A religião da vaia
Joel Pinheiro da Fonseca Não está claro qual será o saldo final da Olimpíada do Rio. Não está claro também se um saldo final será possível. Uma coisa, contudo, já se percebe: o comportamento da torcida brasileira não se pauta pelos ideais do Comitê Olímpico Internacional (COI). E não se baseia, presume-se, nas torcidas europeias […]
Da Redação
Publicado em 19 de agosto de 2016 às 19h09.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h11.
Joel Pinheiro da Fonseca
Não está claro qual será o saldo final da Olimpíada do Rio. Não está claro também se um saldo final será possível. Uma coisa, contudo, já se percebe: o comportamento da torcida brasileira não se pauta pelos ideais do Comitê Olímpico Internacional (COI). E não se baseia, presume-se, nas torcidas europeias e americanas. Quebrando todos os protocolos, o brasileiro vaia. E vaia com gosto, sem pedir desculpa, assumindo para o mundo seu desejo de deprimir o espírito e prejudicar o desempenho de seus desafetos.
Em geral, vaia o estrangeiro, mas essa regra não é absoluta. Quando o próprio time ou atleta brasileiro tem um desempenho muito aquém do esperado ou dá mostras de que não se dedicou como deveria, também é vaiado, execrado; torna-se um maldito. Nesses casos, o adversário, mesmo estrangeiro, pode virar herói. Em outras situações, é notável como nossa torcida se compadece de azarões e de atletas que erram feio, que revelam um lado humano. Via de regra, no entanto, torcemos pelos atletas brasileiros e vaiamos os adversários.
A torcida conecta o homem a uma ética mais antiga e com profundas raízes em nossa natureza: a guerra tribal. É um dos poucos espaços em que ela ainda não foi proscrita. Temos nossa tribo, usamos suas cores e insígnias, e nosso objetivo é derrotar a tribo adversária, que representa tudo o que se opõe a nós. Pode parecer brutal, mas é justamente a rivalidade — a existência de um inimigo — que faz com que nos importemos com a capacidade de um time de chutar a bola para dentro de uma trave ou de uma ginasta de dar piruetas no ar. Só torcemos a favor porque torcemos contra, e vice-versa.
Para os valores que supostamente inspiram a Olimpíada, nada disso vale. Os Jogos são feitos para que se celebrem a humanidade universal e a cooperação dos povos. Valores racionalistas, frios e ingenuamente idealistas, típicos do final do século 19 (e provavelmente inexistentes naquelas cidades-estados gregas antigas, tão passionais, nas quais os jogos de culto aos deuses tiveram sua origem). A volta da Olimpíada aos tempos modernos se deu em meio à crença de que boas intenções e espírito esportivo poderiam superar antigas inimizades internacionais.
No entanto, ter todas as competições divididas em nações compromete, de partida, esses ideais — dane-se a fraternidade dos povos, o que todo mundo quer saber é se seu país está derrotando os demais. As Olimpíadas foram palco de guerras simbólicas (entre os Estados Unidos e seus adversários nazistas e comunistas), mais do que um espaço de comunhão universal. Trata-se de uma nobre intenção torcer apenas pelo jogo bem jogado, pelo prazer de ver a disputa ou ainda pela união dos povos, mas na prática isso é quase impossível. A torcida nos movimenta justamente porque pertencemos a um lado e queremos que ele derrote os adversários. O Brasil, diferentemente da maioria dos países, vive essa realidade sem pudores.
Que o Brasil mantenha a sadia tradição da vaia é um elemento que mostra nossa vitalidade como nação. Não sucumbimos a algum sonho universalista que precisa silenciar o que há de mais visceral na humanidade. Porque não existe torcer a favor sem, ao mesmo tempo, torcer contra. Atrapalhar o adversário pelo simples fato de não pertencer ao nosso lado é uma forma de afirmar um “nós” concreto (uma expansão do “eu”) contra um “nós” abstrato e incapaz de concentrar as paixões da humanidade.
Ofender os sentimentos dos atletas, nesse contexto, parece mais uma vitória espiritual nossa do que um motivo para parar. Em um mundo no qual tudo ofende a todos, em que as pessoas competem para ver quem se ofende mais fácil, em que ser vítima virou virtude pública, chega a ser meritório desbancar essa ditadura das boas intenções artificiais e escancarar o que jaz em nosso coração.
Valorizo o jeito de ser brasileiro. As abstrações do COI e as regras da torcida politicamente correta decretam a morte de toda real torcida. Nossa vaia, sua vida. E, ainda assim, algo me incomoda nesse comportamento durante as provas. Outro grupo de valores, tão ou mais importante do que a identidade grupal; algo que aponta para além da identidade dos povos. Falo de algo diretamente ligado ao tipo de dedicação e de sacrifício que todo atleta profissional faz para chegar à disputa olímpica. Uma dedicação tão exclusiva e obsessiva a um objetivo — e um objetivo tão contingente, tão ditado por convenções arbitrárias — que me parece insensível não lhe prestar alguma reverência.
Naquele momento dos esportes individuais que antecede a performance, do atleta silencioso consigo mesmo, concentrado para dar o máximo de si mesmo, prestes a desafiar os limites da constituição física, deveria reinar uma austera solenidade. Se o que distingue o homem de todos os outros seres tiver algum valor, esse momento é sagrado, pois nos remete ao que é mais elevado e digno de admiração. A competição entre grupos humanos é boa, não precisa (nem pode) ser erradicada. Mas não é a única coisa que importa.
Um indivíduo sozinho perante o cosmos, prestes a tentar o impossível, está respondendo, a seu modo, àquela pergunta que demanda uma resposta de cada um: a que fim daremos esse tempo finito e curto que nos foi dado antes de retornar ao nada? Isso também é um valor e fala a todos independentemente da nacionalidade. Poluir esse momento em nome da paixão tribal é uma forma de sacrilégio para com a condição humana. Ou no mínimo uma falta de educação que prejudica a competição e que faríamos bem em abandonar. Depois de concluído o salto, depois do espírito cair de volta ao mundo dos mortais, que reinem mais uma vez as vaias e os aplausos.
Joel Pinheiro da Fonseca
Não está claro qual será o saldo final da Olimpíada do Rio. Não está claro também se um saldo final será possível. Uma coisa, contudo, já se percebe: o comportamento da torcida brasileira não se pauta pelos ideais do Comitê Olímpico Internacional (COI). E não se baseia, presume-se, nas torcidas europeias e americanas. Quebrando todos os protocolos, o brasileiro vaia. E vaia com gosto, sem pedir desculpa, assumindo para o mundo seu desejo de deprimir o espírito e prejudicar o desempenho de seus desafetos.
Em geral, vaia o estrangeiro, mas essa regra não é absoluta. Quando o próprio time ou atleta brasileiro tem um desempenho muito aquém do esperado ou dá mostras de que não se dedicou como deveria, também é vaiado, execrado; torna-se um maldito. Nesses casos, o adversário, mesmo estrangeiro, pode virar herói. Em outras situações, é notável como nossa torcida se compadece de azarões e de atletas que erram feio, que revelam um lado humano. Via de regra, no entanto, torcemos pelos atletas brasileiros e vaiamos os adversários.
A torcida conecta o homem a uma ética mais antiga e com profundas raízes em nossa natureza: a guerra tribal. É um dos poucos espaços em que ela ainda não foi proscrita. Temos nossa tribo, usamos suas cores e insígnias, e nosso objetivo é derrotar a tribo adversária, que representa tudo o que se opõe a nós. Pode parecer brutal, mas é justamente a rivalidade — a existência de um inimigo — que faz com que nos importemos com a capacidade de um time de chutar a bola para dentro de uma trave ou de uma ginasta de dar piruetas no ar. Só torcemos a favor porque torcemos contra, e vice-versa.
Para os valores que supostamente inspiram a Olimpíada, nada disso vale. Os Jogos são feitos para que se celebrem a humanidade universal e a cooperação dos povos. Valores racionalistas, frios e ingenuamente idealistas, típicos do final do século 19 (e provavelmente inexistentes naquelas cidades-estados gregas antigas, tão passionais, nas quais os jogos de culto aos deuses tiveram sua origem). A volta da Olimpíada aos tempos modernos se deu em meio à crença de que boas intenções e espírito esportivo poderiam superar antigas inimizades internacionais.
No entanto, ter todas as competições divididas em nações compromete, de partida, esses ideais — dane-se a fraternidade dos povos, o que todo mundo quer saber é se seu país está derrotando os demais. As Olimpíadas foram palco de guerras simbólicas (entre os Estados Unidos e seus adversários nazistas e comunistas), mais do que um espaço de comunhão universal. Trata-se de uma nobre intenção torcer apenas pelo jogo bem jogado, pelo prazer de ver a disputa ou ainda pela união dos povos, mas na prática isso é quase impossível. A torcida nos movimenta justamente porque pertencemos a um lado e queremos que ele derrote os adversários. O Brasil, diferentemente da maioria dos países, vive essa realidade sem pudores.
Que o Brasil mantenha a sadia tradição da vaia é um elemento que mostra nossa vitalidade como nação. Não sucumbimos a algum sonho universalista que precisa silenciar o que há de mais visceral na humanidade. Porque não existe torcer a favor sem, ao mesmo tempo, torcer contra. Atrapalhar o adversário pelo simples fato de não pertencer ao nosso lado é uma forma de afirmar um “nós” concreto (uma expansão do “eu”) contra um “nós” abstrato e incapaz de concentrar as paixões da humanidade.
Ofender os sentimentos dos atletas, nesse contexto, parece mais uma vitória espiritual nossa do que um motivo para parar. Em um mundo no qual tudo ofende a todos, em que as pessoas competem para ver quem se ofende mais fácil, em que ser vítima virou virtude pública, chega a ser meritório desbancar essa ditadura das boas intenções artificiais e escancarar o que jaz em nosso coração.
Valorizo o jeito de ser brasileiro. As abstrações do COI e as regras da torcida politicamente correta decretam a morte de toda real torcida. Nossa vaia, sua vida. E, ainda assim, algo me incomoda nesse comportamento durante as provas. Outro grupo de valores, tão ou mais importante do que a identidade grupal; algo que aponta para além da identidade dos povos. Falo de algo diretamente ligado ao tipo de dedicação e de sacrifício que todo atleta profissional faz para chegar à disputa olímpica. Uma dedicação tão exclusiva e obsessiva a um objetivo — e um objetivo tão contingente, tão ditado por convenções arbitrárias — que me parece insensível não lhe prestar alguma reverência.
Naquele momento dos esportes individuais que antecede a performance, do atleta silencioso consigo mesmo, concentrado para dar o máximo de si mesmo, prestes a desafiar os limites da constituição física, deveria reinar uma austera solenidade. Se o que distingue o homem de todos os outros seres tiver algum valor, esse momento é sagrado, pois nos remete ao que é mais elevado e digno de admiração. A competição entre grupos humanos é boa, não precisa (nem pode) ser erradicada. Mas não é a única coisa que importa.
Um indivíduo sozinho perante o cosmos, prestes a tentar o impossível, está respondendo, a seu modo, àquela pergunta que demanda uma resposta de cada um: a que fim daremos esse tempo finito e curto que nos foi dado antes de retornar ao nada? Isso também é um valor e fala a todos independentemente da nacionalidade. Poluir esse momento em nome da paixão tribal é uma forma de sacrilégio para com a condição humana. Ou no mínimo uma falta de educação que prejudica a competição e que faríamos bem em abandonar. Depois de concluído o salto, depois do espírito cair de volta ao mundo dos mortais, que reinem mais uma vez as vaias e os aplausos.