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A voz (calada) das ruas

Joel Pinheiro da Fonseca “Sem, violência!”, pedia um canto popular dos protestos de junho de 2013 que logo se popularizou. A ideia era acalmar os ânimos e neutralizar os conflitos quando eles perigavam eclodir em meio aos desencontros entre os próprios manifestantes (por exemplo, na rivalidade entre os que exigiam um protesto apartidário e aqueles […]

PROTESTO CONTRA TEMER EM SÃO PAULO: quando a manifestação vira regra, o normal torna-se mais um problema do que uma solução / Fernando Donasci/ Reuters
DR

Da Redação

Publicado em 10 de setembro de 2016 às 06h35.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h48.

Joel Pinheiro da Fonseca

“Sem, violência!”, pedia um canto popular dos protestos de junho de 2013 que logo se popularizou. A ideia era acalmar os ânimos e neutralizar os conflitos quando eles perigavam eclodir em meio aos desencontros entre os próprios manifestantes (por exemplo, na rivalidade entre os que exigiam um protesto apartidário e aqueles que empunhavam bandeiras de partidos) e entre estes e a Polícia Militar, que tem longa história de repressão de manifestações populares.

Infelizmente, o que se verifica em grande parte dos protestos dos dias que correm é uma incapacidade de conter a violência de ambos os lados: da própria polícia, que repetidamente quebra seus regulamentos e ataca pessoas de maneira totalmente arbitrária, e dos manifestantes, que não raro nutrem sonhos revolucionários ou o desejo de se fazer ouvir, ainda que tenham de colocar fogo na rua ou quebrar algumas vidraças. A grande exceção fica por conta dos protestos anti-Dilma de 2015 e 2016, que chegaram a juntar centenas de milhares de pessoas em domingos e terminar sem nenhuma ocorrência; fato usado por seus detratores justamente para ridicularizá-los.

Há uma parcela da opinião pública que se horroriza com a violência cometida contra pessoas, mas não contra a depredação da propriedade. As implicações dessa distinção, contudo, não são menos sérias. Vivemos num mundo de recursos escassos (trabalho, matérias-primas, energia etc.), e a cidade, mais do que qualquer outra forma de organização, representa a cooperação das pessoas no sistema de divisão de tarefas para produzir tudo de que precisamos para viver. Destruir a propriedade — pública ou privada — é atacar diretamente nosso modo de vida. Permitir esses ataques é dar carta branca a forças que, guiadas talvez por fantasias de um mundo sem escassez, comprometem nossa existência.

O fato, contudo, é que mesmo manifestações ditas pacíficas não raro trazem atos de violência menos explícitos como parte essencial de sua razão de ser. É o caso de protestos que fecham vias de trânsito em dias de semana. Nesses casos, a manifestação pura da causa — que poderia igualmente acontecer no domingo ou em alguma praça — toma o banco traseiro da real intenção, que é bastante autoritária: provocar, por meio da força, um transtorno social tal que exija reação das autoridades.

O direito à manifestação e à reunião de pessoas é assegurado pela Constituição Federal, mas nesses casos ele esbarra em outros direitos, especialmente o de ir e vir. Um ato de algumas centenas de pessoas que impeça centenas de milhares de chegar ao trabalho ou em casa, atrasando suas rotinas em várias horas, não pode ser considerado totalmente pacífico.

Essa distinção não pode ter como critério alguma avaliação sobre o objeto do protesto. Não importa se um grupo pede “mais direitos” ou se tem “agendas regressivas”, se são “cidadãos de bem lutando contra a corrupção” ou “defensores de bandidos”. Se a permissão depender disso, estaremos delegando a alguma instância estatal ou paraestatal o direito de determinar que opiniões podem ou não ser manifestadas. Mais imparcial do que isso é estabelecer algum critério neutro para determinar se uma causa tem ou não a adesão popular necessária para justificar os empecilhos causados ao restante da sociedade; um número mínimo de manifestantes, por exemplo.

Parar o trânsito de vias importantes da cidade é sempre um ato de violência. Por isso, cabe, sim, a determinação de quando e em que circunstâncias ele deve ser aceito pela sociedade. Desde 2013, com a popularização dos protestos, que agora são a maneira normal de qualquer grupo exigir algo da política, um dilema se impõe e nos exige solução. Quem deve ter precedência: as atividades produtivas da maior parte da população, das quais depende inclusive a própria existência da sociedade, ou a opinião de grupos minoritários sobre alguma pauta de seu interesse? Não me parece ser um dilema muito difícil.

Sou contra protestos e manifestações? De forma alguma. Mesmo porque é inútil tentar impedi-los. Sou contra, isso, sim, sua romantização e santificação. O manifestante não tem nada que lhe torne mais importante do que qualquer outro membro da sociedade. Se esse membro da sociedade está, aliás, seguindo seu dia a dia na luta diária para se sustentar e gerar valor para os demais, ele é que deveria ter a prioridade. Manifestar as próprias ideias deve permanecer liberado; manifestá-las de modo a inviabilizar a rotina produtiva do restante da sociedade, só em casos especiais e com uma massa crítica mínima. Protestos de dezenas de gatos pingados que se veem no direito de interromper o restante da cidade são atos de violência injustificáveis e não devem ser permitidos.

A tendência geral é ver nas manifestações de rua um despertar da população a uma nova consciência, um povo mais participativo, mas decidido a “lutar” por seus direitos. Talvez caiba também um diagnóstico de sinal oposto: uma sociedade na qual a produção esteja sendo constantemente impedida pela manifestação de insatisfações é uma sociedade que será cada vez menos capaz de gerar o valor necessário para atender essas insatisfações. Em vez de buscar soluções, a preferência é reclamar e bater o pé. Em vez de produzir, exigir. Às vezes, é uma atitude necessária. Quando vira regra, o normal torna-se mais um problema do que uma solução.

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Joel Pinheiro da Fonseca

“Sem, violência!”, pedia um canto popular dos protestos de junho de 2013 que logo se popularizou. A ideia era acalmar os ânimos e neutralizar os conflitos quando eles perigavam eclodir em meio aos desencontros entre os próprios manifestantes (por exemplo, na rivalidade entre os que exigiam um protesto apartidário e aqueles que empunhavam bandeiras de partidos) e entre estes e a Polícia Militar, que tem longa história de repressão de manifestações populares.

Infelizmente, o que se verifica em grande parte dos protestos dos dias que correm é uma incapacidade de conter a violência de ambos os lados: da própria polícia, que repetidamente quebra seus regulamentos e ataca pessoas de maneira totalmente arbitrária, e dos manifestantes, que não raro nutrem sonhos revolucionários ou o desejo de se fazer ouvir, ainda que tenham de colocar fogo na rua ou quebrar algumas vidraças. A grande exceção fica por conta dos protestos anti-Dilma de 2015 e 2016, que chegaram a juntar centenas de milhares de pessoas em domingos e terminar sem nenhuma ocorrência; fato usado por seus detratores justamente para ridicularizá-los.

Há uma parcela da opinião pública que se horroriza com a violência cometida contra pessoas, mas não contra a depredação da propriedade. As implicações dessa distinção, contudo, não são menos sérias. Vivemos num mundo de recursos escassos (trabalho, matérias-primas, energia etc.), e a cidade, mais do que qualquer outra forma de organização, representa a cooperação das pessoas no sistema de divisão de tarefas para produzir tudo de que precisamos para viver. Destruir a propriedade — pública ou privada — é atacar diretamente nosso modo de vida. Permitir esses ataques é dar carta branca a forças que, guiadas talvez por fantasias de um mundo sem escassez, comprometem nossa existência.

O fato, contudo, é que mesmo manifestações ditas pacíficas não raro trazem atos de violência menos explícitos como parte essencial de sua razão de ser. É o caso de protestos que fecham vias de trânsito em dias de semana. Nesses casos, a manifestação pura da causa — que poderia igualmente acontecer no domingo ou em alguma praça — toma o banco traseiro da real intenção, que é bastante autoritária: provocar, por meio da força, um transtorno social tal que exija reação das autoridades.

O direito à manifestação e à reunião de pessoas é assegurado pela Constituição Federal, mas nesses casos ele esbarra em outros direitos, especialmente o de ir e vir. Um ato de algumas centenas de pessoas que impeça centenas de milhares de chegar ao trabalho ou em casa, atrasando suas rotinas em várias horas, não pode ser considerado totalmente pacífico.

Essa distinção não pode ter como critério alguma avaliação sobre o objeto do protesto. Não importa se um grupo pede “mais direitos” ou se tem “agendas regressivas”, se são “cidadãos de bem lutando contra a corrupção” ou “defensores de bandidos”. Se a permissão depender disso, estaremos delegando a alguma instância estatal ou paraestatal o direito de determinar que opiniões podem ou não ser manifestadas. Mais imparcial do que isso é estabelecer algum critério neutro para determinar se uma causa tem ou não a adesão popular necessária para justificar os empecilhos causados ao restante da sociedade; um número mínimo de manifestantes, por exemplo.

Parar o trânsito de vias importantes da cidade é sempre um ato de violência. Por isso, cabe, sim, a determinação de quando e em que circunstâncias ele deve ser aceito pela sociedade. Desde 2013, com a popularização dos protestos, que agora são a maneira normal de qualquer grupo exigir algo da política, um dilema se impõe e nos exige solução. Quem deve ter precedência: as atividades produtivas da maior parte da população, das quais depende inclusive a própria existência da sociedade, ou a opinião de grupos minoritários sobre alguma pauta de seu interesse? Não me parece ser um dilema muito difícil.

Sou contra protestos e manifestações? De forma alguma. Mesmo porque é inútil tentar impedi-los. Sou contra, isso, sim, sua romantização e santificação. O manifestante não tem nada que lhe torne mais importante do que qualquer outro membro da sociedade. Se esse membro da sociedade está, aliás, seguindo seu dia a dia na luta diária para se sustentar e gerar valor para os demais, ele é que deveria ter a prioridade. Manifestar as próprias ideias deve permanecer liberado; manifestá-las de modo a inviabilizar a rotina produtiva do restante da sociedade, só em casos especiais e com uma massa crítica mínima. Protestos de dezenas de gatos pingados que se veem no direito de interromper o restante da cidade são atos de violência injustificáveis e não devem ser permitidos.

A tendência geral é ver nas manifestações de rua um despertar da população a uma nova consciência, um povo mais participativo, mas decidido a “lutar” por seus direitos. Talvez caiba também um diagnóstico de sinal oposto: uma sociedade na qual a produção esteja sendo constantemente impedida pela manifestação de insatisfações é uma sociedade que será cada vez menos capaz de gerar o valor necessário para atender essas insatisfações. Em vez de buscar soluções, a preferência é reclamar e bater o pé. Em vez de produzir, exigir. Às vezes, é uma atitude necessária. Quando vira regra, o normal torna-se mais um problema do que uma solução.

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