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Quando os problemas amenizam, a captura do Estado por grupos organizados se intensifica, diz Lisboa

Nesta entrevista para o Instituto Millenium, Marcos Lisboa, ex-presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda

Marcos Lisboa  (Um Brasil/Divulgação)
Marcos Lisboa (Um Brasil/Divulgação)

Nesta entrevista para o Instituto Millenium, Marcos Lisboa, ex-presidente do Insper e ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, aborda questões complexas sobre as políticas industriais do Brasil e seu alinhamento com as tendências econômicas globais. Lisboa examina as iniciativas de sucesso no Brasil, como o agronegócio e o Porto Digital do Recife, e destaca a importância da governança eficaz e da prevenção da captura do Estado por interesses privados. Ele também discute as diferenças nas políticas industriais entre o Brasil e outros países, com ênfase na tendência brasileira ao protecionismo e na necessidade de um foco maior em Pesquisa e Desenvolvimento. 

Lisboa reflete sobre a evolução das políticas econômicas no Brasil e sobre o impacto das reformas estruturais aprovadas desde 2016. Ele alerta para o risco de captura do Estado por interesses privados no contexto de políticas industriais e a necessidade de estratégias de desenvolvimento que evitem repetir erros passados. A entrevista oferece uma visão aprofundada sobre a dinâmica entre mercado e Estado no Brasil e os desafios para promover o crescimento econômico. 

Instituto Millenium: O Brasil tem um histórico infeliz de políticas industriais associadas ao rentismo, mas agora o mundo parece estar entrando numa nova era de industrial policy - movido por questões geopolíticas, mas também econômicas. O Inflation Reduction Act americano sendo a política mais notável dessa fase. Como você enxerga esse novo momento, quais os riscos externos e domésticos dessa nova onda para o Brasil e como o país deveria se posicionar nesse cenário? 

Marcos Lisboa: Vamos analisar este tema por partes. Primeiramente, a política industrial costuma ser muito polarizada, tratada como um cenário de 'tudo ou nada'. OU você faz ou não faz. É comum você ter políticas de desenvolvimento setoriais. No Brasil, há exemplos de sucesso em políticas de desenvolvimento setoriais que combinam esforços do setor público e privado. Um exemplo notável é o agronegócio, onde o Brasil desenvolveu tecnologias para adaptar produtos de clima temperado para a zona tropical, como a soja no Centro-Oeste. Outros casos de sucesso incluem o Porto Digital do Recife, uma política pública que é baseada em uma governança efetiva que realmente fomenta empreendedores privados, e a Embraer, que surgiu a partir de um projeto de tecnologia aeronáutica iniciado no ITA em parceria com o MIT, mas cujo processo de maturação levou mais de 20 anos. Ou seja, políticas setoriais podem ser bem-sucedidas, mas o desafio está na governança eficaz, para evitar a captura do Estado por interesses privados. Experiências bem-sucedidas no Brasil e no mundo mostram que é possível, apesar dos muitos fracassos também registrados. 

No pós-Segunda Guerra Mundial, era comum a adoção de planos quinquenais e estratégias amplas para subsidiar investimentos em diversos setores, especialmente em países do Oriente Médio, África e América Latina. A maioria desses planos deu errado. A questão central não é se a política industrial deve ser sempre implementada, mas como criar condições para seu sucesso, evitando capturas. A literatura sugere foco em setores voltados para exportação e estabelecimento de metas e resultados claros, com compromissos de interromper políticas que fracassem. 

Há uma polarização entre mercado e Estado, mas o importante é como fazer intervenções eficazes sem cair em armadilhas. Outra questão relevante é que, ao analisar experiências internacionais de política industrial, é preciso levar em conta a dimensão dos recursos alocados - condição para comparar adequadamente os esforços. Veja, por exemplo, que apenas o Programa de Sustentação do Investimento (PSI) criado pelo BNDES em 2009 é quase equivalente ao montante de recursos alocados no plano de infraestrutura do governo americano. A escala do comprometimento de recursos públicos é um aspecto crítico. No Brasil, a tendência é que esses recursos se tornem um 'mar sem fim'. 

IM: Existe uma diferença nas abordagens de políticas industriais entre o Brasil e outros países, que transcende a questão da governança. Enquanto no Brasil parece haver uma tendência ao protecionismo, em outros lugares observa-se um maior foco em investimentos em Pesquisa e Desenvolvimento. Você concorda com essa percepção? 

ML: De fato, existe essa diferença. O desafio em implementar políticas de desenvolvimento setorial é evitar a captura por interesses privados que visam apenas desviar recursos governamentais para acionistas de empresas privadas. No Brasil, há estudos mostrando como o crédito subsidiado do BNDES para grandes empresas, assim como o programa Inovar-Auto, não resultaram em desenvolvimento econômico significativo. No fundo, nada disso gerou desenvolvimento econômico. Gerou uma simples transferência de recursos da sociedade para alguns acionistas. Em contraste, iniciativas como o Porto Digital do Recife demonstram um impacto positivo, gerando empreendedores, inovação tecnológica e desenvolvimento econômico real. 

IM: Em 2015 e 2016, a janela de Overton parecia ter se deslocado para permitir uma agenda mais tecno-liberal, emblematizada no ‘Ponte para o Futuro’ do MDB. Reformas trabalhista, previdenciária, tributária etc ganharam forças. Como acha que está essa janela hoje? Você enxerga a possibilidade de novas convergências possíveis num futuro próximo? Se sim, em torno de quais pontos? 

ML: O Brasil é um país interessante. Em momentos críticos, realizamos reformas importantes, como vimos em 2016 e também nos anos 90 e início dos anos 2000, com a Lei de Responsabilidade Fiscal e as reformas do mercado de crédito. No entanto, quando os problemas amenizam, a captura do Estado por grupos organizados se intensifica. Com base em um artigo que escrevi com Marcos Mendes, mais de 40 medidas de captura do Estado por interesses privados foram identificadas no fim do governo anterior. Um exemplo recente é a medida para a energia eólica em alto mar, que, ao olhar mais atentamente, revela uma captura de recursos [Os subsídios inseridos no PL 11.247/2018 que regulamenta as eólicas offshore (instaladas no mar), aprovado pela Câmara dos Deputados em 29 de novembro, preveem subsídios que terão um custo anual de 25 bilhões de reais para os consumidores de energia]. Além disso, a capitalização da Eletrobras segue essa mesma tendência. 

Veja por exemplo a cadeia do gás. O gás é extraído no litoral, geralmente no Sudeste, e depois transportado para o Norte e Centro-Oeste, onde é transformado em energia. Em seguida, essa energia retorna para São Paulo. Esta rota extensa e complexa de transporte indica uma infraestrutura desnecessariamente onerosa e ineficiente. Por que as termelétricas não estão localizadas mais próximas aos locais de extração de gás e consumo de energia? Este percurso extenso pelo Brasil sugere que há interesses beneficiados por essa estrutura, o que é um sinal de captura.  

Ou seja, uma política de desenvolvimento eficaz deve incorporar elementos frequentemente negligenciados no Brasil, como a importância de ter escala e a integração nas cadeias globais de produção. O país tem o potencial de desenvolver setores específicos, mas é crucial ter um plano para lidar com possíveis fracassos. Você não pode ficar refém para sempre do fracasso. 

IM:Houve alguma mudança significativa no debate público com respeito à estagnação da produtividade brasileira? Alguma mudanças nos incentivos? Há algum motivo para mais otimismo nos últimos anos? 

ML: É uma questão complexa que provavelmente só será plenamente compreendida após uma análise detalhada dos microdados nos próximos anos. Por um lado, tivemos reformas muito boas, como a reforma trabalhista, e o desempenho do mercado de trabalho tem sido surpreendentemente positivo. Pode ser que já estejamos vendo benefícios da reforma trabalhista do governo Temer, mas ainda não temos dados suficientes para confirmar isso. Por outro lado, houve muitos retrocessos em várias áreas da microeconomia. Um exemplo é a situação com a Lei das Estatais, que visava estabelecer melhor governança, mas que agora está sendo rapidamente desmantelada. Isso é custoso. 

A falta de atenção com a governança no Brasil é minha maior preocupação. Falta às agências reguladoras metas claras e independência para gerir setores críticos como a infraestrutura de maneira adequada. Há uma grande insegurança sobre as regras do jogo. A questão não é apenas se existem políticas governamentais setoriais, mas como elas são implementadas, com ênfase na governança e na avaliação de impacto. O principal desafio no Brasil é a discricionariedade do poder público, exemplificado pelas recentes ações em relação à Lei das Estatais, como as mudanças na Petrobras e outras empresas estatais, e as nomeações de conselheiros. E no Judiciário, também enfrentamos uma grande insegurança. 

Veja a reforma tributária, que foi ótima, mas poderia ter sido excelente. Ela foi capturada por grupos organizados, principalmente no Senado, favorecendo setores como prestadores de serviços acima do limite do simples, a agricultura, a aviação regional, e assim por diante. Houve um descontrole na concessão de benefícios. É um avanço, mas ainda há muito a ser feito. A agenda tributária vai além da reforma em si. Existe, por exemplo, a questão do confisco de impostos pagos a mais pelo setor privado, onde o reembolso é feito lentamente. Isso, para mim, é um tipo de calote. E não é uma questão específica deste governo; é um padrão no Brasil. Isso afeta a confiança dos investidores. Como explicar a um investidor estrangeiro que, apesar de ter direito a reembolsos do governo, o processo será lento? Ao mesmo tempo, não se permite atrasos no pagamento de impostos. Esse tipo de discrepância na política fiscal prejudica o investimento no país e a confiança no sistema. 

IM: O farmbelt brasileiro, nosso cinturão do agro, tem aparecido no debate internacional como tendo deslocado o centro gravitacional da economia brasileira. Como você enxerga esse deslocamento econômico e quais impactos devemos esperar dele? 

ML: É triste ver que, apesar do sucesso extraordinário do agronegócio no Brasil, que é uma combinação eficaz de política pública com empreendedorismo, não conseguimos replicar esse modelo em outras áreas. No agronegócio, tivemos um investimento substancial em pesquisa e tecnologia. Nos anos 60, o Brasil enfrentava grandes desafios na agricultura, com produção limitada a café e algodão e com o solo do Centro-Oeste sendo muito pobre.  

No entanto, o Brasil realizou um investimento substancial em tecnologia, envolvendo tanto o setor público quanto o privado. Esse esforço resultou em um aumento notável da produtividade no setor, com um crescimento anual de 3% nos últimos 50 anos. Esse avanço é significativo, especialmente considerando a duração desse período. Uma das razões para esse sucesso é a escala alcançada pelo setor, que não só exporta, mas também compete efetivamente em mercados internacionais. O Brasil já se destaca como maior produtor mundial em diversas culturas agrícolas e está a caminho de expandir essa liderança. No entanto, surge a questão: por que não conseguimos replicar esse sucesso em outros setores? 

O investimento em inovação implica incerteza; você não sabe o que vai dar certo. A soja foi um sucesso, mas poderia não ter sido. E agora temos o milho e o algodão seguindo o mesmo caminho. Quando se investe em tecnologia, você tem que estar preparado para fracassos, sabendo que algumas iniciativas serão bem-sucedidas e outras não. É preciso ter a ambição de ser o mais competitivo e eficiente no mundo. O agronegócio brasileiro compete globalmente, inovando constantemente e aceitando que algumas coisas darão certo e outras errado. 

Um exemplo de sucesso na política pública é a abordagem americana para o desenvolvimento de vacinas contra a COVID-19. O governo dos EUA não sabia qual vacina seria eficaz, então apoiou várias empresas com diferentes tecnologias. Algumas não tiveram sucesso, mas outras sim, como a Pfizer-BioNTech, a Moderna e a Johnson & Johnson. Isso demonstra a importância de investir em várias iniciativas, aceitando que a maioria pode falhar, mas algumas terão sucesso. No Brasil, muitas vezes acreditamos que basta fornecer recursos financeiros, mas isso não é suficiente. Precisamos de uma abordagem mais sofisticada e diversificada para o desenvolvimento setorial. 

IM: Qual o risco que você enxerga hoje na indicação de novo presidente do Banco Central pelo Lula, ao final desse ano? 

ML: Eu não comento sobre pessoas específicas. Também não entendo toda essa preocupação em torno do Banco Central. Essa é uma área na qual o Brasil tem se saído bem. Temos muitos fracassos no país, mas devemos celebrar nossos sucessos, como o agronegócio e o Porto Digital do Recife. Em algumas áreas da indústria, o Brasil está indo muito bem, e a política monetária é uma delas. Aprendemos a gerir nossa política monetária de maneira eficiente, com boa governança. Estou falando de uma governança que foi construída ao longo do tempo. Anos atrás, o Conselho Monetário Nacional tinha dezenas de membros, inclusive empresários do setor privado. Isso mudou significativamente. 

O Brasil progrediu, especialmente durante os mandatos de Fernando Henrique Cardoso, com contribuições fundamentais de Armínio Fraga, Gustavo Franco, Gustavo Loyola e muitos outros que ajudaram a estabelecer essa governança. Criamos o Copom, os relatórios de política monetária e estabelecemos uma rotina sólida para a política monetária. Isso culminou com a adoção do câmbio flutuante com Armínio Fraga. E veja como tem funcionado bem. Não vejo necessidade de criar alarde em uma área que está funcionando bem. A recente redução da inflação, por exemplo, não foi apenas no Brasil, mas em vários países do mundo, com um custo social surpreendentemente baixo em comparação com períodos anteriores. Não vejo motivo para preocupação ou confusão em uma área que atualmente está indo bem. 

IM: Você já disse que achava o Congresso Nacional 'um espelho do Brasil'. Olhando estritamente em termos de economia política, como você enxerga um STF mais frequentemente funcionando como polo de decisão em assuntos econômicos, às vezes em contraponto ao Legislativo? Estamos nos movendo para um modelo de common law? Essa dinâmica tem sido positiva ou negativa em sua visão? 

ML: Vamos distinguir dois pontos importantes. Nos últimos anos, as instituições sofreram muitos ataques, gerando preocupação generalizada. Isso foi particularmente evidente em 2021. A sociedade e o Judiciário reagiram a esses ataques. Esse mérito não pode ser ignorado. Porém, olhando para uma perspectiva de 20 anos, observamos uma crescente intervenção do Judiciário. Isso inclui a influência em decisões do Legislativo com argumentos mais abrangentes e interferências em contratos juridicamente sólidos e em decisões de agências reguladoras. Essas ações são motivo de grande preocupação, pois geram insegurança sobre a validade e a consistência das regras do jogo. 

O núcleo tributário do Insper fez um estudo sobre a PLR (Participação nos Lucros e Resultados), um tema previsto na Constituição e regulamentado por uma lei relativamente simples e clara. O estudo analisou como as autuações fiscais e as decisões do CARF (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais) têm tratado o assunto. Observou-se que a interpretação das regras vem mudando constantemente. Ora é exigido um requisito, ora outro, mesmo que não esteja explicitado na lei. Isso tem sido uma prática tanto no Tribunal Administrativo quanto no Judiciário. 

O Brasil tinha um grande volume de leasing que, em 2009, reduziu-se a apenas 10% do que era anteriormente. Isso foi devido a uma série de decisões judiciais, autuações da Receita Federal e disputas com municípios. Hoje, esse mercado é significativamente menor do que no passado. Isso significa que empresas e pessoas perderam acesso a uma linha de crédito relativamente acessível para os padrões brasileiros. Essa insegurança jurídica tem sido uma fonte de preocupação constante. Houve um período crítico, com ameaças às instituições, e o Supremo Tribunal Federal desempenhou um papel crucial naquela conjuntura. A sociedade reagiu, mas ainda é necessário considerar o quadro mais amplo da discricionariedade exercida tanto pelo Poder Executivo quanto pelo Judiciário. Essa situação compromete a previsibilidade das regras do jogo e a autonomia dos poderes democraticamente eleitos para legislar.