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A ambígua admiração liberal por empresários

A exaltação de virtudes empreendedores em tensão com a ideologia liberal

 (uzenzen/Getty Images for National Geographic Magazine)
(uzenzen/Getty Images for National Geographic Magazine)

Em discurso ao Parlamento em 1879, o abolicionista Joaquim Nabuco manifestou sua insatisfação com o liberalismo no Brasil: "Vejo uma situação liberal, um partido liberal, homens liberais, mas não vejo ideias liberais." 

É curioso imaginar o que Nabuco diria sobre nosso cenário atual. Em anos recentes, as ideias liberais atingiram seu pico no Brasil durante o governo Bolsonaro, embora o próprio ex-presidente não o fosse. Figuras como o ex-ministro da Economia Paulo Guedes, além de movimentos estudantis e empresariais a favor do livre-mercado, deram destaque a ideias que nunca se enraizaram bem em terras brasileiras. 

Entre essas ideias, a noção de que os empresários, ou pelo menos alguns deles, seriam a epítome daquilo que o liberalismo representa: a inovação, a liberdade e o progresso econômico. O argumento é de que os empreendedores são os verdadeiros motores do avanço social, aqueles que geram empregos, criam novas tecnologias e levam a sociedade mais longe. Por tudo isso, eles deveriam ser louvados, não vilanizados. O crescimento do movimento liberal também promoveu essas ideias na prática: empresários bem-sucedidos se projetaram como influenciadores, foram premiados em eventos liberais e alguns até foram para a política. 

À primeira vista, a visão celebratória dos liberais em relação aos empresários faz todo sentido. Se o liberalismo se trata de reduzir a intervenção do Estado na economia para que a livre iniciativa promova espontaneamente a organização da sociedade, então os empresários são os verdadeiros agentes de mudança, com um papel fundamental a cumprir nesse arranjo social. Afinal, sem empresários não há empresas, empregos ou mercados. 

No entanto, há uma certa tensão entre essa visão elogiosa das virtudes empreendedoras e a explicação central do liberalismo de por que o sistema de mercado funciona. Lembremos do que Adam Smith dizia a esse respeito em A Riqueza das Nações: "Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas de sua preocupação com seu interesse próprio. Dirigimo-nos não à sua humanidade, mas ao seu amor-próprio, e nunca falamos para eles de nossas necessidades, mas sim de seus benefícios.”. 

O que Smith quer dizer é que a economia de mercado é justamente a forma de direcionar instintos morais que hoje seriam vistos como egoístas para promover fins mais nobres, de angariar motivações pessoais em prol do bem-comum. 

É verdade que o filósofo não tratava o auto-interesse como algo intrinsecamente ruim, como fica claro em sua obra anterior e menos conhecida, A Teoria dos Sentimentos Morais. Mas enquanto no primeiro livro o principal elemento que contém nossos impulsos egoístas em favor de sentimentos mais empáticos é um julgamento moral interno que Smith chama de “espectador impacial”, A Riqueza das Nações introduz a competição como o mecanismo institucional que cumpre esse papel. O açougueiro, o cervejeiro e o padeiro não constroem seus negócios por serem heróis virtuosos que ganham prêmios de grupos liberais, mas sim porque são levados por seu interesse próprio e os incentivos de mercado a fazê-lo. 

É nesse contexto que a exaltação liberal de empresários parece esquisita. O livre-mercado não é uma boa forma de organizar a economia porque os empresários são anjos iluminados, mas precisamente porque não o são. Se não podemos confiar nas pessoas para agirem sempre de forma altruísta e a favor do bem comum, ficamos obrigados a instituir mecanismos que canalizem os impulsos menos altruístas da natureza humana a favor do resto da sociedade. 

Isso não significa, evidentemente, que não more no centro da ideologia liberal um apreço pela livre iniciativa, um reconhecimento daqueles que seguem suas vidas apesar dos empecilhos estatais. É a tentativa de personificar esses mecanismos sociais complexos em empreendedores específicos que causa a tensão com o cerne do pensamento liberal. A identificação estética permanece, mas o argumento por trás se dilui. 

Ao idolatrar empresários bem-sucedidos, o movimento liberal se deu um tiro no pé, entregando à esquerda uma caricatura fácil do liberalismo: de que seria uma posição ingênua que vê as empresas como boazinhas, que nega a ganância e o egoísmo dos capitalistas. É justamente o contrário: sabendo que seres humanos continuarão sendo movidos por instintos pouco nobres, como podemos evitar que isso se traduza em conquista de poder, como aconteceu na maior parte da história humana? O papel do livre-mercado, nesse sentido, não é proteger os capitalistas, e sim colocá-los uns contra os outros para proteger a sociedade deles. 

O mundo que maximiza o ideal liberal não é um mundo de empresários proeminentes que se consolidam, e sim um mundo em que a competição destrona constantemente os líderes do momento, dando lugar a produtos e serviços melhores, mais baratos e mais inovadores. Construir um movimento ideológico em cima de algo tão abstrato não é uma tarefa fácil, e sem dúvida erigir heróis instiga apoiadores mais do que louvar construtos teóricos. Mas quem sabe se o movimento liberal passasse mais tempo focado nas ideias centrais e menos em empresários de sucesso pudéssemos ter um liberalismo do qual Joaquim Nabuco se orgulhasse mais.