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Lula quer reescrever o passado; deveria olhar para o futuro

Governo de Luiz Inácio Lula da Silva, em pouco mais de cinco meses, já tentou revogar 231 decretos de administrações anteriores

Luiz Inácio Lula da Silva (Zed Jameson/Getty Images)
Luiz Inácio Lula da Silva (Zed Jameson/Getty Images)

O jornal “O Estado de S. Paulo” de ontem mostra uma estatística intrigante: o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, em pouco mais de cinco meses, já tentou revogar 231 decretos de administrações anteriores. Na prática, isso significa que Lula anulou (integral ou parcialmente) 2 decretos emitidos por governos anteriores ao dia.

A motivação para o revogaço é quase sempre ideológica e tem como alvo prioritário decisões tomadas pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Neste pacotão, foram revogadas a política de armas do antigo governo e o programa de desestatização. A estrela desta onda de anulações, no entanto, foi a mudança no Marco do Saneamento, que permitia a atuação de empresas privadas na distribuição de água e tratamento de esgotos – uma vez que o poder público se mostrou incompetente para resolver essa questão (são 45 % da população sem saneamento, ou cerca de 100 milhões de pessoas). O governo Lula, no entanto, quis impedir que a iniciativa privada entrasse neste mercado, apesar das inúmeras demonstrações de que as autoridades não conseguem encontrar sozinhas uma solução para o problema.

“A história é contada pelos vencedores”, já disse o escritor George Orwell em 1944. O que o PT está fazendo é ampliar o conceito difundido por Orwell quase oitenta anos atrás – trata-se de reescrever o passado, impondo a sua visão de mundo a todos os brasileiros.

Num mundo polarizado como o nosso, as vitórias políticas se dão com a participação de eleitores moderados, que a princípio não se alinham ideologicamente com os extremos. Até aí, tudo bem. O problema é que a vitória dá uma falsa impressão a quem triunfa de que a maioria esmagadora da população pensa como eles. Vimos isso ocorrer com Jair Bolsonaro e, agora, a mesma situação se repete com Lula.

Contudo, o presidente da Câmara, Arthur Lira, já deixou claro que não permitirá retrocessos – e que a rejeição às mudanças no Marco do Saneamento foi um recado muito claro dos congressistas em relação a isso. Portanto, segundo alguns analistas, não adianta o governo abrir a carteira que o Parlamento não irá apoiar uma guinada à esquerda. O mesmo raciocínio vale, por exemplo, para a privatização da Eletrobrás. Apesar dos queixumes de Lula em relação a essa desestatização, tudo vai ficar como está.

Apesar de Lula ter vencido as eleições presidenciais, o Congresso que tomou posse é significativamente mais conservador e alinhado com o Centro. Isso mostra que o voto lulista – pelo menos em uma determinada fatia do eleitorado – foi muito mais uma manifestação de protesto contra Bolsonaro do que uma aprovação ao ex-líder sindical.

A moderação do Parlamento deve tutelar Lula em seus arroubos mais alinhados à esquerda e talvez refrear um pouco do rancor que o presidente destila em suas falas. Hoje, o mandatário não conta com um núcleo duro tão ponderado como no passado, em que figuras como Jacques Wagner eram conselheiros frequentes. Atualmente, as vozes que chegam a seus ouvidos são mais radicais e provocadoras. O Congresso, assim, é a única força que pode segurar o governo em sua ânsia de reescrever o passado.

Até quando viveremos essa polarização, elegendo líderes que estão sempre querendo jogar para suas torcidas?

Talvez a solução seja introduzir uma nova equação neste processo – um político de centro que consiga entusiasmar uma parcela do eleitorado que está nos extremos (algo que, até agora, não ocorreu). Essa seria a única forma de colocar os moderados na ribalta, ouvindo os dois lados da moeda – e fazendo uma administração de conciliações e de crescimento sustentável. E que olhe para o futuro, como Lula deveria fazer, em vez de ficar olhando para o passado.