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Ernesto Araújo se inspira em Dom Quixote — pior para o Brasil

Seu discurso de posse deu uma mostra de sua visão de mundo: confronto aberto com a ordem mundial

Ernesto Araújo: Seria uma espécie de sina portuguesa colocar tudo a perder no momento em que a nação se prepara para decolar? (Valter Campanato/Agência Brasil)
Ernesto Araújo: Seria uma espécie de sina portuguesa colocar tudo a perder no momento em que a nação se prepara para decolar? (Valter Campanato/Agência Brasil)
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Joel Pinheiro da Fonseca

Publicado em 4 de janeiro de 2019 às, 06h52.

Última atualização em 4 de janeiro de 2019 às, 09h05.

O chanceler Ernesto Araújo compete com a Ministra da Cidadania Damares Alves para ver quem é o ministro mais ideológico do novo governo: aquele que mais segue suas crenças cegamente, sem deixar que qualquer consideração da realidade fique em seu caminho.

Seu discurso de posse deu uma mostra de sua visão de mundo: confronto aberto com a ordem mundial, uma história imaginária do passado das relações exteriores brasileiras (como se o Brasil e o Itamaraty tivessem sido, até 2019, servos de um sistema globalista) e um verdadeiro desejo de se lançar em alguma aventura com sabor nacionalista.

Os exemplos que ele escolheu para ilustrar suas aspirações, no entanto, revelam muito mais do que ele gostaria: Dom Sebastião e Dom Quixote.

Dom Sebastião foi o rei português que, quando Portugal despontava como a grande potência mundial, colocou tudo a perder numa cruzada contra o rei do Marrocos na qual ele, um rei despreparado, carola (fora criado por jesuítas), sem nenhuma experiência militar mas cheio de fanatismo, investiu pesado e teve perda total. Ao fim da batalha de Alcácer-Quibir, Portugal perdera seu rei, boa parte da nobreza, de suas forças militares e estava pesadamente endividada. Dois anos depois, o rei espanhol Filipe II anexava Portugal, que perderia a independência por 60 anos. Graças ao belo heroísmo de um rei com muita ideologia e pouco realismo, a nação naufragou justamente no momento de seu ápice.

Dom Sebastião tinha dois caminhos possíveis pela frente. Um era o caminho de real amor a seu país, que envolveria governá-lo levando em conta seu desenvolvimento, sendo estratégico em seus objetivos militares e produzindo descendentes. Mas esse caminho era sem graça, não se encaixava em alguma grande aventura e ato de sacrifício de que sua cabeça estava cheia. O outro era o caminho da vaidade suicida: a cruzada fadada ao fracasso. Infelizmente para Portugal, esse foi o caminho escolhido por Dom Sebastião.

Nisso, traiu também a real grandeza de Portugal, que aliás a distinguia de outras nações europeias: uma nação aberta ao mundo, de navegantes intrépidos, que incorporava as características de vários povos e apostava no comércio e no desenvolvimento tecnológico como caminho para o crescimento. Portugal, nação europeia, voltava seu olhar para o mundo; foi o verdadeiro pai da globalização que nosso chanceler agora busca destruir.

O outro exemplo do chanceler Araújo foi Dom Quixote, o amado protagonista da obra-prima de Cervantes. Em meio a delírios de nobreza, Dom Quixote diz a um passante que ele “sabe quem é”. Mas Dom Quixote justamente não sabia quem era, e por isso se meteu em enrascadas que, se são adoráveis na ficção, são desastrosas para um país. Ninguém quer gastar suas energias enfrentando inimigos imaginários.

E em nome do quê Araújo levanta suas aspirações de heroísmo? Em nome de uma agenda nacionalista que tem como exemplo a Hungria, país que vai sufocando as liberdades de seus cidadãos, voltando as costas para o mundo e abrindo mão das garantias democráticas.

Seria uma espécie de sina portuguesa colocar tudo a perder no momento em que a nação se prepara para decolar? Por mais críticas que se tenha ao governo Bolsonaro (e eu as tenho várias), é inegável que em alguns campos (cito especialmente a economia e o combate ao crime) ele pode representar uma guinada para melhor, que deixará um legado muito positivo. Mas será essencial não colocar poder real nas mãos de quem acha que Dom Quixote é um exemplo a ser imitado na realidade e que Dom Sebastião foi um sucesso. Enfrentaremos moinhos de vento, partiremos em cruzadas santas em nome de sonhos falsos, e no final das contas é o Brasil que pagará o pato.

A grandeza do Brasil não se confunde com o nacionalismo fechado e tacanho, o reacionarismo carola e o servilismo automático aos EUA e a Israel. Seguir as ideias que o chanceler traz é reeditar a tragédia de Alcácer-Quibir (sabe-se lá onde ele quererá dar vazão a seus sonhos de heroísmo). Seus próprios exemplos inspiradores indicam o desastre à frente.