Estamos emburrecendo na era digital?
De um lado, a humanidade fica menos inteligente e, de outro, as máquinas ganham capacidade de raciocinar – e de aprender
Publicado em 29 de abril de 2022 às, 18h48.
Talvez você já tenha ouvido falar no efeito Flynn: trata-se do fenômeno segundo o qual existe um aumento constante dos resultados mundiais nos testes de QI. O nome foi dado em homenagem ao psicólogo americano James Flynn. Ele, em 1982, percebeu que a cada dez anos os resultados médios da população eram três pontos superiores acima das notas obtidas na década anterior. Na prática, alguém com um resultado médio dos anos 1980 poderia ser classificado como um gênio se fizesse o primeiro teste de raciocínio, aplicado em 1904.
Um texto que agita as redes sociais há alguns meses voltou a circular nos últimos dias. Trata-se de um artigo atribuído a um especialista francês em recursos humanos, chamado Christopher Clavé. Segundo essa tese, as novas gerações estão emburrecendo – ou ficando menos inteligentes. Isso estaria acontecendo porque existe um “empobrecimento da linguagem”.
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Diz o texto: “vários estudos mostram a diminuição do conhecimento lexical e o empobrecimento da linguagem. Não é apenas a redução do vocabulário utilizado, mas também as sutilezas linguísticas que permitem elaborar e formular pensamentos complexos. O desaparecimento gradual dos tempos (subjuntivo, imperfeito, formas compostas do futuro, particípio passado) dá origem a um pensamento quase sempre no presente, limitado ao momento, incapaz de projeções no tempo”.
Isso pode até fazer sentido. Mas uma pesquisa rápida mostra que o assunto já é debatido pelo menos desde 2018, sendo registrado inclusive por um artigo da revista Time.
Em 2018, a revista americana mostrou que, na Noruega, os indicadores de inteligência da população começaram a cair a partir de 1975. Fatores ligados ao contexto da população teriam relação com essa queda generalizada, como educação, a falta de leitura e, mais recentemente, tempo exagerado de navegação em ambiente online.
Mas uma das teses levantadas para explicar este episódio no país nórdico teria em seu bojo uma grande dose de preconceito. Famílias de QI mais baixo (imigrantes, especificamente) estariam se reproduzindo mais rapidamente e, assim, diminuindo as médias das nações estudadas, como a própria Noruega e Dinamarca. Ocorre que um estudo datado de 2018 mostra que há uma diminuição de indicadores de inteligência mesmo em famílias com registros de alto QI.
Especialistas noruegueses têm várias explicações para o fenômeno – mas uma é utilizada com maior frequência que as demais. A principal razão, assim, seria o crescimento de empregos de baixa qualificação na área de serviços, que não exigem um trabalho intenso do ponto de vista intelectual. O cérebro, dessa forma, ficaria atrofiado por falta de desafios mentais.
Outras explicações não são ainda totalmente endossadas pelos cientistas, como uma alimentação com menor teor nutritivo que a das gerações anteriores e o uso excessivo de aparelhos eletrônicos, que interfeririam na capacidade de manter foco em situações nas quais a concentração mental é necessária, como os testes de inteligência.
Esse é um dos grandes desafios da era moderna: manter o foco. No passado, tínhamos poucas oportunidades para procrastinar tarefas chatas ou adiar uma leitura. Hoje, é difícil ficar concentrado apenas naquilo que é necessário, pois são inúmeros os momentos em que somos atraídos para outras atividades. Sem foco, no entanto, dificilmente exercitaremos a nossa massa encefálica e nos manteremos afiados mentalmente.
Além disso, temos outro problema. Estamos moldando nossos pensamentos à ideologia que seguimos. Dessa forma, quando temos de analisar algum cenário, não perdemos muito tempo para inseri-lo em um escaninho previamente estabelecido por nossas convicções políticas. Dessa forma, raciocinamos menos – e evitamos discutir com pessoas que pensam diferente de nós. A falta de duelos intelectuais também pode enfraquecer nosso discernimento e capacidade de argumentação.
Por fim, temos que lidar também com um problema antigo – os redutores clássicos de inteligência, como a vaidade. Em nome da presunção e do amor-próprio, podemos enveredar por caminhos que normalmente não escolheríamos. Mas a vaidade cega os indivíduos e reduz sua capacidade de pensar. Essa questão, no entanto, afeta a humanidade desde os tempos bíblicos e não pode ser creditada ao mundo de hoje.
Estamos aparentemente entrando em um cenário perigoso. De um lado, a humanidade fica menos inteligente e, de outro, as máquinas ganham capacidade de raciocinar – e de aprender. Qual será o final desta equação? Será que filmes de ficção científica que alardeiam um futuro no qual as máquinas mandam em seres humanos – como em “Matrix” – apontam a direção a ser tomada por nossa civilização?