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Julgamento doloso; colunista comenta o ruidoso caso de Mari Ferrer

A alegação de que o estupro da influenciadora não foi intencional abre precedente perigoso em uma sociedade onde criminosos ficam impunes

Advogado afirmou que influenciadora “não era inocente” (Oxford/Getty Images)
Advogado afirmou que influenciadora “não era inocente” (Oxford/Getty Images)
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Nosso Olhar

Publicado em 6 de novembro de 2020 às, 14h11.

Última atualização em 6 de novembro de 2020 às, 15h45.

Dia 3 de novembro. Dia em que deveríamos comemorar os 90 anos da instituição do direito ao voto feminino no Brasil. Mas não foi um dia de comemorações e sim de indignação por um caso onde houve a alegação de que o estupro ocorrido não foi intencional. Isso não existe e abre um precedente muito perigoso em uma sociedade onde as mulheres frequentemente são desqualificadas e os criminosos ficam impunes.

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Para além de todo o absurdo dessa situação, é importante comentarmos outra coisa que foi escancarada com o caso da Mari Ferrer, que é a tentativa de construir um valor da mulher a partir de sua imagem. A alegação do Ministério Público de Santa Catarina de que o vídeo que circulou nas mídias sociais teria sido manipulado não tira o impacto das frases ditas pela defesa do acusado. O advogado utilizou fotos dela tentando construir um argumento de que ela “não era inocente”, que as imagens estavam em “posições ginecológicas”, afirmou que “jamais teria uma filha do nível dela”.

Essa abominável tentativa de extrair um juízo de valor a partir de uma imagem, de uma foto de uma mulher, infelizmente não é um caso isolado. Vivemos ainda submetidos a preconceitos e julgamentos do que é ou não considerado adequado. Onde tentam separar as mulheres que são “para casar” das que não teriam nenhum valor. Isso contribui para uma cultura que louva mulheres que seguem o mito da mulher perfeita e destrói e questiona aquelas que são diferentes.

Isso não faz o menor sentido. Suas roupas, seu peso, seu cabelo, sua maquiagem ou a ausência dela, suas tatuagens, suas cicatrizes, nada disso pode ser utilizado como uma definição do seu caráter ou menos ainda da sua capacidade de fazer ou deixar de fazer algo.

Esse preconceito se manifesta no dia a dia e até no ambiente de trabalho. Por que devemos ter um “capital estético” para ter melhores oportunidades em uma entrevista de emprego? Enquanto homens são avaliados por seus currículos, mulheres são avaliadas pelo currículo e pela aparência. Advogadas, políticas, economistas, CEOs, jornalistas, cientistas são antes avaliadas por sua aparência do que pelo seu trabalho. Ou melhor, sua aparência em muitos casos, desqualifica um trabalho sério e profundo. Mulheres negras, indígenas, orientais, homossexuais e deficientes sofrem ainda mais preconceito do que mulheres brancas.

A plataforma e comunidade de carreiras para mulheres Fairygodboss realizou uma pesquisa com homens e mulheres que trabalham com contratações, onde foram apresentadas fotos de mulheres de diferentes idades, etnias, tamanhos, estilos de se vestir e cabelos. O resultado da pesquisa apontou que somente 15,6% dos profissionais de RH contratariam mulheres com sobrepeso, 15% contratariam mulheres que não fossem simpáticas e 29,2% contratariam mulheres mais velhas.

Continuamos aceitando falsos estereótipos e normalizando que sejamos julgadas e objetificadas pela aparência. Nossa imagem é sim uma forma de nos expressar, mas ninguém tem o direito de usar isso contra nós ou criar pressupostos de desqualificação.

Precisamos de uma mudança de cultura que contemple o fim dos julgamentos baseados superficialmente em aspectos físicos e, mais urgentemente, o fim da cultura do estupro, da discriminação de gênero e do racismo.