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Meritocracia na seleção de dirigentes: lições para reformar a alta direção pública no Brasil

O Brasil enfrenta um desafio crítico na administração pública

Fachada do Palácio do Planalto, em Brasília (Antônio Cruz/Agência Brasil)
Fachada do Palácio do Planalto, em Brasília (Antônio Cruz/Agência Brasil)

O Brasil enfrenta um desafio crítico na administração pública: a falta de um mecanismo institucional robusto para o recrutamento de dirigentes públicos. Essa carência compromete a efetividade do governo e dificulta a implementação de políticas prioritárias, especialmente em períodos de restrição fiscal.

Experiências nacionais pontuais e práticas internacionais de sucesso demonstram métodos eficientes de recrutamento que forneceram aos governos talentos gerenciais notáveis, capazes de superar desafios complexos enfrentados cotidianamente pela administração pública. A discrepância entre o método de recrutamento de dirigentes no Brasil e as práticas recomendadas por evidências ressalta uma necessidade urgente de reforma no estado brasileiro.

Embora os concursos públicos desempenhem um papel vital na garantia de transparência e isenção na seleção de servidores, críticas apontam sua insuficiência em captar talentos gerenciais para o governo. Esse mecanismo, via de regra relevante para neutralizar influências políticas e nepotismo, muitas vezes se detém em avaliações de conhecimentos específicos, negligenciando competências de liderança essenciais. Atualmente, a carência de uma instituição dedicada a identificar e cultivar talentos sêniores no serviço público compromete severamente a capacidade administrativa do país.

Embora a Escola Nacional de Administração Pública (ENAP) tenha como mandato capacitar a alta gestão federal, sua eficácia é ameaçada por uma crise de identidade (escola de governo, think tank ou instituição de ensino superior?) e a uma missão diluída entre múltiplas responsabilidades. Sem avaliações concretas que atestem o impacto de seus cursos, resta incerto se a ENAP está de fato contribuindo para a melhoria da qualidade gerencial da alta direção pública federal.

A França serve como referência ao reformular seu sistema de formação e seleção de líderes públicos, substituindo a tradicional École Nationale d'Administration (ENA) por um modelo focado no desenvolvimento prático de habilidades de liderança. Este sistema inovador prioriza a capacitação direcionada e o coaching executivo, enfatizando a identificação e o aprimoramento de talentos com potencial para liderança no setor público. A reformulação da ENA em estruturas mais alinhadas com as exigências atuais da administração pública marca um avanço importante na tradição de gestão deste país, em sintonia com as mudanças no Estado e no mercado de trabalho, tornando-se mais dinâmica e adaptável.

Um exemplo da confusão gerada pela ausência de um plano coerente para reformar a alta direção pública no Brasil é demonstrado pelos recentes debates sobre o recrutamento de líderes nas universidades federais. Um projeto de lei em discussão na Câmara dos Deputados propõe abolir o método de lista tríplice para a nomeação de reitores, sugerindo que o presidente da República escolha o candidato mais votado por professores, funcionários e alunos.

O relator do projeto na Comissão de Educação, deputado Patrus Ananias (PT-MG), em entrevista ao Valor Econômico,, afirmou: "É um texto de Estado, não de governo. O projeto tem o apoio do Executivo, com a concordância e o incentivo do presidente Lula, que abre mão de um poder". Cinicamente, esta declaração parece ignorar que a comunidade universitária apresenta uma inclinação ideológica alinhada à do governo de turno, o que abriria as portas para que as universidades sejam lideradas por indivíduos alinhados às administrações do Partido dos Trabalhadores. O que diriam os membros do governo se proposta semelhante fosse aplicada a escolha dos chefes das polícias militares?

A única utilidade da proposta, é claro, é consolidar o corporativismo presente nas universidades federais. Ao forçar a nomeação de reitores unicamente baseada nos votos da comunidade acadêmica, o aceno que se faz é que a gestão dessas instituições deve ser baseada unicamente em interesses paroquiais em prejuízo da excelência acadêmica. O ideal seria adotar procedimentos de seleção abertos e baseados no mérito, semelhantes aos praticados nas principais universidades globais no exterior, e mesmo em instituições de pesquisa de ponta no Brasil, como o IMPA (Instituto de Matemática Pura e Aplicada). Tais métodos envolvem a criação de comitês de busca e seleção formados por de especialistas encarregados de identificar ativamente candidatos, avaliar currículos e conduzir entrevistas, visando selecionar os mais aptos e promover uma gestão orientada pela competência e visão estratégica.

É curioso observar o governo posicionando-se contra as listas tríplices quando lhe é conveniente, especialmente considerando que, no início desta gestão, ao nomear um novo Procurador-Geral da República (PGR) fora da lista tríplice proposta pelos membros da carreira, diversos representantes do governo e sua base de apoio fizeram questão de declarar publicamente que delegar a escolha do chefe do Ministério Público aos procuradores não tornaria o processo mais democrático nem asseguraria maior qualidade. Essa postura contrasta de maneira notável com a abordagem para as universidades federais, sugerindo uma aplicação seletiva de princípios conforme a conveniência política.

Outro exemplo contundente da crise gerencial provocada pela ausência de um sistema de recrutamento e seleção de dirigentes aptos para funções de alta complexidade e responsabilidade é observado na administração dos hospitais federais no Rio de Janeiro. A falta de um procedimento estruturado para a identificação e contratação de dirigentes com as competências técnicas requeridas resultou na nomeação de um sindicalista desprovido da expertise técnica essencial para gerir uma rede de hospitais de altíssima complexidade e com orçamento bilionário (falta de aviso não foi). Essa ação exacerbou a crise de gestão já existente nos hospitais e precipitou a queda na qualidade dos serviços oferecidos, resultando na demissão atrasada do dirigente mencionado diante da crise patente na administração hospitalar.

A experiência de outros países, como o Chile, oferece uma perspectiva sobre como implementar tais práticas. Desde 2003, o Chile adotou uma política de recrutamento e seleção de altos executivos públicos, incluindo gestores de hospitais, que é realizada por meio de processos técnicos e baseados em competências. Uma avaliação de impacto publicada em dezembro de 2023 identificou que o sistema contribuiu significativamente para a melhoria da gestão do sistema de saúde chileno, evidenciada pela  redução nos índices de mortalidade nos hospitais geridos sob este regime. Trata-se apenas da constatação de algo que os cariocas testemunham em primeira mão: a seleção de dirigentes baseada exclusivamente em conveniências políticas pode matar.

Diante do espelho da reforma administrativa, o Brasil se depara com um impasse entre preservar um legado arcaico e se adequar tardiamente ao futuro. Se há um crescente consenso de que o país precisa aprimorar suas capacidades estatais para tornar-se efetivo em implementar as políticas que o governo de turno julga prioritárias (como a política industrial), deveríamos avançar no sentido de consensuar mudanças no atual regime de recrutamento de dirigentes públicos. Toda reforma é, sem dúvida, um exercício politicamente oneroso; todavia o custo da inércia — de perseguir soluções tardias para problemas que se agravam — ultrapassa de longe o ônus da mudança.