Por que Claudia Goldin venceu o Prêmio Nobel de Economia
Economista avançou nosso entendimento sobre a participação feminina no mercado de trabalho
Colunista - Instituto Millenium
Publicado em 9 de outubro de 2023 às 15h33.
Você provavelmente já ouviu a estatística de que, para cada real que um homem ganha, uma mulher ganha, em média, 80 centavos. Nos anos 1970 a disparidade era ainda maior: mulheres ganhavam cerca de 60% do salário médio de um homem. O que explica essa evolução? E o que explica a diferença ainda ser tão grande? Responder essas perguntas foi o trabalho de décadas que deu à historiadora econômica e economista do trabalho Claudia Goldin o Prêmio Nobel de Economia deste ano.
Quando Goldin entrou no programa de PhD em Economia da Universidade de Chicago em 1967, seu objetivo era estudar organização industrial, mas a intenção não durou muito tempo. A ciência econômica vivia à época uma revolução dos métodos de pesquisa liderada por professores de Chicago como Milton Friedman, Gary Becker, Ronald Coase e Robert Fogel, todos os quais também seriam laureados com o Prêmio Nobel mais tarde. Goldin viu no trabalho de Becker a possibilidade de estudar a dinâmica do mercado de trabalho de forma rigorosa e, no de Fogel, como poderia usar estatística para entender história econômica. Escreveu sua tese de doutorado em 1972, investigando a dinâmica do trabalho escravo nas cidades americanas do século XIX.
Nos anos 1970 e 1980, Goldin se dedicou a estudar a história da participação das mulheres na economia americana. Usando dados novos que descobriu e técnicas estatísticas sofisticadas, ela demonstrou que a participação feminina no mercado de trabalho não tinha tido, como se costuma acreditar, um progresso linear ao longo dos últimos dois séculos. Na verdade, a porcentagem de mulheres casadas que trabalham fora de casa teve uma trajetória em formato de “U”: primeiro um grande declínio com a industrialização e só então um crescimento a partir do século XX.
Em grande parte como resultado desses achados, em 1990 Goldin foi convidada a integrar o Departamento de Economia da Universidade de Harvard, onde leciona até hoje. Foi a primeira mulher do departamento a receber “ tenure ”, um status cobiçado que garante a um professor universitário total estabilidade no cargo. Na verdade, Goldin foi a primeira mulher a receber tenure em todos os departamentos em que deu aula, o que inclui, além do de Harvard, os prestigiados departamentos de economia da Universidade de Wisconsin, em Madison, da Universidade de Princeton e da Universidade da Pensilvânia.
Ao mesmo tempo que economista produzia seus achados sobre a participação feminina no mercado de trabalho, acontecia uma mudança social importante que mais tarde Goldin chamou de “a revolução silenciosa”: a popularização da pílula anticoncepcional que deu às mulheres maior flexibilidade para tomarem decisões sobre suas famílias e carreiras.
Foi durante esse período que os maiores saltos na redução da diferença salarial entre homens e mulheres ocorreram: uma vez que as mulheres passaram a ter mais liberdade para postergar a formação de uma família, elas puderam avançar mais na carreira e, como consequência, ganhar mais. Goldin documentou e explicou esse processo enquanto ele acontecia.
No entanto, mesmo décadas após os primeiros estudos de Goldin, a disparidade salarial continua significativa, e é isso que os estudos mais recentes da economista investigam. O que ela descobriu é que a maior parte da diferença salarial entre homens e mulheres vem do que hoje é chamado de “ greedy work ”, ou “trabalho ganancioso”. É o tipo de trabalho feito por um advogado de um escritório de renome que trabalha doze horas por dia, ou de um médico que tem que atender o telefone às três da manhã: trabalhos muito bem remunerados mas que exigem uma flexibilidade que muitas mulheres não podem ter.
O trabalho ganancioso pode ser dividido em três fatores principais: o total de horas trabalhadas, a flexibilidade dessas horas e em que momento do dia elas ocorrem. Um trabalhador disposto a trabalhar mais horas por dia, disponível de madrugada ou pronto para uma viagem a trabalho a qualquer momento é desproporcionalmente recompensado. E a divisão desigual de trabalho dentro de casa, com as mulheres em geral tendo que assumir uma carga maior do trabalho doméstico e do cuidado dos filhos, faz com que elas não consigam assumir esse tipo de emprego, precisando dedicar menos tempo ao trabalho fora de casa, e em horas mais usuais e previsíveis. Evidentemente, a maternidade também faz com que muitas mulheres tenham que se ausentar da carreira por um tempo, prejudicando a progressão.
Goldin também investigou a discriminação contra mulheres como uma das causas das diferenças. Em um artigo chamado “Orquestrando a Imparcialidade”, publicado no ano 2000, Goldin estudou a discriminação em processos seletivos para orquestras. Ela demonstrou que audições às cegas, em que os jurados não veem o músico se apresentando, aumentam em cerca de 50% as chances de uma mulher avançar para a próxima fase de seleção. O estudo estima que um quarto do aumento da participação feminina em orquestras no final do século passado pode ser explicado pelo aumento na adoção desse tipo de teste cego nas audições.
No entanto, a economista aponta que embora esse efeito exista, não é a discriminação direta que está no cerne de por que homens e mulheres recebem quantias diferentes, e que mesmo que eliminássemos toda a discriminação no mercado de trabalho, isso diminuiria pouco a lacuna salarial, porque é a dinâmica do trabalho ganancioso que explica a maior parte da diferença. Ainda assim, Goldin ressalta que combater a discriminação no ambiente de trabalho tem obviamente uma série de efeitos positivos, criando ambientes mais agradáveis e seguros e contribuindo diretamente para o bem-estar das mulheres.
Outra explicação recorrente para a diferença é de que ela derivaria puramente de escolhas das mulheres, que tendem a preferir carreiras de menor remuneração, como a educação e a enfermagem. O que Goldin demonstrou, no entanto, é que mesmo dentro de uma mesma carreira ou setor, é o trabalho ganancioso que explica boa parte da diferença salarial. São as demandas sociais para equilibrar família e carreira que mais prejudicam as perspectivas femininas no emprego, mais do que qualquer escolha profissional que as mulheres possam fazer.
Feito esse diagnóstico, o que podemos fazer para combater essas diferenças? Goldin se vê mais como uma detetive do que como uma médica: seu trabalho consiste em investigar as causas do problema e não em propor políticas públicas para resolvê-los. Como colocou a também professora de Harvard, Hopi Hoekstra, “com a visão de longo prazo de uma historiadora e a precisão rigorosa de uma economista, ela revela tanto os enormes ganhos obtidos pelas mulheres no mercado de trabalho ao longo do tempo quanto as muitas maneiras pelas quais a verdadeira equidade continua fora de alcance.” Ainda assim, algumas soluções acabam emergindo naturalmente da análise de Goldin.
Uma política proeminente nesse sentido é a expansão da rede pública de creches e pré-escolas, que libera as mulheres para o trabalho, para além de seus efeitos nos resultados educacionais. Outra política sugerida é flexibilizar o período de licença-maternidade para que homens assumam mais responsabilidade dentro de casa. Por exemplo, com a mulher usando a licença nos primeiros três meses de vida da criança, e o homem nos três meses subsequentes. Organizações de trabalho que estimulem o compartilhamento de informações e facilitem a substituição de um trabalhador por outro também tendem a diminuir o impacto do trabalho ganancioso na remuneração feminina, pois permitem que funcionários dividam entre si obrigações mais onerosas.
Contudo, dado que o diagnóstico é de que é a distribuição desigual de trabalho doméstico e de cuidado com os filhos que prejudica as mulheres no mercado de trabalho, a solução precisa passar por arranjos familiares que equilibrem melhor as demandas entre os membros do casal. Sem uma divisão mais equânime do trabalho doméstico, é difícil que vejamos uma redução da disparidade salarial. Quando perguntada pelo economista Steve Levitt o que ela daria de conselho para mulheres jovens tomando decisões de carreira hoje, Claudia Goldin foi clara: “O conselho que dou às mulheres é que costumamos ouvir que não negociamos bem com nossos empregadores. A negociação mais importante que você pode fazer é com a pessoa, homem ou mulher, com quem você vai passar o resto da sua vida.”
Você provavelmente já ouviu a estatística de que, para cada real que um homem ganha, uma mulher ganha, em média, 80 centavos. Nos anos 1970 a disparidade era ainda maior: mulheres ganhavam cerca de 60% do salário médio de um homem. O que explica essa evolução? E o que explica a diferença ainda ser tão grande? Responder essas perguntas foi o trabalho de décadas que deu à historiadora econômica e economista do trabalho Claudia Goldin o Prêmio Nobel de Economia deste ano.
Quando Goldin entrou no programa de PhD em Economia da Universidade de Chicago em 1967, seu objetivo era estudar organização industrial, mas a intenção não durou muito tempo. A ciência econômica vivia à época uma revolução dos métodos de pesquisa liderada por professores de Chicago como Milton Friedman, Gary Becker, Ronald Coase e Robert Fogel, todos os quais também seriam laureados com o Prêmio Nobel mais tarde. Goldin viu no trabalho de Becker a possibilidade de estudar a dinâmica do mercado de trabalho de forma rigorosa e, no de Fogel, como poderia usar estatística para entender história econômica. Escreveu sua tese de doutorado em 1972, investigando a dinâmica do trabalho escravo nas cidades americanas do século XIX.
Nos anos 1970 e 1980, Goldin se dedicou a estudar a história da participação das mulheres na economia americana. Usando dados novos que descobriu e técnicas estatísticas sofisticadas, ela demonstrou que a participação feminina no mercado de trabalho não tinha tido, como se costuma acreditar, um progresso linear ao longo dos últimos dois séculos. Na verdade, a porcentagem de mulheres casadas que trabalham fora de casa teve uma trajetória em formato de “U”: primeiro um grande declínio com a industrialização e só então um crescimento a partir do século XX.
Em grande parte como resultado desses achados, em 1990 Goldin foi convidada a integrar o Departamento de Economia da Universidade de Harvard, onde leciona até hoje. Foi a primeira mulher do departamento a receber “ tenure ”, um status cobiçado que garante a um professor universitário total estabilidade no cargo. Na verdade, Goldin foi a primeira mulher a receber tenure em todos os departamentos em que deu aula, o que inclui, além do de Harvard, os prestigiados departamentos de economia da Universidade de Wisconsin, em Madison, da Universidade de Princeton e da Universidade da Pensilvânia.
Ao mesmo tempo que economista produzia seus achados sobre a participação feminina no mercado de trabalho, acontecia uma mudança social importante que mais tarde Goldin chamou de “a revolução silenciosa”: a popularização da pílula anticoncepcional que deu às mulheres maior flexibilidade para tomarem decisões sobre suas famílias e carreiras.
Foi durante esse período que os maiores saltos na redução da diferença salarial entre homens e mulheres ocorreram: uma vez que as mulheres passaram a ter mais liberdade para postergar a formação de uma família, elas puderam avançar mais na carreira e, como consequência, ganhar mais. Goldin documentou e explicou esse processo enquanto ele acontecia.
No entanto, mesmo décadas após os primeiros estudos de Goldin, a disparidade salarial continua significativa, e é isso que os estudos mais recentes da economista investigam. O que ela descobriu é que a maior parte da diferença salarial entre homens e mulheres vem do que hoje é chamado de “ greedy work ”, ou “trabalho ganancioso”. É o tipo de trabalho feito por um advogado de um escritório de renome que trabalha doze horas por dia, ou de um médico que tem que atender o telefone às três da manhã: trabalhos muito bem remunerados mas que exigem uma flexibilidade que muitas mulheres não podem ter.
O trabalho ganancioso pode ser dividido em três fatores principais: o total de horas trabalhadas, a flexibilidade dessas horas e em que momento do dia elas ocorrem. Um trabalhador disposto a trabalhar mais horas por dia, disponível de madrugada ou pronto para uma viagem a trabalho a qualquer momento é desproporcionalmente recompensado. E a divisão desigual de trabalho dentro de casa, com as mulheres em geral tendo que assumir uma carga maior do trabalho doméstico e do cuidado dos filhos, faz com que elas não consigam assumir esse tipo de emprego, precisando dedicar menos tempo ao trabalho fora de casa, e em horas mais usuais e previsíveis. Evidentemente, a maternidade também faz com que muitas mulheres tenham que se ausentar da carreira por um tempo, prejudicando a progressão.
Goldin também investigou a discriminação contra mulheres como uma das causas das diferenças. Em um artigo chamado “Orquestrando a Imparcialidade”, publicado no ano 2000, Goldin estudou a discriminação em processos seletivos para orquestras. Ela demonstrou que audições às cegas, em que os jurados não veem o músico se apresentando, aumentam em cerca de 50% as chances de uma mulher avançar para a próxima fase de seleção. O estudo estima que um quarto do aumento da participação feminina em orquestras no final do século passado pode ser explicado pelo aumento na adoção desse tipo de teste cego nas audições.
No entanto, a economista aponta que embora esse efeito exista, não é a discriminação direta que está no cerne de por que homens e mulheres recebem quantias diferentes, e que mesmo que eliminássemos toda a discriminação no mercado de trabalho, isso diminuiria pouco a lacuna salarial, porque é a dinâmica do trabalho ganancioso que explica a maior parte da diferença. Ainda assim, Goldin ressalta que combater a discriminação no ambiente de trabalho tem obviamente uma série de efeitos positivos, criando ambientes mais agradáveis e seguros e contribuindo diretamente para o bem-estar das mulheres.
Outra explicação recorrente para a diferença é de que ela derivaria puramente de escolhas das mulheres, que tendem a preferir carreiras de menor remuneração, como a educação e a enfermagem. O que Goldin demonstrou, no entanto, é que mesmo dentro de uma mesma carreira ou setor, é o trabalho ganancioso que explica boa parte da diferença salarial. São as demandas sociais para equilibrar família e carreira que mais prejudicam as perspectivas femininas no emprego, mais do que qualquer escolha profissional que as mulheres possam fazer.
Feito esse diagnóstico, o que podemos fazer para combater essas diferenças? Goldin se vê mais como uma detetive do que como uma médica: seu trabalho consiste em investigar as causas do problema e não em propor políticas públicas para resolvê-los. Como colocou a também professora de Harvard, Hopi Hoekstra, “com a visão de longo prazo de uma historiadora e a precisão rigorosa de uma economista, ela revela tanto os enormes ganhos obtidos pelas mulheres no mercado de trabalho ao longo do tempo quanto as muitas maneiras pelas quais a verdadeira equidade continua fora de alcance.” Ainda assim, algumas soluções acabam emergindo naturalmente da análise de Goldin.
Uma política proeminente nesse sentido é a expansão da rede pública de creches e pré-escolas, que libera as mulheres para o trabalho, para além de seus efeitos nos resultados educacionais. Outra política sugerida é flexibilizar o período de licença-maternidade para que homens assumam mais responsabilidade dentro de casa. Por exemplo, com a mulher usando a licença nos primeiros três meses de vida da criança, e o homem nos três meses subsequentes. Organizações de trabalho que estimulem o compartilhamento de informações e facilitem a substituição de um trabalhador por outro também tendem a diminuir o impacto do trabalho ganancioso na remuneração feminina, pois permitem que funcionários dividam entre si obrigações mais onerosas.
Contudo, dado que o diagnóstico é de que é a distribuição desigual de trabalho doméstico e de cuidado com os filhos que prejudica as mulheres no mercado de trabalho, a solução precisa passar por arranjos familiares que equilibrem melhor as demandas entre os membros do casal. Sem uma divisão mais equânime do trabalho doméstico, é difícil que vejamos uma redução da disparidade salarial. Quando perguntada pelo economista Steve Levitt o que ela daria de conselho para mulheres jovens tomando decisões de carreira hoje, Claudia Goldin foi clara: “O conselho que dou às mulheres é que costumamos ouvir que não negociamos bem com nossos empregadores. A negociação mais importante que você pode fazer é com a pessoa, homem ou mulher, com quem você vai passar o resto da sua vida.”