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E quando você se transforma em outra pessoa – ou fica invisível?

Quando a palavra de ordem nas relações corporativas é “empatia”, fico pensando se essa busca pela conexão humana está democraticamente aberta a todo

Há pessoas simpáticas que se transformam em pedras de gelo quando têm de entrar em contato com alguém uniformizado (Thinkstock/Getty Images)
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isabelarovaroto

Publicado em 23 de agosto de 2020 às 20h55.

Se você começou a ler essas linhas é sinal de que ficou intrigado com o título deste artigo. Ele foi motivado pela visita que fiz ao restaurante de um amigo, depois do longo e tenebroso inferno motivado pela pandemia do coronavírus. Alguns anos atrás, fui almoçar neste mesmo local com essa pessoa querida (tá bom, é o Carlos Carvalho, dono do Kosushi) e esticamos a conversa além da conta. Quando percebemos, éramos os únicos no local – os demais clientes tinham ido embora. Já me preparava para sair quando um dos garçons chamou o Carlinhos e tiveram um diálogo bem rápido.

Meu amigo voltou à mesa e me perguntou se eu poderia ajudá-lo. “Claro”, respondi. Ele me contou, então, que o cantor Mick Hucknall, da banda Simply Red, estava hospedado em um hotel 5 estrelas em São Paulo (faria um show naquele final de semana) e que havia procurado o concierge atrás de uma indicação de restaurante japonês. O Kosushi fora indicado, mas a condição para que a celebridade fosse lá era de que as portas teriam de ficar cerradas, para evitar o assédio. Carlinhos, então, me perguntou se poderia ajudar servindo de intérprete.

Concordei imediatamente, para ajudar meu amigo e também conhecer o líder de uma banda da qual gostava muito. Depois de alguns minutos, Hucknall apareceu acompanhado de seu baterista, o japonês Gota Yashiki, e um segurança com literalmente mais de dois metros de altura.

Fiz as honras da casa e dei as boas-vindas. Tratei de aboletá-los no sushi bar, em frente ao George Koshoji, uma das maiores autoridades em sushi que conheço. Apresentei Hucknall a George e percebi que o segurança havia sumido. Perguntei ao cantor: “Onde está o outro cara?”. A resposta foi rápida e seca: “Deixe que nós nos preocupamos com ele, OK?”.
Já entrevistei muita gente famosa e/ou importante. Mas sempre na condição de jornalista – o que, no fundo, não me faz exatamente alguém vultoso, mas que acaba fazendo os outros me tratem de forma polida, nem que seja muitas vezes por interesse no texto que irei escrever. No caso de Hucknall, no entanto, havia um misto de impaciência, desprezo e indiferença. Na hora, me toquei – para ele, eu sou apenas um cara que trabalha em um restaurante japonês de São Paulo.

Isso me fez refletir: será que eu tratava garçons, maitres e recepcionistas com o mesmo pouco-caso? Cheguei à conclusão de que não. Mas passei a me policiar neste aspecto para que não dispensasse aos outros o mesmo tratamento que recebi do vocalista do Simply Red.

Hoje, quando a palavra de ordem nas relações corporativas é “empatia”, fico pensando se essa busca pela conexão humana está democraticamente aberta a todos – ou se estamos falando de uma democracia grega, que valia apenas para a elite. De fato, tenho alguns amigos que praticam a empatia diariamente e criam micro ligações o tempo todo e com qualquer pessoa, seja qual for o ranking social do interlocutor. Nem todos, porém, agem dessa forma. Casos como o de Mick Hucknall comigo são muito comuns. Há pessoas gentilíssimas e simpáticas que se transformam em pedras de gelo quando têm de entrar em contato com alguém uniformizado.

Essas situações me lembram um artigo que editei em 2004. Ele versava sobre a tese de mestrado do psicólogo Fernando Braga, depois transformada em livro. Seu título: “Homens Invisíveis: Relatos de uma Humilhação Social”.

A tese de Braga nascera dez anos antes, quando ele cursava o segundo ano de Psicologia na Universidade de São Paulo. Uma das matérias que cursava o levou a acompanhar, de duas a três vezes por semana, a rotina dos garis da Cidade Universitária. Num determinado momento, resolveu utilizar o uniforme e trabalhar junto com eles. Até que, certo dia, entrou no prédio onde estudava vestido como gari, esperando causar reações de curiosidade por parte de colegas ou professores. Mas surpreendeu-se com a reação. Com aquelas roupas, Braga parecia ser invisível.

Na entrevista que deu à jornalista Paula Mageste, hoje diretora da revista Elle, Braga disse: “Atravessei o andar térreo da Psicologia de ponta a ponta. Estava atento, buscava a expressão de surpresa em alguém. Mas nada acontecia”, conta. “Deixei de esperar perguntas intrigadas, mas ainda seria capaz de responder a algum cumprimento. Nada”. Mesmo professores que havia saudado horas antes cruzaram seu caminho sem perceber sua presença. Braga não foi repudiado ou desprezado – sua presença nem chegou a ser notada. Era como se ele fosse invisível.

A leitura deste artigo, antes mesmo de sua publicação, teve um efeito gigantesco sobre mim. Neste caso, percebi claramente que havia passado boa parte de minha vida ignorando faxineiros, garis, ascensoristas, agentes de segurança, porteiros e outros pessoas que ganham a vida uniformizadas. Mudei imediatamente meu comportamento e me policio frequentemente para não agir de forma elitista e arrogante com pessoas que usam algum tipo de uniforma.

Nesta situação específica, o processo de empatia foi fundamental. Me coloquei literalmente nos sapatos de outra pessoa e abri meus olhos para agir de forma contrária a algo que era absolutamente normal para mim. Hoje, vejo a importância deste processo e fico imaginando como teria sido a minha carreira se este episódio do restaurante tivesse ocorrido dez anos antes. Provavelmente eu teria uma compreensão da sociedade muito diferente da atual – e teria evitado vários desentendimentos e confusões no passado. Dizem que a sabedoria vem com a idade. É verdade. Mas há coisas simples que deveríamos aprender mais cedo, pois tornaríamos o mundo um lugar muito melhor para viver.

Se você começou a ler essas linhas é sinal de que ficou intrigado com o título deste artigo. Ele foi motivado pela visita que fiz ao restaurante de um amigo, depois do longo e tenebroso inferno motivado pela pandemia do coronavírus. Alguns anos atrás, fui almoçar neste mesmo local com essa pessoa querida (tá bom, é o Carlos Carvalho, dono do Kosushi) e esticamos a conversa além da conta. Quando percebemos, éramos os únicos no local – os demais clientes tinham ido embora. Já me preparava para sair quando um dos garçons chamou o Carlinhos e tiveram um diálogo bem rápido.

Meu amigo voltou à mesa e me perguntou se eu poderia ajudá-lo. “Claro”, respondi. Ele me contou, então, que o cantor Mick Hucknall, da banda Simply Red, estava hospedado em um hotel 5 estrelas em São Paulo (faria um show naquele final de semana) e que havia procurado o concierge atrás de uma indicação de restaurante japonês. O Kosushi fora indicado, mas a condição para que a celebridade fosse lá era de que as portas teriam de ficar cerradas, para evitar o assédio. Carlinhos, então, me perguntou se poderia ajudar servindo de intérprete.

Concordei imediatamente, para ajudar meu amigo e também conhecer o líder de uma banda da qual gostava muito. Depois de alguns minutos, Hucknall apareceu acompanhado de seu baterista, o japonês Gota Yashiki, e um segurança com literalmente mais de dois metros de altura.

Fiz as honras da casa e dei as boas-vindas. Tratei de aboletá-los no sushi bar, em frente ao George Koshoji, uma das maiores autoridades em sushi que conheço. Apresentei Hucknall a George e percebi que o segurança havia sumido. Perguntei ao cantor: “Onde está o outro cara?”. A resposta foi rápida e seca: “Deixe que nós nos preocupamos com ele, OK?”.
Já entrevistei muita gente famosa e/ou importante. Mas sempre na condição de jornalista – o que, no fundo, não me faz exatamente alguém vultoso, mas que acaba fazendo os outros me tratem de forma polida, nem que seja muitas vezes por interesse no texto que irei escrever. No caso de Hucknall, no entanto, havia um misto de impaciência, desprezo e indiferença. Na hora, me toquei – para ele, eu sou apenas um cara que trabalha em um restaurante japonês de São Paulo.

Isso me fez refletir: será que eu tratava garçons, maitres e recepcionistas com o mesmo pouco-caso? Cheguei à conclusão de que não. Mas passei a me policiar neste aspecto para que não dispensasse aos outros o mesmo tratamento que recebi do vocalista do Simply Red.

Hoje, quando a palavra de ordem nas relações corporativas é “empatia”, fico pensando se essa busca pela conexão humana está democraticamente aberta a todos – ou se estamos falando de uma democracia grega, que valia apenas para a elite. De fato, tenho alguns amigos que praticam a empatia diariamente e criam micro ligações o tempo todo e com qualquer pessoa, seja qual for o ranking social do interlocutor. Nem todos, porém, agem dessa forma. Casos como o de Mick Hucknall comigo são muito comuns. Há pessoas gentilíssimas e simpáticas que se transformam em pedras de gelo quando têm de entrar em contato com alguém uniformizado.

Essas situações me lembram um artigo que editei em 2004. Ele versava sobre a tese de mestrado do psicólogo Fernando Braga, depois transformada em livro. Seu título: “Homens Invisíveis: Relatos de uma Humilhação Social”.

A tese de Braga nascera dez anos antes, quando ele cursava o segundo ano de Psicologia na Universidade de São Paulo. Uma das matérias que cursava o levou a acompanhar, de duas a três vezes por semana, a rotina dos garis da Cidade Universitária. Num determinado momento, resolveu utilizar o uniforme e trabalhar junto com eles. Até que, certo dia, entrou no prédio onde estudava vestido como gari, esperando causar reações de curiosidade por parte de colegas ou professores. Mas surpreendeu-se com a reação. Com aquelas roupas, Braga parecia ser invisível.

Na entrevista que deu à jornalista Paula Mageste, hoje diretora da revista Elle, Braga disse: “Atravessei o andar térreo da Psicologia de ponta a ponta. Estava atento, buscava a expressão de surpresa em alguém. Mas nada acontecia”, conta. “Deixei de esperar perguntas intrigadas, mas ainda seria capaz de responder a algum cumprimento. Nada”. Mesmo professores que havia saudado horas antes cruzaram seu caminho sem perceber sua presença. Braga não foi repudiado ou desprezado – sua presença nem chegou a ser notada. Era como se ele fosse invisível.

A leitura deste artigo, antes mesmo de sua publicação, teve um efeito gigantesco sobre mim. Neste caso, percebi claramente que havia passado boa parte de minha vida ignorando faxineiros, garis, ascensoristas, agentes de segurança, porteiros e outros pessoas que ganham a vida uniformizadas. Mudei imediatamente meu comportamento e me policio frequentemente para não agir de forma elitista e arrogante com pessoas que usam algum tipo de uniforma.

Nesta situação específica, o processo de empatia foi fundamental. Me coloquei literalmente nos sapatos de outra pessoa e abri meus olhos para agir de forma contrária a algo que era absolutamente normal para mim. Hoje, vejo a importância deste processo e fico imaginando como teria sido a minha carreira se este episódio do restaurante tivesse ocorrido dez anos antes. Provavelmente eu teria uma compreensão da sociedade muito diferente da atual – e teria evitado vários desentendimentos e confusões no passado. Dizem que a sabedoria vem com a idade. É verdade. Mas há coisas simples que deveríamos aprender mais cedo, pois tornaríamos o mundo um lugar muito melhor para viver.

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