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Superando a Pobreza Energética no Brasil

A tempestade que deixou milhares no escuro em São Paulo evidenciou a desigualdade no acesso à energia elétrica

A tempestade que deixou milhares no escuro em São Paulo evidenciou a desigualdade no acesso à energia elétrica (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)
A tempestade que deixou milhares no escuro em São Paulo evidenciou a desigualdade no acesso à energia elétrica (Marcello Casal Jr/Agência Brasil)

A histórica tempestade que atingiu São Paulo e deixou milhares sem eletricidade em 3 de novembro evidenciou a desigualdade no acesso à energia elétrica. Moradores de bairros periféricos relataram uma recuperação mais lenta do fornecimento em comparação com as regiões nobres. O episódio intensificou discussões sobre o aterramento da fiação elétrica e a divisão de seus custos. No entanto, o debate é mais profundo e abrange questões de equidade no acesso e na capacidade de pagamento pela energia.

O Brasil tem avançado significativamente na disponibilização de energia elétrica, atingindo 99,8% de cobertura da população, conforme indicam as estatísticas recentes do IBGE. No entanto, o país ainda enfrenta um desafio complexo: a pobreza energética. Este conceito é mais abrangente do que a simples presença de eletricidade nas moradias. Está intrinsecamente ligado a fatores socioeconômicos que afetam muitos brasileiros, englobando a qualidade da energia fornecida, custos altos e moradias em condições inadequadas.

Olhando mais de perto para diferentes estratos da sociedade, observamos que as favelas estão entre as regiões mais impactadas pela pobreza energética. O Instituto Pólis divulgou um estudo em 2021 que traz um olhar detalhado sobre essa realidade, apontando que nessas comunidades, muitas vezes o fornecimento de energia é deficitário. Interrupções frequentes e longas são uma realidade, principalmente em áreas com elevada vulnerabilidade social.

Do ponto de vista econômico, a situação é igualmente grave. Uma pesquisa da ABRACE em 2023 aponta que o Brasil tem o maior custo de energia elétrica residencial em relação à renda per capita entre os 34 países da OCDE. Esse dado ressalta o peso econômico sobre os brasileiros, principalmente os de baixa renda. Ainda mais preocupante é que, em 2021, mais de 45% dos lares de menor renda tiveram problemas para pagar a conta de luz. Esse quadro não somente espelha os elevados custos da energia, mas também realça uma série de problemas socioeconômicos que intensificam a pobreza energética.

As famílias dessas regiões enfrentam uma rotina repleta de dificuldades. Uma análise cuidadosa mostra que muitos lares contam com eletrodomésticos antigos ou ineficientes, que consomem energia além do necessário, resultando em contas mais pesadas. Além disso, a infraestrutura elétrica dessas casas, muitas vezes montada de maneira improvisada, aumenta os perigos relacionados à eletricidade. Estes elementos, somados ao fato de algumas famílias terem acessado a energia elétrica somente há pouco tempo, geram desafios financeiros e educativos.

A Tarifa Social de Energia, que oferece um desconto progressivo nas contas de energia para as famílias inscritas no CadÚnico, apresenta um abatimento de apenas 10% para o consumo entre 101 kWh e 220 kWh. Esse valor é discreto, principalmente se considerarmos que o consumo médio de uma residência com quatro pessoas é de 235 kWh, de acordo com a Empresa de Pesquisa Energética. Mas ao falar de tarifas, é crucial olhar além do desconto imediato para os beneficiários. Isso porque o custo do subsídio é, em última análise, distribuído entre todos os consumidores.

Além disso, é preciso reconhecer que, ao menos parcialmente, um custo relevante da pobreza energética já é assumido por toda a sociedade de maneira pouco transparente. Trata-se dos custos associados às conexões irregulares (os famosos "gatos"), cujo custo, assim como os subsídios, também é distribuído entre todos os consumidores pagantes. Dados da ANEEL apontam que aproximadamente 15% de toda energia elétrica distribuída no Brasil é furtada. Há, é claro, um elemento criminoso em algumas circunstâncias - mas, via de regra, trata-se de uma estratégia de sobrevivência, e uma alternativa à qual cada vez mais famílias recorrem após aumentos de tarifas. Regularizar o acesso dessas pessoas ao consumo regular (ainda que subsidiado) de energia é fundamental.

Estamos, então, diante de um desafio de enorme magnitude. É necessário tornar o consumo de energia elétrica mais acessível às famílias mais pobres e, ao mesmo tempo, garantir que o aumento de subsídios não onere de maneira excessiva os demais consumidores. A energia elétrica é um insumo fundamental para todos os setores da economia, e aumentar seus custos impacta negativamente a competitividade do país. Basta recordar que hoje em dia cerca de um quarto do custo da energia elétrica é responsabilidade de encargos setoriais (como subsídios e outros custos incluídos na tarifa de energia elétrica para financiar políticas públicas). Qual seria a saída?

Há uma variedade de soluções possíveis. É crucial que a luta contra a pobreza energética ande de mãos dadas com os esforços para descarbonizar a economia. Com tecnologia disponível e arranjos institucionais apropriados, o Brasil pode acelerar a transição para uma matriz energética justa.

A descarbonização é uma obrigação moral e um cálculo econômico sensato, considerando que a energia solar já é a segunda maior fonte de energia no país, que ocupa a quarta posição mundial em empregos no setor solar, e que o setor atraiu mais de R$ 33 bilhões em novos investimentos no primeiro semestre de 2023. Países como o Chile, a Nova Zelândia e a Irlanda contam com agências especificamente dedicadas à promoção da eficiência energética - com metas ousadas de redução do consumo por meio da introdução de tecnologia em lares e diferentes setores da economia. Em Cingapura, a construção de edifícios precisa levar em conta maneiras de diminuir o uso de ar condicionado por meio da adoção de tecnologia e de princípios de design que favoreçam o resfriamento urbano, resultando em medidas que reduzem em até 40% o consumo de energia com ar-condicionado.

O Brasil se beneficia de uma iniciativa privada dinâmica e de uma sociedade civil ativa, que já estão pavimentando o caminho a seguir. Um setor crescente de climate tech e energy tech vem se destacando, com empresas que oferecem uma ampla gama de serviços que geram valor para as empresas e ao mesmo tempo beneficiam consumidores com contas mais baratas e limpas. Essas soluções, no entanto, ainda estão longe de serem acessíveis para a população mais pobre.

A construção de respostas passa, necessariamente, por assumir que as favelas e outros territórios de elevada vulnerabilidade social são protagonistas da transformação. Incluir mais vozes será fundamental para criar soluções efetivas e aderentes às realidades locais. O efeito das mudanças climáticas é e será cada vez mais severo entre as comunidades mais vulneráveis. Questões como o crescimento acelerado do uso de ar condicionado irá tornar-se questão de saúde pública durante ondas de calor, e o estresse que tecnologias desse tipo vão causar sobre as instalações elétricas de baixa qualidade pode resultar em cenários catastróficos.

Felizmente existem projetos em andamento que podem servir de modelo de transição verde e superação da pobreza energética em todo o país e que se baseiam no protagonismo das comunidades vulneráveis. A Gerando Falcões está criando Favelas 3D com 100% de energia solar buscando também alternativas para a limitação de espaço por meio de fazendas solares em áreas afastadas. No Rio, uma cooperativa solar vem promovendo a sustentabilidade e a redução de custos de energia para 34 famílias nas favelas da Babilônia e Chapéu Mangueira. A iniciativa é liderada pela ONG Revolusolar. Ambas iniciativas não só diminuem os custos associados ao consumo de eletricidade pelos moradores, mas também criam empregos, formando mão de obra local para atuarem como técnicos de instalação e manutenção de painéis solares.

A superação da pobreza energética no Brasil não é um objetivo utópico, mas uma meta tangível que exige uma participação ativa de todos os segmentos da sociedade. O avanço da inovação tecnológica já aponta para um horizonte promissor, no qual a energia limpa é barata e abundante. É imperativo que o governo, em sinergia com a sociedade civil e a iniciativa privada, fortaleça políticas que enderecem tanto a urgência de medidas assistencialistas quanto a necessidade de revisar a composição da tarifa de energia frente a possibilidade de investimentos em melhoria da rede e novas tecnologias.s. Somente através de um compromisso coletivo com a equidade e sustentabilidade, poderemos garantir que cada brasileiro, independente de sua situação econômica, possa ter acesso a energia não apenas para ter vidas mais confortáveis e saudáveis, mas também ser mais produtivos.