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100 mil mortos e o “no-meio-da-pandemia”

Desrespeitamos o tamanho da crise ao discutir, tão cedo, cenários após a vacinação em massa

Presidente Jair Bolsonaro alimenta emas nos jardins do Palácio da Alvorada: a incongruência do comportamento de Bolsonaro com a realidade é óbvia (Ueslei Marcelino/Reuters)
Presidente Jair Bolsonaro alimenta emas nos jardins do Palácio da Alvorada: a incongruência do comportamento de Bolsonaro com a realidade é óbvia (Ueslei Marcelino/Reuters)
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Sérgio Praça

Publicado em 8 de agosto de 2020 às, 21h52.

A crise do coronavírus é o mais grave problema social do século XXI. Nada tem sido mais discutido do que isso no Brasil e no mundo desde março. Ao ultrapassarmos, hoje, 100 mil mortos contabilizados no país, duas coisas valem ser lembradas.

Primeiro: o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) poderia ter agido melhor em todos os aspectos da crise. Poderia, principalmente, nomear um ministro da Saúde com mais capacidade de liderança e expertise médico do que o general Eduardo Pazuello.

O trabalho do ministro não é de todo ruim. Prefeitos e governadores afirmam que a logística de recursos para combater a pandemia melhorou depois de sua entrada. (Não vi dados de boa qualidade que poderiam corroborar ou desmentir isso, então confio na palavra dos políticos.)

Os pecados de seu chefe, Bolsonaro, são muitos para elencar aqui. Mas nem todas as mortes podem ser debitadas em sua conta.

Imaginemos um cidadão pró-Bolsonaro que tenha tido contato, em março, com duas informações: o presidente desdenhando do impacto do coronavírus e imagens de italianos trancados em casa para evitar a morte.

A incongruência do comportamento de Bolsonaro com a realidade é óbvia. Mas o cidadão poderia guiar suas ações mais pelas notícias da Itália do que pela retórica presidencial – e assim manter a si (e aos outros) mais seguro.

Em outras palavras, é possível que estejamos superestimando o impacto negativo de Bolsonaro. Quantos estariam mortos hoje se José Serra (PSDB) ou Lula (PT) fossem presidentes? Não sei. Não seriam zero. Líderes municipais e estaduais também são responsáveis.

O segundo ponto que merece discussão é a infindável quantidade de lives e programas de tv sobre o “pós-pandemia”. A proeza da CNN Brasil foi montar um show com esse nome em abril! Calma.

Estamos no meio da crise. Não há prazo para que ela termine. 2020 está sendo um ano pavoroso, mas não há garantia de que 2021 será melhor. Não faço ideia de como será o mundo pós-vacinação e é inútil discutir isso por enquanto.

Como não poderia ser diferente, Luís Roberto Barroso, ministro do STF, participou de uma live em 16 de julho sobre uma suposta “agenda institucional pós-pandemia”.

As ideias de Barroso sobre quais devem ser as prioridades do Brasil na discussão foram: integridade, solidariedade, jogar um facho de luz sobre a pobreza (“devemos ter como prioridade enfrentar a pobreza extrema no Brasil”), competência (“escolher as melhores pessoas para os melhores lugares”), educação básica (“a falta dela nos atrasou na história”) e “investir muito” em ciência e tecnologia.

Não faltou a sugestão de “pacto” para que “o honesto seja a normalidade e não a exceção”. Pacto para que as pessoas sejam honestas? Sério?

Em respeito aos mortos, precisamos ser mais inteligentes do que isso.

(Este artigo expressa a opinião do autor, não representando necessariamente a opinião institucional da FGV.)