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A inteligência emocional nem sempre acompanha a genialidade

Os gênios sempre foram disputados a tapa -- e as excentricidades relevadas. Mas hoje, a cultura do cancelamento pode fulminar talentos e carreiras

Marie Curie  é interpretada por Rosamund Pike no filme Radioatividade (Netflix/Reprodução)
Marie Curie é interpretada por Rosamund Pike no filme Radioatividade (Netflix/Reprodução)
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Money Report – Aluizio Falcão Filho

Publicado em 21 de abril de 2021 às, 09h06.

Um filme disponível na Netflix (“Radioatividade”) mostra a saga da cientista Marie Curie (interpretada por Rosamund Pike), que descobriu dois novos elementos no final do século 19 e cunhou o termo que dá nome à obra cinematográfica. Detentora de dois prêmios Nobel (Física e Química), Curie foi a primeira mulher a receber essa honraria. Mas seu pioneirismo não para por aqui: é reconhecida como a representante inicial do sexo feminino entre os acadêmicos da Universidade Sorbonne e igualmente a primeira mulher a ser enterrada no Panteão francês por seus méritos científicos.
Confesso que só prestei atenção no nome da cientista há dois anos, quando minha filha fez uma apresentação sobre ela na escola. Chamou-me a atenção a história: uma química que consegue romper o machismo arraigado na elite acadêmica francesa no início do século passado e obter grandes conquistas através de suas pesquisas. Movido pela curiosidade, li um artigo sobre Curie, que explorou mais o aspecto feminista de sua trajetória. Mas fiquei por aí.
O longa-metragem conduz a sua história sem endeusá-la e mostrando uma fragilidade que só aparecia em momentos de intimidade. Um filme bem dirigido, cujo enredo toca em três pontos importantes à medida que a narrativa se desenrola.
O primeiro, evidentemente, é o desafio de ser uma desbravadora no meio de um universo repleto de homens. Seu primeiro Nobel, por sinal, foi conferido primeiramente apenas a seu marido, Pierre Curie, embora ela tenha descoberto sozinha a existência do polônio e do rádio, além de entender o fenômeno da radiação antes que qualquer outro cientista (essa anomalia foi corrigida mais tarde). Não se pode dizer que se trata de um filme feminista, mas retrata com honestidade a luta de uma mulher pelo reconhecimento de seu trabalho junto à comunidade científica.
Curie, após ficar viúva, se envolve com um homem casado, que abandona sua família para viver com ela. A ex-mulher do namorado, então, escreve uma carta aos jornais parisienses, que criam um verdadeiro escândalo – a ponto de gerar protestos de grupos moralistas em frente à casa onde morava. É aqui que entra o segundo ponto abordado: a xenofobia e o antissemitismo.
Nascida na Polônia, Curie tinha um sobrenome que foi interpretado como judeu (Skłodowska). Ela, uma ateia, dizia que não ter origem judaica – mas foi atacada por isso, inclusive pela imprensa francesa. O escândalo, de alguma forma, repetiu a hostilidade aos hebreus que havia sido exposta durante o Caso Dreyfus, no qual um capitão de exército judeu foi acusado injustamente de traição. A origem polonesa também foi lembrada constantemente neste episódio, escancarando o preconceito reinante naquele momento histórico.
A cientista teve de lutar contra a antipatia de uma sociedade que não via com bons olhos uma mulher com vida sexual ativa e, ainda por cima, que não ligava para as convenções sociais, pois teve um affair com um homem casado.
Por fim, é possível ver que a genialidade de Curie a privava de inteligência emocional. Ela estava sempre se defendendo ou atacando os outros. Evidentemente, estamos falando de uma mulher pioneira no campo científico, lutando contra uma onda gigantesca de discriminação e repúdio. Por isso, precisamos dar os devidos descontos a uma personalidade rígida e pontiaguda.
Percebe-se, porém, que esse comportamento ocorria até quando ela estava diante de pessoas que apenas queriam ajudá-la. Com um pouco de empatia, Curie talvez tivesse galgado um caminho sem tantas barreiras. Altas doses de inteligência, porém, geralmente vêm acompanhadas de uma diminuta capacidade de lidar com suas próprias emoções e com terceiros.
É possível observar isso claramente na relação com o marido e com os membros da Academia. Após enviuvar, por exemplo, ela é chamada pelo Estado Maior da Sorbonne para que seja entrevistada. A intenção, no caso, é oferecer uma posição de professora (algo inédito, até então). Curie, porém, recusa-se a ser sabatinada e, altiva, alfineta os membros da comissão universitária com comentários ácidos (ao final, ela seria convidada de qualquer forma, mas tornou o caminho da contratação mais longo).
No mundo intelectual, nas artes e nas ciências, os gênios sempre foram disputados a tapa e, neste processo, suas excentricidades acabavam sendo relevadas. Mas, nos dias de hoje, a cultura do cancelamento tem uma capacidade fulminar talentos e carreiras – e mentes geniais como as de Marie Curie correriam o risco, hoje, de ficar pelo caminho (o preconceito machista de hoje, embora menor do que o de cem anos atrás, ainda é persistente).
Estamos diante de um universo em que nada é perdoado. Como faremos para preservar os gênios que se comportam sem se preocupar com as convenções politicamente corretas? Como preservar esses talentos do cancelamento? É possível domar um temperamento irascível como o de um Steve Jobs? Alguém terrivelmente preconceituoso como Henry Ford? Ou machistas empedernidos como Norman Mailer?
Trata-se de um desafio e tanto. O fato é que, na maioria esmagadora dos casos, a genialidade não anda de braços dados com a inteligência emocional. Por isso, é bem possível que tenhamos vários futuros gênios cancelados antes mesmo que suas carreiras comecem de fato.