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Direitos humanos no Brasil, silêncio na Venezuela

Sob o governo Lula 3, a abordagem brasileira em relação à Venezuela permaneceu inalterada

Lula e Maduro: Brasília assistiu à erosão democrática da Venezuela (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Lula e Maduro: Brasília assistiu à erosão democrática da Venezuela (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

 Durante as gestões do Partido dos Trabalhadores (PT), a postura do Brasil em relação à Venezuela foi caracterizada por um silêncio constrangedor. Diante da escalada autoritária e da crescente crise humanitária provocada pelo chavismo no país vizinho, o governo brasileiro manteve-se reticente em emitir críticas. Esse silêncio não só destaca a delicadeza da questão venezuelana na agenda internacional do Itamaraty, mas também sublinha o fracasso das abordagens adotadas nos últimos anos em assegurar ao Brasil um papel construtivo na resolução da crise política na Venezuela. 

Brasília assistiu à erosão democrática da Venezuela rumo ao autoritarismo de camarote. Quando ensaiou adotar uma postura mais crítica, o Itamaraty foi rapidamente desautorizado, como quando um duro discurso da embaixadora brasileira no Conselho de Direitos Humanos da ONU em 2011 foi seguido por uma carta do governo brasileiro que bradava reconhecer os "avanços em direitos humanos" alcançados durante a administração chavista.  

Sob o governo Lula 3, a abordagem brasileira em relação à Venezuela permaneceu inalterada, apesar das amplas evidências de abusos de direitos humanos e do impacto devastador da política econômica das administrações Chávez/Maduro. Em 2019, um relatório detalhado publicado pela Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, a socialista chilena Michelle Bachelet, documentou as violações massivas de direitos humanos cometidas pelo governo Venezuelano, incluindo a repressão, tortura, desaparecimento e morte de opositores políticos. A existência destas evidências não foi capaz de alterar a relação do PT com o regime venezuelano, que continuou pautada por uma reciprocidade amistosa. 

A recente manobra do governo venezuelano em 2023 reflete uma tática alarmante, reminiscente da ditadura argentina, ao criar um inimigo externo para alavancar apoio interno. É nesse contexto que surgem as recentes ameaças de invasão e anexação de mais da metade do território da Guiana pelo governo venezuelano. Ao escolher a Guiana como alvo, em virtude de suas recém-descobertas e extensas reservas de petróleo, Maduro busca desviar a atenção do estado catastrófico de sua economia.  

As tensões aumentaram com a realização de um plebiscito, marcado por suspeitas de fraude, cujos resultados são utilizados como justificativa para intensificar a retórica hostil contra a Guiana. Esta abordagem reflete a estratégia de Maduro de fomentar o nacionalismo a seu favor, em meio a negociações para o levantamento de sanções americanas, condicionadas à realização de eleições transparentes em 2024. O anúncio do plebiscito, um dia após as significativas primárias da oposição que indicaram María Corina Machado como candidata presidencial para 2025, sugere uma tentativa de desviar a atenção pública. É importante notar que a inelegibilidade de María Corina foi decretada pela Controladoria-Geral da República no início do ano, sob a liderança de Elvis Amoroso, chavista fiel, que atualmente preside a autoridade eleitoral responsável pela organização do plebiscito. 

A retórica beligerante da Venezuela, embora ainda não tenha desencadeado um conflito de fato, já provocou consequências tangíveis. A seriedade dessa ameaça é evidenciada por uma série de medidas. Por exemplo, o governo Maduro anunciou um orçamento de 680 milhões de dólares para desenvolver a capacidade logística na região fronteiriça com a Guiana. Leis relacionadas à anexação dessa área estão sendo usadas para silenciar e aprisionar opositores políticos. Caracas proclamou a concessão de nacionalidade venezuelana aos habitantes de Essequibo e destacou uma divisão militar para a mesma região. Em resposta, na Guiana, há discussões sobre a autorização para instalação de uma base militar americana. Ironia do destino, a complacência de anos do governo brasileiro com a Venezuela pode culminar no que o governo Lula consideraria uma derrota estratégica significativa: a instalação de uma base militar americana na Amazônia. 

O imbróglio tem capacidade de afetar a estabilidade política de toda a América do Sul, uma região que se destaca no mundo pela relativa paz em termos de conflitos territoriais entre Estados nacionais. A perspectiva de perder o poder e ver seus crimes julgados por uma coalizão opositora pode empurrar o governo Venezuelano a adotar a atitude pouco racional de iniciar um conflito armado, gerando uma espiral de violência sobre a qual o Brasil será obrigado a envolver-se.  

O perigo de um conflito deve ser levado a sério - entre outros motivos, por já ter quase dado origem a conflito armado no passado. Em 1969, por exemplo, ocorreu um movimento separatista conhecido como Rebelião de Rupununi na região que a Venezuela agora busca anexar. Essa insurgência foi apoiada pela Venezuela com armas e financiamento. Documentos e entrevistas com militares brasileiros comprovaram que o território brasileiro foi usado como rota de passagem para tropas venezuelanas em direção a Rupununi. Devido à topografia montanhosa da fronteira entre a Guiana e a Venezuela, o norte do Brasil oferece a passagem mais acessível entre os dois países. A intervenção do Exército Brasileiro resultou na captura de militares venezuelanos, que foram levados a Manaus e posteriormente libertados, além da apreensão de mais de duas toneladas de armas e três jipes militares usados pelos insurgentes. Conforme relatado por um oficial do Exército Brasileiro envolvido na operação, o apoio da Venezuela aos rebeldes de Rupununi não se concretizou devido à ação brasileira. 

Esta situação ilustra como a política externa do PT, centrada na não-intervenção, falhou em prever e mitigar o comportamento do regime chavista, resultando em uma perda de liderança e influência do Brasil na América do Sul. 

A política externa do PT, focada em evitar confrontos diretos e em favorecer a diplomacia de bastidores, mostrou-se inútil. Tentativas de influenciar Maduro a abandonar suas políticas autoritárias foram infrutíferas. Essa abordagem, no entanto, trouxe à tona contradições, principalmente em relação à defesa dos direitos humanos, onde o PT mostrou-se leniente com a Venezuela, mas crítico em relação a países como Israel. Tal inconsistência coloca em xeque a credibilidade internacional do Brasil e seu compromisso com os direitos humanos e a democracia. 

Essa contradição é particularmente evidente na ênfase do governo brasileiro e dos representantes do PT na soberania venezuelana, evitando críticas à situação dos direitos humanos no país. Essa postura predominou tanto na diplomacia brasileira quanto em fóruns internacionais de direitos humanos, indicando uma relutância em reconhecer a legitimidade da intervenção multilateral na Venezuela. Paradoxalmente, o PT não hesitou em recorrer a esses mesmos mecanismos contra opositores, como foi visto na denúncia contra Bolsonaro à Corte Interamericana de Direitos Humanos ou na sugestão de julgá-lo pelo Tribunal Internacional de Haia, contrastando com a postura adotada em relação a aliados geopolíticos. 

A relação do PT com os instrumentos internacionais de direitos humanos evidencia uma postura dúbia. Enquanto o partido usou essas ferramentas para avançar sua agenda, questionou sua validade quando se voltaram contra seus interesses. A decisão de Dilma Rousseff de se distanciar da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) após críticas relacionadas à usina de Belo Monte e a postura de Lula em relação ao Tribunal Penal Internacional de Haia, comparada com sua posição sobre o julgamento de Bolsonaro, ilustram essa dualidade. 

Quanto à política externa do PT em relação à Venezuela, seus formuladores defendem que não é produtivo para o Itamaraty adotar impropérios ou atitudes estridentes contra as ações venezuelanas. Argumentam que tais posturas, apesar de populares internamente, não são eficazes na diplomacia. Há mérito nessa visão, especialmente considerando as mudanças na política externa brasileira durante os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro. Esta nova fase se caracterizou pelo isolamento da Venezuela em organismos regionais, pela desvalorização de mecanismos como a Unasul e a Celac, e pela pressão exercida sobre o regime venezuelano através de iniciativas regionais fragmentadas, como o Grupo de Lima. 

A tentativa de isolar o governo de Nicolás Maduro, enquanto os Estados Unidos impunham sanções e o Grupo de Lima intensificava a pressão internacional, não alcançou os resultados esperados pelo Brasil, limitando sua capacidade de atuar como negociador e mediador na crise regional. Esta abordagem de alta pressão também foi criticada por Bachelet em seu relatório, que destacou os efeitos adversos das sanções e pressões unilaterais sobre os direitos humanos da população venezuelana. Ela ressaltou que as sanções aos setores petrolífero, mineiro e outros setores econômicos desrespeitam o direito internacional e a campanha de pressão máxima contra a Venezuela viola princípios como a soberania, a igualdade entre os estados e a não intervenção em assuntos internos. 

Porém, tais argumentos sugerem que o Brasil se encontra em um dilema entre adotar uma diplomacia estridente e moralista e manter uma postura estratégica e distante. Essa dicotomia indica uma falta de criatividade nas abordagens políticas. Tanto o partido quanto o país não conseguiram desenvolver táticas mais efetivas e consistentes, o que comprometeu a habilidade do Brasil de influenciar positivamente a situação na Venezuela, enfraquecendo seu papel como promotor de democracia e direitos humanos na região. Uma reavaliação e o desenvolvimento de novas estratégias, portanto, tornam-se imperativos. 

A trajetória da política externa brasileira, oscilando entre uma postura ora complacente, ora seletivamente crítica, reflete não somente as dificuldades inerentes à articulação entre as políticas interna e externa, mas também as contradições internas do PT. A pressão internacional, fundamental para o fim dos regimes militares no Brasil e em outros países da América Latina nas décadas de 80 e 90, continua essencial hoje para enfrentar crises de direitos humanos em várias regiões, incluindo a Venezuela. 

O insucesso da política externa brasileira para com a Venezuela expõe as limitações de uma diplomacia pautada por conveniências e sublinha a urgente necessidade de uma nova abordagem. Uma abordagem que reconheça a complexidade dos desafios regionais e esteja alinhada com os valores de promoção da paz e dos direitos humanos. Este momento crucial exige uma revisão da postura da política externa brasileira e oferece uma oportunidade para o Brasil reafirmar seu papel como um agente influente e responsável na promoção da estabilidade e da democracia na região e além.