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As ONGs se prepararam melhor

Os governos aparentemente não aprenderam muito com a tragédia de Mariana. Talvez seja hora de começar a trabalhar junto com a sociedade civil organizada

Rompimento da barragem em Brumadinho (TVGlobo/Reprodução)
Rompimento da barragem em Brumadinho (TVGlobo/Reprodução)
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Ideias renováveis

Publicado em 4 de fevereiro de 2019 às, 15h14.

Nos últimos dias, enquanto as equipes de resgate penosamente ainda descobrem e retiram os corpos das vítimas da lama em Brumadinho (MG), têm surgido mais evidências de que várias autoridades envolvidas na fiscalização ignoraram cuidados para evitar o rompimento de novas barragens. A tragédia em Brumadinho revelou que os governos federal e de Minas Gerais – assim como a Vale – não aprenderam o suficiente com as lições da última tragédia do tipo, ocorrida em 2015 em Mariana (também MG), quando a barragem do Fundão se rompeu, jogando um tsunami de lama no Rio Doce e deixando um saldo de destruição social e ambiental, além de 19 mortos. A barragem era da mineradora Samarco, uma subsidiária da Vale.

Por outro lado, nem todo mundo ignorou as lições de Mariana. Quem aparentemente incorporou vários aprendizados foram as organizações independentes que vêm trabalhando na região do Rio Doce desde o rompimento da barragem do Fundão, em 2015. Agora, diante do novo derrame de lama, essas organizações estão colocando em prática o que sabem.

Os primeiros aprendizados dizem respeito à reação imediata logo após o desastre. O Greenpeace, por exemplo, se beneficiou do que viveu com a barragem do Fundão. “Quando soubemos do rompimento da barragem (de Brumadinho), considerando a experiência com o desastre no Rio Doce, decidimos enviar um time a campo para documentar os impactos iniciais, entender a dimensão da tragédia e dar voz aos atingidos”, diz Fabiana Alves, porta-voz do Greenpeace. “O caso Rio Doce foi um desafio já que não tínhamos uma atuação direta na região. Por isso é importante salientar a importância de valorizar parceiros, e a atuação com outras organizações em um bloco de resistência aos crimes causados por empresas em conluio com governos irresponsáveis.”

No momento do rompimento da barragem de Fundão em 2015, o Greenpeace foi até o local para documentar o que havia acontecido e ajudar com o fluxo de informação. Foi um aprendizado. As pesquisas independentes realizadas na bacia do rio Doce foram fundamentais para ter uma real dimensão do impacto ambiental, social e humano da lama da Samarco, dada a enorme carência de dados e informações oficiais. No caso do Rio Doce, não havia histórico no país de tamanho impacto ambiental causado por uma onda de lama de rejeitos. “Infelizmente, já há precedentes e os dados já produzidos, como metodologias mais eficientes para restauração vegetal, podem vir a ser úteis para Brumadinho”, diz Fabiana. “Por outro lado é fundamental focar a atuação nas causas e não nas consequências.”

A atuação prévia no Rio Doce foi fundamental para o grupo de ativistas individuais e organizações que criaram o movimento #BrumadinhoPedeSocorro, uma mobilização para levantar recursos para a reconstrução da região. Essa mobilização comunitária é essencial para preencher as lacunas deixadas pelo poder público e pelas empresas responsáveis pelo desastre. E para ajudar as comunidades atingidas a cobrar seus direitos. A campanha de Brumadinho surgiu menos de 24 horas depois do rompimento da barragem. Isso só aconteceu porque a Aliança Rio Doce, uma coalizão de organizações que trabalham na bacia atingida, já estava se articulando com a Associação Nossa Cidade, que trabalha com projetos sociais na Grande BH, onde está Brumadinho.

“A reação desta vez foi muito mais rápida pois já temos uma trajetória nisso”, conta Ana Karolina Andrade, responsável por articulação e comunicação da Aliança Rio Doce. Em 2015, demorou cerca de uma semana para as reações em rede começarem a ter força. Cada articulação começou de forma isolada. A própria Aliança Rio Doce demorou quatro meses para se formar. Ela nasceu primeiro das expedições de voluntários no Rio Doce que foram ajudar comunidades locais e se encontraram pouco a pouco. “Desta vez, já sabíamos dessa possibilidade, dessa força, pois já havíamos trilhado o caminho”, diz Karolina.

A agilidade dessa reação faz toda diferença para o resultado a longo prazo e a capacidade de regeneração das comunidades atingidas. “O que pudemos observar foi que este processo de comoção é uma onda inicial que logo passa”, diz Karolina. “Depois sobram os ativistas, os ambientalistas, os empreendedores sociais.” Logo, neste primeiro momento, quanto mais pessoas se envolverem com a causa melhor, pois o sentimento de altruísmo está vivo e é justamente ali que podem surgir conexões valiosas que poderão sustentar ações futuras. Quando a imprensa ou as redes sociais já não dão mais o mesmo peso ao assunto e as pessoas naturalmente voltam sua atenção para outros temas, existe um grupo de pessoas articuladas dispostas a continuar trabalhando, longe dos holofotes. Esse trabalho vai desde assistência técnica para agricultura sustentável (capaz de ajudar na regeneração ambiental da vegetação e do rio) até orientação para mediação de conflitos, desenvolvimento de lideranças locais, valorização da cultura da região, criação de novas relações comerciais e de produção para compensar os impactos econômicos do desastre.

As conversas e atividades com os atingidos do Rio Doce levaram a Aliança a desenhar um jogo de cartas e tabuleiro. O Regenera Rio Doce ajuda na sensibilização e no engajamento. As pessoas da região aprendem a priorizar as ações, entender as responsabilidades de cada um e do poder público, assim como as consequências dos atos. O jogo agora será útil em Brumadinho.

O trabalho para ajudar as comunidades atingidas a se organizar e ganhar poder é um dos principais objetivos dessas entidades. “Sem esse trabalho nada conseguirão e seus direitos continuarão sendo sistematicamente maltratados”, diz Xavier Ibarrondo, da Cáritas, braço de assistência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. “Em Mariana e agora ao longo da bacia toda (do Rio Doce) estão sendo implantadas comissões locais de atingidos junto com os Ministérios Públicos Federal e Estadual para qualificar as demandas. O trabalho começa a dar seus frutos”, afirma. Esse trabalho será reproduzido pela Cáritas em Brumadinho. “Fica evidente que o MPF e MPE irão seguir pela trilha iniciada no Rio Doce e que as empresas se sentirão obrigadas a assinar acordos em menor espaço de tempo e com maiores conquistas para as vítimas. O fato de a maioria das vítimas em Brumadinho serem profissionais das empresas facilitará um empoderamento maior da sociedade civil”, diz Xavier.

É claro que o trabalho dessas organizações não é suficiente para monitorar como as empresas lidam com seus rejeitos e impedir novas tragédias. Mas a forma como elas humildemente aprenderam as lições de Mariana e trabalharam nos últimos anos pode servir de exemplo para os responsáveis nos órgãos públicos e na gestão privada. Isso é mais necessário do que nunca. Uma Medida Provisória assinada em 1º de janeiro pelo presidente Jair Bolsonaro atribui à Secretaria de Governo a tarefa de monitorar e acompanhar as atividades das organizações não governamentais no território nacional.

Durante a campanha eleitoral, Bolsonaro afirmou várias vezes que os movimentos de direitos humanos prestam um “desserviço” ao país. O governo ajudaria mais a população se assumisse uma postura mais colaborativa com os movimentos que procuram ajudar as pessoas. Os gestores públicos teriam um canal de diálogo – com mão dupla – para o governo reportar o que faz e incorporar as boas práticas das ONGs. “Tem muita gente precisando da ajuda da sociedade civil organizada!!! Bora aprender junto?”, diz Floriana Breyer, co-fundadora da Aliança Rio Doce.