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A questão do federalismo

A palavra vem do latim foedus, que significa “pacto” ou “tratado”. Expressa, portanto, a ideia de um acordo pacífico entre partes de um todo

Por Lucas Berlanza*

A palavra “federalismo”, etimologicamente, vem do francês fédéralisme, oriundo, por sua vez, do latim foedus, que significa “pacto” ou “tratado”. Expressa, portanto, a ideia de um acordo pacífico entre partes de um todo. Por vezes, em nossas discussões políticas, especialmente entre os defensores de uma agenda liberal, o termo aparece como protagonista de temas ainda candentes, sem que se tome um tempo preliminar para refletir sobre sua adequada conceituação.

É preciso levar em conta que, em diferentes contextos, os termos podem expressar significados distintos, que merecem exame particular. De maneira geral, porém, “federalismo” é uma forma de organização das instituições políticas em que, existindo um poder central dotado de soberania, coexistem, com autonomia significativa e atribuições consagradas na Constituição do Estado central, unidades menores de poder político e administrativo, como estados e municípios. Em cada sistema federativo, o chamado “governo federal” ou central terá determinada soma de poder estabelecida pela lei maior, assim como os governos regionais, “estaduais” ou “municipais”, sem que uns possam eliminar ou surrupiar os poderes dos outros.

Baseando-se nessa lógica, o Brasil é chamado de “República Federativa do Brasil”. Isso significa que nosso país é formado por diferentes unidades federativas ou estados, divididas, por sua vez, em uma imensidade de municípios, todos eles garantindo suas respectivas existências e poderes sem que o governo federal possa simplesmente decidir em contrário – a não ser que uma emenda constitucional promova essas modificações.

As principais alternativas ao sistema federativo são o sistema confederativo e o sistema de Estado unitário. Uma confederação, em regra – embora o termo historicamente já tenha sido aplicado a regimes equivalentes ao que se espera encontrar em um sistema apenas federativo, e, no passado, os dois fossem claramente empregados como sinônimos -, é um sistema ainda mais descentralizado, isto é, em que os poderes político-administrativos das unidades menores são ainda mais robustos do que no federalismo. Em geral, Estados confederados, ao contrário dos federados, também preservam sua própria soberania, ou seja, a autoridade maior sobre seus territórios, mas estabelecem uma aliança para a criação de instituições centrais que suprem certas deficiências perante a comunidade internacional, como a necessidade de uma defesa ou uma representação diplomática comuns para fortalecer seus pleitos em conjunto. Nesse cenário, as unidades confederadas são mais fortes do que o poder central em vez de compartilharem seu poder.

Já o Estado unitário é aquele em que qualquer poder de uma unidade menor é meramente delegado pelo governo central, que pode alterá-lo ou suprimi-lo a qualquer momento. Essa era a condição do Brasil durante o período monárquico. Durante o Segundo Reinado, existindo a figura do presidente do Conselho de Ministros (o equivalente ao primeiro-ministro em parlamentarismos tradicionais, a maior autoridade executiva abaixo do próprio imperador), cabia a ele a indicação dos presidentes de províncias (equivalentes aos atuais governadores dos estados). Seria como se o presidente Lula, atualmente, decidisse quem governaria São Paulo, Bahia, Rio Grande do Sul ou Rio de Janeiro.

A noção de poderes divididos em unidades menores foi apresentada de maneira mais sistemática pelo pensador calvinista Johannes Althusius, no começo do século XVII, e também aparece na obra de Montesquieu, mais notório pela teoria da divisão de poderes. As características de uma confederação aparecem na Confederação Suíça entre 1291 e 1798 e entre 1815 e 1848, na República das Sete Províncias Unidas dos Países Baixos entre 1579 e 1795 e na Confederação Alemã entre 1815 e 1866. O caso mais emblemático a espalhar a noção de federalismo, porém, é o dos Estados Unidos da América.

Quando do início das tensões entre as então Treze Colônias Inglesas e a monarquia britânica, o tema da “soberania” foi amplamente discutido. Os colonos defenderam o hábito de suas Treze Colônias de exercer diversas funções, como o poder de tributação, através de suas Assembleias locais, para contrapor o que julgavam excessos intoleráveis do governo britânico. Desenvolveram gradualmente, com isso, a perspectiva de que os poderes centrais em um império não deveriam ser estendidos a todos os aspectos políticos e que unidades menores de uma entidade política maior poderiam conservar alguns poderes soberanos para si mesmas.

Após a independência dos Estados Unidos, cada estado constitui suas próprias regras e seu próprio governo, e todos estabeleceram centralmente apenas um sistema confederativo, em que sequer havia a figura de um presidente da República que os representasse. O documento conhecido como Artigos da Confederação estabelecia a livre circulação entre todos os estados, um Parlamento nacional e o poder dessa pequena estrutura central para declarar guerra, conduzir a política externa e as relações comerciais – mesmo assim, porém, com autorização de um número mínimo de estados. Os chamados “federalistas”, como Alexander Hamilton, julgaram essa estrutura insuficiente, queixando-se da ausência de um presidente, uma base nacional de impostos e um Judiciário nacional, além de um Exército regular. Com a Constituição de 1787, eles triunfaram e os Estados Unidos adquiriram a base do atual sistema federativo.

O Brasil republicano se inspirou nos Estados Unidos ao estabelecer seu próprio sistema federativo. Na República Velha, os governadores estaduais ainda eram chamados de “presidentes” dos estados, mas a teoria constitucional era a de uma federação. Até o nome tinha inspiração no gigante do norte: “Estados Unidos do Brasil”. O problema é que, na prática, o sistema oligárquico vigente resultava de um acordo entre o presidente da República e as elites estaduais, que se uniam para impedir a posse de opositores e garantir suas posições. Com o tempo, as atribuições estaduais foram gradativamente reabsorvidas pelo poder central, até que, com a Revolução de 1930 e o ciclo autoritário de Getúlio Vargas – que, simbolicamente, promoveu a queima das bandeiras estaduais, exaltando apenas o emblema nacional -, o espírito federativo sofreu um profundo eclipse.

O federalismo brasileiro, chocando-se com a tradição unitária e centralizadora do país, é um resistente que trabalha por impor-se, com grande dificuldade de fincar raízes. A ideia liberal tende a favorecer o seu enraizamento, porque o liberalismo entende que a unidade mais próxima de uma questão ou problema deveria ser preferencialmente aquela com a prerrogativa de resolvê-lo – trata-se do chamado princípio da subsidiariedade. Se o indivíduo puder resolver ou deliberar sobre um problema, que seja ele a fazê-lo; se não, que seja a família; se não, que seja o bairro, que seja o município, que seja o estado, e somente em último caso essa função seja entregue ao Estado central. Isso ajuda a preservar a liberdade individual de ação, além de fomentar a associação de indivíduos em vez do recurso imediato a uma burocracia sofisticada e ineficiente, incapaz de concentrar em si todos os conhecimentos necessários para lidar com quaisquer eventualidades e perceber todas as possibilidades de ação.

Embora a Constituição de 1988 categorize o Brasil como uma federação, de fato garantindo aos estados e municípios o direito de existirem e não formulando a dependência da autoridade de governadores e prefeitos ao presidente da República, o pacto sob o qual se estatui nossa federação precisa ser revisto. Essa seria uma das reformas fundamentais que o Estado brasileiro necessita para alcançarmos maior pujança e desenvolvimento. Os estados e municípios se encontram em grande limitação do ponto de vista de sua autonomia financeira e jurídica. Uma maior autonomia regional permitiria uma diversidade de decisões de gestão e experimentações, facultando a adoção de modelos que poderiam se provar superiores aos que ora estão em vigência, bem como daria aos estados condição de reter mais recursos, necessários ao atendimento das necessidades de suas respectivas populações.

*Lucas Berlanza é formado em Comunicação Social/Jornalismo pela UFRJ, colunista e presidente da Diretoria Executiva do Instituto Liberal, membro refundador da Sociedade Tocqueville e sócio honorário do Instituto Libercracia, além de atuar como conselheiro do Instituto Livre Mercado, do Instituto de Formação de Líderes e do Instituto Damas de Ferro e conselheiro benemérito do Instituto Ajuricaba. Ministra três cursos virtuais sobre temas liberais. É autor, co-autor e organizador de diversos livros e articulista em coletâneas nacionais e internacionais (Classical Liberalism by Country).