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Rumo incerto: Rafaela Vitória avalia os riscos da nova política industrial

Economista-chefe do Banco Inter examina os desafios históricos do país em assegurar que as empresas cumpram com as contrapartidas exigidas

 (Divulgação/Banco Inter)
(Divulgação/Banco Inter)

O governo brasileiro anunciou recentemente uma nova política industrial, com um investimento previsto de R$ 300 bilhões até 2026. Rafaela Vitória, economista-chefe do Banco Inter, realizou uma análise crítica desta política em uma entrevista ao Instituto Millenium. Ela manifesta preocupações quanto à rigidez orçamentária e questiona a fonte dos recursos que financiarão a política, considerando a meta de déficit zero para este ano. Vitória também põe em dúvida a eficácia das estratégias empregadas, as quais ela vê como repetições de táticas ineficientes usadas anteriormente. A entrevista aborda ainda a influência de debates internacionais recentes sobre política industrial na abordagem do governo, mas ela ressalta que historicamente o Brasil tem enfrentado dificuldades para aprender com os próprios erros na implementação de políticas industriais. 

Rafaela discute o impacto da 'contabilidade criativa' do governo na credibilidade da política fiscal perante o mercado e examina os desafios históricos do país em assegurar que as empresas cumpram com as contrapartidas exigidas em políticas industriais, sugerindo que recursos limitados possam ser novamente desperdiçados em políticas de baixa efetividade. A entrevista oferece uma visão aprofundada sobre os desafios da política industrial brasileira e suas consequências para o futuro econômico do país. 

Instituto Millenium: A nova política industrial apresentada pelo governo representa um investimento significativo de R$300 bilhões até 2026 sem indicar efetivamente a origem desses recursos. Em um contexto de preocupações com a política fiscal, como você avalia os riscos fiscais que o financiamento deste plano pode representar?  

Rafaela Vitória: A principal preocupação que temos é com a restrição orçamentária. O governo estabeleceu uma meta ambiciosa de eliminar o déficit, mas nossa expectativa aponta para um déficit ainda próximo de R$100 bilhões, sem espaço no orçamento para novos subsídios. 

Quando observamos a expectativa de gasto, os R$300 bilhões incluem créditos e gastos diretos, sendo a maior parte em créditos, que não são gastos diretos do governo. Mas há uma preocupação atual com a capacidade orçamentária do governo para financiar qualquer novo programa. Esse é o primeiro ponto. O segundo ponto é a falta de inovação no programa. São subsídios antigos, principalmente uso de conteúdo local e crédito subsidiado para determinados setores. Esses subsídios são caros e o governo não tem capacidade de arcar com eles no momento, considerando a alta no custo de vida. Além disso, esses subsídios não tiveram bons resultados no passado, não apenas no Brasil, mas também globalmente, conforme indicado pela literatura. O governo estaria, assim, alocando de forma ineficiente um capital já escasso, repetindo erros anteriores. É preocupante que estejamos regressando a políticas passadas que não funcionaram. Por que seria diferente desta vez? 

Não há indicativos de que seria diferente agora. Portanto, nossas principais preocupações são: primeiro, a histórica ineficiência dessas políticas; segundo, a severa restrição orçamentária atual no Brasil, com altos custos de dívida e uma trajetória crescente de dívida ainda sem solução. Logo, não há espaço para novos subsídios hoje, especialmente os ineficientes. 

IM: Considerando a influência das ideias da economista ítalo-americana Mariana Mazzucato na formulação desta política, sobretudo os conceitos de 'missões' e 'condicionalidades', como essa abordagem se compara e se diferencia das políticas industriais anteriores no Brasil, tanto em termos de estratégia quanto de execução? 

RV: É, a princípio não muito. A gente não vê muita mudança do que já foi feito no passado com base no anúncio. Eu acho que existe uma preocupação que não vem só de hoje, de fazer avaliações, então fazer condicionamento. Obviamente que esse é um ponto positivo de novas políticas, você ter acompanhamento e condicionamento. 

Mas na prática a gente não tem visto isso no Brasil. A avaliação de políticas já foi inclusive colocada na constituição, na PEC Emergencial, lá em 2021, e a implementação disso continua muito vaga. A gente tem um ministério do planejamento desde o ano passado, que ficou responsável em fazer avaliação de políticas públicas, e a gente até hoje também não viu nenhum resultado efetivo.  

Então, a princípio talvez exista uma boa intenção, mas na prática não existe um processo no Brasil confiável de avaliação de política pública, nenhuma delas, nem política industrial, nem algum outro tipo de política. E o que na verdade o que se vê na prática é uma dificuldade muito grande em retirar subsídios. Acho que o grande exemplo é hoje a discussão da reoneração da folha, que é um subsídio implementado pelo próprio PT, em 2013, 2014, e hoje nem o próprio PT consegue retirar esse benefício.  

Ou seja, políticas que já foram estudadas, que já demonstraram não ter efetividade, mesmo nesses casos é difícil revertê-las. É por isso que mesmo esses pontos de condicionalidades e de avaliação de resultados, não acredito que funcionem no Brasil. Eu diria que intencionalmente pode ser algo positivo, mas na prática a gente não tem muita confiança que isso realmente vai corrigir esse gasto público, se ele não tiver feito, não apresentar resultado lá na frente. 

IM: Especialistas têm lançado críticas ao que consideram criatividade contábil adotada pelo governo para gerar resultados primários artificiais. Como os subsídios incluídos na nova política industrial irão afetar a confiança do mercado na política econômica? 

RV: Esse é um ponto muito relevante, não apenas neste anúncio de política industrial, mas tem sido uma constante em anúncios do governo. Não é novidade; é mais um caso em que o governo anuncia gastos que serão realizados através do que chamamos de contabilidade criativa - gastos que não estão diretamente no orçamento, mas ainda assim são gastos. O subsídio de crédito é um exemplo. No Brasil, já vimos o subsídio de crédito ser utilizado, principalmente pelo BNDES, por meio da TJLP. O Tesouro emitia dívida a 14% e repassava ao BNDES que emprestava a 6%. Esse custo não aparece diretamente no orçamento, mas é um custo de dívida que aumenta o custo de refinanciamento do déficit no Brasil.  

O uso de crédito subsidiado sempre gera preocupação. É um custo indireto, não visto diretamente na linha do déficit do orçamento, mas ele encarece a dívida de duas formas. Primeiramente, ele é um custo direto e, além disso, aumenta a desconfiança do investidor, que acaba exigindo um prêmio maior devido à incerteza sobre o déficit futuro. A falta de transparência nas contas públicas reintroduz uma preocupação adicional para o investidor quanto à evolução do resultado. Isso aumenta o prêmio no custo da dívida brasileira e eleva os juros, o que, no final, prejudica a política industrial. Afinal, um dos fatores chave para o desenvolvimento da indústria e de outros setores de capital intensivo no Brasil é o custo do crédito, que está ligado ao custo da dívida brasileira. Portanto, quando o governo utiliza esses artifícios que encarecem a dívida, acaba prejudicando mais a indústria do que ajudando. 

IM: Historicamente, o Brasil enfrentou desafios para assegurar que as grandes empresas cumpram as contrapartidas em políticas industriais. No caso da nova política industrial, você acredita que há chance do governo ser mais efetivo na busca pelo cumprimento dessas condições? 

RV: Acho muito difícil. Não conseguimos no passado, então o que mudaria agora? A complexidade de monitorar e garantir o cumprimento dessas condições para uma quantia substancial de incentivos governamentais é um desafio considerável. Como mencionei, essa dificuldade tende mais a prejudicar do que a contribuir. Além disso, em termos de política comercial, o Brasil precisa de mais abertura, não menos. Exigir conteúdo nacional não só complica a questão da avaliação de resultados, mas também vai contra a necessidade de maior abertura comercial, que deveria ser nosso foco.  

IM: Como você posiciona a nova política industrial do Brasil em relação às estratégias adotadas por outras grandes economias, como os Estados Unidos, a Europa e a China, que têm focado em proteção de mercado e considerações geopolíticas? Quais lições foram aprendidas com essas experiências internacionais, e como a política brasileira se alinha ou diverge desses modelos? 

RV: Eu acho que o principal ponto é eu voltar na primeira resposta. O Brasil tem mais restrição orçamentária que outros países. Temos uma dívida muito elevada e com um custo mais alto. Você pode até comparar a dívida do Brasil com os países desenvolvidos, e então acreditar que nominalmente ou em percentual do PIB, não é tão alto, mas a gente não é um país desenvolvido, e o custo da nossa dívida é elevado. 

O custo da dívida reflete essa preocupação com o tamanho do endividamento público. Não temos espaço hoje para bancar esse tipo de política industrial. Eu acho que esse é um dos principais pontos de divergência. Por outro lado, o Brasil é um país fechado comercialmente. Esse é o nosso ponto de partida: a nossa economia é fechada e ela não se desenvolveu. Então se fecharmos mais, com o objetivo de querer desenvolver mais a indústria local através de artifícios como esse… acredito que não vamos gerar nenhum resultado novo, assim como essas estratégias não geraram resultado no passado, né? Acho que não é por aí que a gente vai resolver o problema de suprimento de cadeias globais, de restrições de cadeias globais. Eu acho que o que falta no Brasil, para fortalecer a indústria local, são questões que não estão ligadas à necessidade de novas políticas protecionistas. O principal ponto hoje é a reforma tributária, que está bem encaminhada. 

Então me espanta até, né? Eu acho que a principal política industrial que o Brasil poderia focar hoje é a reforma tributária. Não tenho a menor dúvida disso. E ela foi aprovada, a gente precisa cuidar da implementação dela, talvez até acelerar. Essa é a principal política industrial que o Brasil vai ter nos próximos anos. A reforma tributária traz um benefício muito grande para a indústria. Hoje é o setor econômico que é mais afetado pela política tributária, a legislação complexa, com tributação acumulada nas cadeias de produção, excesso de judicialização, etc. Então uma simplificação tributária é um grande impulso para a indústria. Esse deveria ser o foco hoje do governo… a implementação da reforma tributária, mais do que outras políticas como subsídios e outros artifícios. Felizmente estamos bem encaminhados na questão tributária. Nesse sentido, acelerar a implementação da reforma pode ser um benefício muito maior do que um subsídio de crédito, por exemplo.