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O dia mais longo da história

Por mais de um século o Brasil deixa de ganhar bilhões ao não incluir descendentes de Africanos na economia

Escravidão: Brasil foi o último país nas Américas a eliminar a prática criminosa e cruel da escravidão racial (Mario Tama/Getty Images)
Escravidão: Brasil foi o último país nas Américas a eliminar a prática criminosa e cruel da escravidão racial (Mario Tama/Getty Images)
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Opinião

Publicado em 13 de maio de 2020 às, 11h37.

Última atualização em 13 de maio de 2020 às, 14h01.

Como diz um dos criadores das ações afirmativas no Brasil, o Dr. Helio Santos, se há um dia que marcou definitivamente a nação brasileira (e sua economia) foi o dia 14 de maio do ano de 1888, precisamente um dia após a abolição da escravidão racial no país, ou como ele apelidou essa data: "o dia mais longo da história do Brasil". Desde então a economia brasileira vem perdendo bilhões de reais por não compreender que nunca seremos uma potência global, se continuarmos a desperdiçar talentos, todos os seus talentos. Senão, vejamos. 

O Brasil foi o último país nas Américas a eliminar a prática criminosa e cruel da escravidão racial e diferente de outros países, por aqui, não houve nenhum tipo de compensação ou indenização para as famílias escravizadas. Aliás, vale lembrar que o debate público sobre o fim da escravidão não era sobre indenizar os descendentes de africanos, mas compensar financeiramente os donos de fazenda que perderam seus ativos econômicos, ou como chamam hoje, seus "assets". Essa demanda dos fazendeiros foi parcialmente concretizada, basta ver o conteúdo das leis da época.

Marcado por cerca de 300 anos (três séculos) de acúmulo de capital gratuito, o "mercado luso- brasileiro" foi, portanto um dos que mais se beneficiaram da escravidão de seres humanos de origem africana. E antes que alguém traga o argumento da “escravidão africana”, já sabemos que estamos falando de uma modalidade diferente (porém igualmente condenável) de conquista de territórios entre etnias e não como um sistema intercontinental de acumulação de capital aprimorado pelos europeus, como dizem especialistas.

O debate que importa (ao menos para esse texto) é sobre o trabalho africano não remunerado no Brasil. Algum profissional de estatística precisa fazer essa conta atualizada com urgência. Nos Estados Unidos, segundo o jornal Washington Post, um pesquisador da Universidade de Connecticut chamado Thomas Craemer publicou em 2016 uma nova estimativa do valor do trabalho escravo gerado para o empresariado norte-americano no período de 89 anos (entre a fundação do país e a Guerra Civil), o total chegava à cifra de US $ 5,9 trilhões naquele ano.

Como sabemos, o capital se recicla e o capital da escravidão está entre nós, ainda hoje, na forma de propriedades imobiliárias, ações na bolsa de valores, heranças intergeracionais e como vantagem competitiva (crédito) ou simbólica (networking) para muitas famílias de origem européia.

Se não beneficiados diretamente por herança, certamente, no mundo dos negócios ser eurodescendente, ou não ter pele e traços negros, sempre foi (e ainda é) uma grande vantagem simbólica. O fenótipo aqui no Brasil é um cartão de visitas no mundo dos negócios.

Para entender o presente é preciso revisitar a história. Outro dia desses em um grupo de whatsapp da minha família paterna vi pela primeira vez as fotos de meus bisavôs, aqui da Bahia. Descobri que meu bisavô nascera em 1898 (10 anos após o fim da escravização) e minha bisavó em 1900 (início do século).

Vou dar uma pausa aqui para uma reflexão. Pare para pensar comigo: o que você estava fazendo em 2010?  Precisamente dez anos atrás. Quão distante esse ano é para você? Lembro bem de 2010. Recordo-me do resgate dos mineiros no Chile, do grande terremoto no Haiti e do fiasco do Brasil na Copa da África do Sul, onde todos condenavam (injustamente?) o técnico Dunga (o que adiou o sonho do hexa para quatro anos depois, em 2014). Parece pouco tempo, não é? Percebeu que 10 anos na história não é quase nada?

É por isso que minha tia-avó me contou sobre como seu pai (meu bisavô) chorava ao lembrar-se de sua infância, quando teve que fugir do município de Pedrão para a atual cidade de Amélia Rodrigues, no coração do recôncavo baiano, fugindo literalmente da escravização para trabalhar em fazendas como “homem livre”. Ao refletir sobre esse assunto percebi que apenas três gerações me separam do período em que pessoas com a minha cor eram tratadas como mercadoria.

E você leitor pode estar se perguntando: e o que isso tem a ver com negócios? Tudo! Afinal, como acumular patrimônio em uma sociedade pós-escravista? Se até o ano de 1871 (quando foi aprovada a Lei do Ventre Livre) nem dinheiro de doação era permitido ao escravizado ter.  Como ter educação financeira se não há o "generational wealth" (riqueza que passa para outra geração) como dizem os norte-americanos? “Pai Rico, Pai Pobre”, já leram? Pois é.

Esse não é um problema restrito ao Brasil. Meu amigo e parceiro de negócios afro-americano, David Wilson descobriu que o seu bisavô foi escravizado na Carolina do Norte e que o bisneto do dono da fazenda onde ele era escravizado chama-se David Wilson também. Uma coincidência sombria e inusitada que fez com que o meu amigo criasse o documentário “Meeting David Wilson” (Encontrando David Wilson) exibido no conceituado canal de TV dos Estados Unidos, MSNBC.

Incomoda-me um pouco como o tema do racismo é tratado no Brasil. Nos últimos anos temos debatido muito a discriminação e a representatividade, mas o cerne da questão é econômico.  É disso que queremos falar quando abordamos o tema da igualdade. 

O fato é que uma parte do Brasil teve seus territórios invadidos (povos originais), outra trabalhou séculos de graça para o empresariado brasileiro (africanos), uma outra recebeu terras gratuitamente (os burocratas portugueses) e uma última que chegou pobre, fugindo de guerras, mas era livre para empreender (imigrantes europeus, asiáticos e do Oriente Médio).

Apesar das complexidades naturais dessas relações, das conhecidas lutas pela liberdade, da grande miscigenação que tivemos e das exceções (para confirmar a regra), esse é o resumo básico do país que chamamos hoje de Brasil. Essa é a “sinopse” desse filme triste. Não precisa ser especialista para entender isso. Segundo o IBGE, dos 13,5 milhões de pessoas vivendo na pobreza, 75% são afrodescendentes.

A questão importante para construirmos um futuro melhor é: como fazer que essa geração atual de descendentes de africanos consiga corrigir ou minimizar o impacto de mais de três séculos de entrega forçada dos serviços de seus ancestrais para a geração de riqueza alheia?

Não estou falando aqui de utopia ou ideologia. É sobre economia mesmo. Nenhuma nação pode ser próspera e coesa sem reparar seus erros históricos. Segundo o escritor Laurentino Gomes, autor do livro “Escravidão”, mais de 10 milhões de africanos desembarcaram no Brasil (aproximadamente a população atual de Portugal), sendo que 1,8 milhão morreram na travessia.

Como dentro do modelo econômico que vivemos hoje, podemos transferir riqueza para os segmentos mais em desvantagem historicamente? É uma pergunta complexa e difícil de responder, ainda mais no momento que estamos vivendo (maior crise econômica das últimas décadas), mas é uma pergunta que precisa ser respondida com urgência. Se a situação está ruim para o mercado em geral ela está ainda pior para quem começou esse “jogo” em desvantagem.

Os fundos de investimento (Venture Capital, Private Equity, Familly Offices etc.), bancos, “investidores anjos” e demais agentes econômicos precisam entender que essa inclusão é boa para todos. Para a classe média, profissionais liberais e trabalhadores de corporações, fica a questão: como usar sua influência e força de trabalho para promover mais igualdade? Não dá para pedir que se use o modelo “bootstraping” (iniciar uma empresa sem recursos, com “suas próprias botas”), para famílias cujos ancestrais nem calçados tinham, literalmente. Aliás, ter sapatos era símbolo de liberdade para os africanos alforriados.

O autor afro-americano, Jonh Hope Bryant, autor do provocativo e irônico livro "Como os pobres podem salvar o capitalismo" faz uma crítica incisiva sobre a necessidade da brutal desconcentração do capital na mão da parcela do 1% mais rico. Não é uma questão de caridade, é de bom senso. O sistema econômico da forma que está nos levará a um colapso. Ainda mais com o aumento da automação, robótica, inteligência artificial e o fim dos empregos de baixo valor agregado. Pagaremos um preço muito caro.

O escritor Josué de Castro em seu livro “Geografia da fome” disse: “Metade da humanidade não come e a outra metade não dorme, com medo da que não come”. Que no dia 14 de maio de 2020 possamos refletir sobre qual o Brasil que queremos nos próximos anos e como seremos lembrados na história. Precisamos todos, juntos, independente da origem e cor da pele, construir um país mais justo economicamente.

Veja aqui a Lei do Ventre Livre.


Paulo Rogério Nunes é consultor em diversidade, empreendedor e autor do livro “Oportunidades Invisíveis”.