão se a recente pandemia terá o papel de reviver a economia nesta próxima década. Ao se colocar peso maior na gripe espanhola do que na Primeira Guerra como impacto na década seguinte, ficamos como a impressão de que o mesmo poderá acontecer agora, mas a história parece desmentir esse cenário.

Ficaremos na verdade com a obrigação de lidar com a desigualdade de renda sem a opção de grandes ajustes de impostos na classe mais alta, pois apenas em destruição de capital como em guerras é possível que as elites cedam a tal ponto. A solução para reestimular a economia tem vindo como já discutimos em artigos anteriores via aumento do gasto público, mas que não necessariamente corrige as distorções de desigualdade de renda se não for bem focalizado. Sem esquecer que, como também já mostramos, parece haver um tempo curto para que se possa usar a política fiscal sem começar a gerar pressões inflacionárias. Além disso, a pandemia também tem o efeito de aprofundar as desigualdades porque nos pega em meio a uma forte transição tecnológica para a inteligência artificial, economizadora de empregos potencialmente em larga escala.

Do ponto de vista internacional, aquele momento viu os EUA aumentarem em larga escala seu poder econômico pela destruição na Europa, que não teve a ajuda que ocorreu depois da Segunda Guerra Mundial. Os EUA surgiam praticamente como única potência mundial em um momento em que a então União Soviética estava no nascedouro. Isso transformou os EUA num enorme atrator de capitais que ajudou a gerar o boom econômico que desaguou na Grande depressão. Dessa vez, temos EUA mais enfraquecidos com a disputa chinesa sendo momento mais de incerteza de investimentos do que estímulo. A possibilidade de cadeias de valor divididas entre Ásia e Ocidente não é algo tranquilizador.

Os desafios da próxima década assim seguem presentes e não parecem justificar que viveremos o espírito dos loucos anos 20 novamente.

 

 

*Sergio Vale é economista-chefe da MB Associados