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Crônica de uma morte fiscal anunciada

A aprovação da reforma tributária por parte do governo empalidece diante das dificuldades enfrentadas em relação ao cenário fiscal

Sergio Vale: a aprovação da reforma tributária empalidece diante das dificuldades que o governo enfrenta em relação ao cenário fiscal por ele mesmo criado, mas também pela conjuntura internacional (EXAME/Exame)
Sergio Vale

Colunista

Publicado em 17 de abril de 2024 às 10h47.

Depois de um ano positivo em algumas frentes, o governo se vê em 2024 em situação de profundo desgaste. A aprovação da reforma tributária empalidece nesse momento diante das dificuldades que o governo enfrenta em relação ao cenário fiscal por ele mesmo criado, mas também pela conjuntura internacional.

Importante reforçarmos que o governo, em diversos momentos, tem criado suas próprias crises. O arcabouço fiscal talvez seja o mais notório. Quando do lançamento do programa ano passado, já estava claro que haveria enormes dificuldades para se concretizar. Nas minhas contas, eram R$ 350 bilhões a mais de arrecadação até 2026 para chegar ao superávit primário de 1% do PIB. A semente da crise que vivemos agora já estava posta naquele momento e era questão de tempo para o governo ter que cair na realidade e mudar a meta.

O mercado, talvez confiante na força do Ministro da Fazenda, acreditava que algo poderia ser feito para entregar os números e não rever a meta. O problema é que política fiscal quando é apenas do Ministro da Fazenda já nasce com desenho defeituoso de nascença.

Política fiscal de ajuste precisa ser de governo, atentada por maior parte dos Ministérios e da classe política de sustentação do Executivo. Ou seja, depende de apoio relevante do Congresso também. Tivemos a política fiscal no Brasil apenas em poucas vezes como política de governo. Vimos isso no segundo governo FHC, quando se consolidou as bases fiscais que começaram a ser destruídas no final do primeiro mandato de Lula. Os anos Pallocci também foram coerentes e apesar de a referência ser o Ministro da Fazenda, havia uma política econômica geral coordenada que dava apoio à manutenção da política fiscal, vinda especialmente do Palácio do Planalto. Não na figura do Lula, especificamente, mas de seu entorno político que tinha consciência da necessidade àquela altura de se manter o equilíbrio fiscal. Depois, Temer, o Breve, em menos de um ano conseguiu encaminhar um novo regime fiscal com observância mais estrita da cúpula do governo e do Congresso.

Mas, como se vê, foram poucos os momentos em que o fiscal foi visto pelo todo e não apenas como política de um Ministro. E quando digo isso tiro um pouco o peso da Ministra Simone Tebet que, à despeito do choque de realidade dado pela PLDO de 2025, não faz parte da cúpula política do governo.

Ao mesmo tempo, como já dito aqui antes, dado o enfraquecimento político do apoio à questão fiscal, não havia como fazer um arcabouço digno de nome. A extrema dependência do ajuste via arrecadação já dava quase uma sentença de morte.

É verdade que a regra do teto também tinha essa deficiência, pois sua rigidez não me fazia ver a regra perdurando por muitos anos. Isso já foi motivo de comentário nesta coluna na partida da regra do teto em 2016. Foram duas regras extremas para cada lado, a do teto pelos gastos e o novo arcabouço fiscal pela receita. Em algum momento vamos ter que chegar no meio termo, nos moldes do modelo chileno por exemplo.

Mas para piorar a situação, ao menos Temer tinha essa visão mais coerente de governo sobre a questão fiscal, que não existe hoje. Há forte pressão do Legislativo pelas emendas parlamentares, que já ocupam ¼ das despesas discricionárias e sem fiscalização do Tribunal de Contas da União. Ao mesmo tempo, o entorno do governo tem focado mais em como gerar aumento de investimento público e gastos sociais por conta de estarmos em ano eleitoral e, mais importante, com um presidente politicamente enfraquecido, com baixa popularidade. Impressionante lembrar que a popularidade de Lula agora não destoa muto da popularidade de Bolsonaro no começo da pandemia, presidente este que, como sabemos, tinha dificuldade extrema em entender a gravidade da Covid 19.

Daqui para a frente, confirma-se minha preocupação de que seriam anos de déficit primário até o final do terceiro mandato, com pressão crescente do governo para entregar resultados que gerem crescimento,

Aqui volta um velho fantasma neste governo. O PT e sua equipe econômica tem uma visão de culpa o Banco Central pelos nossos males. O alvo agora será o banco que, na visão política, não baixa mais os juros para entregar mais crescimento, aumentar a arrecadação e resolver o fiscal. Essa sempre foi a visão antiquada, que nunca funcionou, de como tratar a política fiscal. Nas falas de Haddad pressionando o BC para entregar mais queda de juros há muito de período Mantega que não deixa saudades.

Não há entendimento ainda, parece, de que para que os juros caiam de forma mais consolidada, precisaremos fazer um ajuste fiscal mais crível. A Selic caiu para 6,5% em 2019 em parte pela credibilidade de política econômica que foi construída no governo Temer, ajudada pela reforma da previdência naquele ano, mas não muito mais depois disso com as consequências da pandemia e o desmonte da política fiscal ao longo dos anos Bolsonaro. E, de fato, a Selic não conseguiu sustentar esse patamar de 6,5% por muito tempo.

A pressão sobre o Banco Central será enorme e a crise fiscal não ajudará os planos do BC de convergência da inflação para a meta. Há muito tempo eu já nutria certa desconfiança na crença de uma inflação próxima da meta ano que vem. Meu número sempre foi 4% e caminha para as expectativas voltarem para esse número se não houver uma resposta contundente do BC. Essa resposta ainda é possível por um banco com visão ortodoxa em sua maioria. Mas o risco é a pressão fiscal acelerar o passo para um BC mais heterodoxo. Dos quatro diretores que foram trocados desde ano passado, apenas Paulo Pichetti não é heterodoxo. No momento de stress é que descobrimos a visão do banco e esse banco, sob intensa pressão política em 2025, poderá sofrer. As falas de governo contra o BC dão a entender que teremos dificuldades também com a política monetária nos últimos dois anos de governo.

Para piorar a situação, o mundo de agora não é do primeiro mandato de Lula. Não apenas uma situação inflacionária para lá de desconfortável nos EUA, mas uma crise geopolítica estrutural que não colabora para o crescimento mundial.

Sem rumo, o governo tem pouco tempo para mudar radicalmente sua posição na política econômica. O quase certa é que não o faça e, por isso, precisamos nos preparar para muita fragilidade nos próximos anos. O crescimento econômico que começou forte este ano, em grande parte pelo empuxo fiscal e monetário, não tem força para se manter e devemos terminar o ano com os impactos negativos do que está acontecendo agora. As commodities, ao menos, apesar de sempre vilipendiadas pelo governo, seguirão sendo o centro dinâmico do país. Mas mais sobre isso na próxima coluna.

*Sergio Vale é economista-chefe da MB Associados e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP

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Depois de um ano positivo em algumas frentes, o governo se vê em 2024 em situação de profundo desgaste. A aprovação da reforma tributária empalidece nesse momento diante das dificuldades que o governo enfrenta em relação ao cenário fiscal por ele mesmo criado, mas também pela conjuntura internacional.

Importante reforçarmos que o governo, em diversos momentos, tem criado suas próprias crises. O arcabouço fiscal talvez seja o mais notório. Quando do lançamento do programa ano passado, já estava claro que haveria enormes dificuldades para se concretizar. Nas minhas contas, eram R$ 350 bilhões a mais de arrecadação até 2026 para chegar ao superávit primário de 1% do PIB. A semente da crise que vivemos agora já estava posta naquele momento e era questão de tempo para o governo ter que cair na realidade e mudar a meta.

O mercado, talvez confiante na força do Ministro da Fazenda, acreditava que algo poderia ser feito para entregar os números e não rever a meta. O problema é que política fiscal quando é apenas do Ministro da Fazenda já nasce com desenho defeituoso de nascença.

Política fiscal de ajuste precisa ser de governo, atentada por maior parte dos Ministérios e da classe política de sustentação do Executivo. Ou seja, depende de apoio relevante do Congresso também. Tivemos a política fiscal no Brasil apenas em poucas vezes como política de governo. Vimos isso no segundo governo FHC, quando se consolidou as bases fiscais que começaram a ser destruídas no final do primeiro mandato de Lula. Os anos Pallocci também foram coerentes e apesar de a referência ser o Ministro da Fazenda, havia uma política econômica geral coordenada que dava apoio à manutenção da política fiscal, vinda especialmente do Palácio do Planalto. Não na figura do Lula, especificamente, mas de seu entorno político que tinha consciência da necessidade àquela altura de se manter o equilíbrio fiscal. Depois, Temer, o Breve, em menos de um ano conseguiu encaminhar um novo regime fiscal com observância mais estrita da cúpula do governo e do Congresso.

Mas, como se vê, foram poucos os momentos em que o fiscal foi visto pelo todo e não apenas como política de um Ministro. E quando digo isso tiro um pouco o peso da Ministra Simone Tebet que, à despeito do choque de realidade dado pela PLDO de 2025, não faz parte da cúpula política do governo.

Ao mesmo tempo, como já dito aqui antes, dado o enfraquecimento político do apoio à questão fiscal, não havia como fazer um arcabouço digno de nome. A extrema dependência do ajuste via arrecadação já dava quase uma sentença de morte.

É verdade que a regra do teto também tinha essa deficiência, pois sua rigidez não me fazia ver a regra perdurando por muitos anos. Isso já foi motivo de comentário nesta coluna na partida da regra do teto em 2016. Foram duas regras extremas para cada lado, a do teto pelos gastos e o novo arcabouço fiscal pela receita. Em algum momento vamos ter que chegar no meio termo, nos moldes do modelo chileno por exemplo.

Mas para piorar a situação, ao menos Temer tinha essa visão mais coerente de governo sobre a questão fiscal, que não existe hoje. Há forte pressão do Legislativo pelas emendas parlamentares, que já ocupam ¼ das despesas discricionárias e sem fiscalização do Tribunal de Contas da União. Ao mesmo tempo, o entorno do governo tem focado mais em como gerar aumento de investimento público e gastos sociais por conta de estarmos em ano eleitoral e, mais importante, com um presidente politicamente enfraquecido, com baixa popularidade. Impressionante lembrar que a popularidade de Lula agora não destoa muto da popularidade de Bolsonaro no começo da pandemia, presidente este que, como sabemos, tinha dificuldade extrema em entender a gravidade da Covid 19.

Daqui para a frente, confirma-se minha preocupação de que seriam anos de déficit primário até o final do terceiro mandato, com pressão crescente do governo para entregar resultados que gerem crescimento,

Aqui volta um velho fantasma neste governo. O PT e sua equipe econômica tem uma visão de culpa o Banco Central pelos nossos males. O alvo agora será o banco que, na visão política, não baixa mais os juros para entregar mais crescimento, aumentar a arrecadação e resolver o fiscal. Essa sempre foi a visão antiquada, que nunca funcionou, de como tratar a política fiscal. Nas falas de Haddad pressionando o BC para entregar mais queda de juros há muito de período Mantega que não deixa saudades.

Não há entendimento ainda, parece, de que para que os juros caiam de forma mais consolidada, precisaremos fazer um ajuste fiscal mais crível. A Selic caiu para 6,5% em 2019 em parte pela credibilidade de política econômica que foi construída no governo Temer, ajudada pela reforma da previdência naquele ano, mas não muito mais depois disso com as consequências da pandemia e o desmonte da política fiscal ao longo dos anos Bolsonaro. E, de fato, a Selic não conseguiu sustentar esse patamar de 6,5% por muito tempo.

A pressão sobre o Banco Central será enorme e a crise fiscal não ajudará os planos do BC de convergência da inflação para a meta. Há muito tempo eu já nutria certa desconfiança na crença de uma inflação próxima da meta ano que vem. Meu número sempre foi 4% e caminha para as expectativas voltarem para esse número se não houver uma resposta contundente do BC. Essa resposta ainda é possível por um banco com visão ortodoxa em sua maioria. Mas o risco é a pressão fiscal acelerar o passo para um BC mais heterodoxo. Dos quatro diretores que foram trocados desde ano passado, apenas Paulo Pichetti não é heterodoxo. No momento de stress é que descobrimos a visão do banco e esse banco, sob intensa pressão política em 2025, poderá sofrer. As falas de governo contra o BC dão a entender que teremos dificuldades também com a política monetária nos últimos dois anos de governo.

Para piorar a situação, o mundo de agora não é do primeiro mandato de Lula. Não apenas uma situação inflacionária para lá de desconfortável nos EUA, mas uma crise geopolítica estrutural que não colabora para o crescimento mundial.

Sem rumo, o governo tem pouco tempo para mudar radicalmente sua posição na política econômica. O quase certa é que não o faça e, por isso, precisamos nos preparar para muita fragilidade nos próximos anos. O crescimento econômico que começou forte este ano, em grande parte pelo empuxo fiscal e monetário, não tem força para se manter e devemos terminar o ano com os impactos negativos do que está acontecendo agora. As commodities, ao menos, apesar de sempre vilipendiadas pelo governo, seguirão sendo o centro dinâmico do país. Mas mais sobre isso na próxima coluna.

*Sergio Vale é economista-chefe da MB Associados e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP

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