Exame.com
Continua após a publicidade

Precisamos tirar o chapéu para Mike Pence

Pence agiu com o espírito de estadista ao colocar os interesses da Nação acima dos próprios. Surge, agora, como um forte candidato à sucessão de 2024

A presidente da Câmara dos EUA, Nancy Pelosi, ouve o vice-presidente dos EUA, Mike Pence, falar durante uma sessão conjunta do Congresso para certificar os resultados das eleições de 2020 no Capitólio em Washington, EUA, 6 de janeiro de 2021.  (Erin Scott/Reuters)
A presidente da Câmara dos EUA, Nancy Pelosi, ouve o vice-presidente dos EUA, Mike Pence, falar durante uma sessão conjunta do Congresso para certificar os resultados das eleições de 2020 no Capitólio em Washington, EUA, 6 de janeiro de 2021. (Erin Scott/Reuters)
M
Money Report – Aluizio Falcão Filho

Publicado em 7 de janeiro de 2021 às, 08h36.

Confesso que só prestei atenção em Mike Pence no debate travado com Kamala Harris em outubro do ano passado, depois de quase quatro anos de mandato. Como vice de uma figura solar como Donald Trump, foi tão discreto que passava despercebido em inúmeras situações. Também admito que Harris ganhou a minha simpatia diante da virulência com a qual Pence se comportou durante o embate, tratando-a com descortesia e a interrompendo seguidas vezes. Para piorar, uma mosca resolveu pousar em seu cabelo no meio do evento, tornando sua performance um tanto quanto burlesca.

Alguns meses depois, devo dar a mão à palmatória. Pence, que acumula seu cargo com o de presidente do Senado, não deu a menor margem de manobra para Donald Trump durante seus delírios golpistas. Companheiro de chapa e irmão de armas do presidente, ele poderia ter embarcado no canto da sereia ensaiado pela Casa Branca e tentar melar o processo de certificação de Joe Biden.

Pence preferiu ficar ao lado do Estado de Direito — como fiador da democracia americana — e precisa ser reconhecido por isso. Parece esquisito: elogiar alguém por defender a Constituição e agir da forma óbvia. Mas, diante de um contexto como o dos Estados Unidos da atualidade, ficar ao lado da lei e não embarcar na conversa fiada de Trump já é algo digno de aplauso. Seu discurso, ao retomar os trabalhos para oficializar a eleição de Biden foi preciso: “”A violência nunca vence. A liberdade vence. Ao nos reunirmos novamente nesta Câmara, o mundo testemunhará novamente a resiliência e a força de nossa democracia. E esta ainda é a casa do povo”.

A ombridade de Pence, por exemplo, não se viu em outro prócer do Partido Republicano, o ex-prefeito de Nova York, Rudy Giuliani. O advogado particular de Trump, antes de se aventurar pela política, foi um promotor público de sucesso e responsável pela prisão de megainvestidores como Ivan Boesky e Michael Milken nos anos 1980, em um dos maiores escândalos financeiros de Wall Street. Anos mais tarde, assumiria a prefeitura de Nova York e criaria com sucesso o programa de Tolerância Zero para combater a criminalidade da maior cidade americana. Porém, ao se transformar em um títere do ex-apresentador de “O Aprendiz”, brandindo fraudes eleitorais que nunca foram comprovadas, manchou sua biografia e deverá premiado com um lugar nos porões escuros da história.

Pence poderia agir em causa própria e encontrar alguma chicana legal para retardar a certificação de Biden ou abraçar a causa de Trump sem pudores como fez o ex-prefeito de Nova York. Em vez disso, preferiu a legalidade e a defesa da democracia. Agiu com o espírito de estadista ao colocar os interesses da Nação acima dos próprios. Surge, agora, como um forte candidato à sucessão de 2024.

Ontem, em uma nota rápida, descrevi a situação de Trump da seguinte forma: o presidente americano age como um assaltante de banco que, cercado pela polícia, fica criando estratagemas para retardar ao máximo sua rendição e tentar encontrar uma forma de escapulir. Seu movimento desastroso, de conclamar uma turba descontrolada para invadir o Parlamento, teve o saldo deplorável de quatro mortes. Por isso, ao ver a situação no Congresso chegar a um nível e tensão incontrolável, conclamou seus apoiadores a voltar para casa. Mas o estrago já tinha sido feito.

Nenhum presidente jamais cometeu tamanho atentado contra a democracia dos Estados Unidos. Ou apresentou argumentos tão pífios para justificar uma suposta fraude nas urnas. Trump disse que venceu de lavada (“landslide”, em inglês, que quer dizer literalmente “avalanche”) e que Biden obteve “80 milhões de votos vindos de computadores”. Nesse raciocínio tortuoso, isso quer dizer que Biden deixou de fraudar apenas um milhão de votos? Trump teria vencido por 74 milhões de sufrágios contra um milhão? Onde foram parar os demais eleitores? E os democratas, sumiram do mapa?

O desespero de Trump nos mostra até onde uma pessoa desequilibrada pode chegar quando sua vontade é contestada, especialmente quando ocupa um cargo com tanto poder nas mãos. Neste momento, temos de agradecer que este indivíduo ocupou a presidência muitos anos após o final da Guerra Fria. Já imaginaram se, 30 anos atrás, Trump estivesse no lugar de Ronald Reagan e Vladimir Putin no de Mikhail Gorbatchev?

(Pausa)

Sentiram o mesmo arrepio na espinha que eu experimentei? Pois é. Ainda bem que isso não aconteceu.