Vacilamos quando o futuro parecia ter chegado. Há luz no fim do túnel?
Diante do enfraquecimento institucional causado pela crise econômica, nossa democracia está por um fio: seja pela eleição de um político autoritário, seja pela escolha de alguém que insista nos erros recentes
Publicado em 16 de julho de 2018 às, 13h29.
A transição do governo de FHC para o de Lula se deu de forma civilizada. Ao assumir, o petista rejeitou o velho discurso, escolheu preservar os pilares básicos do Plano Real e praticar uma política econômica convencional, indicando um nome do mercado financeiro para o Banco Central. O fantasma do “risco político” que assombrava as eleições parecia ter sumido.
No novo Brasil, as controvérsias não seriam mais marcadas pela oposição entre ortodoxia e heterodoxia. As forças políticas pareciam ter compreendido que as demandas da sociedade deveriam se submeter à restrição orçamentária intertemporal do governo. A busca pela prosperidade teria que ser baseada na iniciativa privada, cabendo ao setor público preservar a estabilidade, corrigir eventuais falhas do mercado e avançar a agenda social.
Não éramos mais diferentes de vizinhos que se esforçavam para evoluir. Entre 2009 e 2012, o preço para segurar carteiras com ativos brasileiros caiu consistentemente e chegou a ser quase igual ao aplicado em média em posições com títulos chilenos, colombianos e peruanos. Tínhamos “grau de investimento”, o Lula era “o cara” e o dólar oscilava em torno de R$ 1,85. A corrupção e a fanfarronice irritavam, mas pareciam ser problemas menores diante do cenário promissor.
Quando Dilma vestiu a faixa, estimava-se que o potencial de crescimento da economia girasse em torno de 4,5% ao ano. Para que o leitor seja capaz de aquilatar o significado disso, se as expectativas tivessem se concretizado, o PIB do trimestre passado deveria ter sido 550 bilhões de reais maior do que foi. A diferença equivale à produção da Bélgica usando o valor atual do dólar. Ao câmbio da época, a confirmação das expectativas teria colocado o Brasil no G3, ao lado do Japão. Parece incrível, mas essa era a visão consensual há menos de uma década.
A perda acumulada situa-se em 6,5 trilhões de reais, equivalente a tudo que o Brasil produz em um ano. Imagine uma greve de caminhoneiros com duração de 365 dias e você terá ideia da ordem de grandeza dos prejuízos incorridos desde que o governo mudou de mãos em janeiro de 2011.
Olhando em retrospectiva é óbvio que o otimismo era exagerado. Apesar disso, a culpa pela decepção épica deve-se às opções do governo, particularmente ao cavalo de pau conhecido por “Nova Matriz Econômica”. Seus defensores preferem atribuir o fiasco à crise externa, mas basta comparar o desempenho brasileiro com o de países semelhantes para constatar que a desculpa não para de pé. O mundo esfriou quando a China começou a puxar o freio e os países desenvolvidos ainda patinavam, mas não houve outra catástrofe como a que arrasou o Brasil.
O colapso foi plantado quando o governo apostou que faria o país crescer torrando a poupança pública (da mesma forma que hoje querem gastar as reservas). Apoiando-se nessa visão ultrapassada, Dilma distribuiu favores aos amigos, interferiu em preços fundamentais e fez mágica para esconder a gastança das estatísticas. Como essas extravagâncias sempre fracassam, é difícil saber se as escolhas ocorreram simplesmente por inépcia ou porque a farra facilitava o roubo (que corria solto). Provavelmente a verdade está no meio do caminho, devendo-se considerar a Nova Matriz e o oceano de corrupção como eventos interdependentes.
Se o prejuízo de trilhões de reais viesse acompanhado de aprendizado que nos livrasse de aventuras semelhantes, não teria sido propriamente uma pechincha, mas o esforço de reconstrução seria temperado pela esperança de progresso efetivo. O problema é que, além dos custos econômicos, a lambança fragilizou a democracia ao aguçar suas tensões naturais ou seus “três paradoxos”, seguindo a análise do cientista político Larry Diamond (veja a coluna passada).
O maior perigo dessa crise econômica colossal é o enfraquecimento institucional que deriva dela. Seja pela eventual eleição de um político autoritário, seja pela escolha de alguém que insista nos erros recentes, o sucesso de nossa democracia está por um fio. Se dermos azar, o custo até agora será pequeno perto do retrocesso político de amplitude imprevisível que pode ocorrer.
O primeiro paradoxo que dificulta o progresso em uma democracia opõe a necessidade de confirmação pelo voto e a obrigação de produzir resultados que agradem o eleitorado. Ao colocar o país em uma das maiores recessões da história, condenando milhões de famílias ao desemprego, Dilma potencializou a impaciência do povo, reduzindo sua propensão a aceitar mudanças que, de resto, seriam impopulares em qualquer circunstância. Defender o necessário sempre foi e será custoso politicamente. Depois dessa crise virou suicídio – vide o festival populista.
Para piorar, a aversão ao ajuste se afervorou no momento em que ele é mais urgente, pois a folga fiscal que antes existia e que permitiria um avanço gradual foi desperdiçada pela Nova Matriz. A crise impõe obstáculos severos à restauração harmoniosa do equilíbrio fiscal que havia sido conquistado a duras penas. Todos querem manter benefícios e ninguém quer pagar. Conflitos distributivos que pareciam controlados foram avivados, elevando-se o perigo de argentinização.
O segundo paradoxo confronta a necessidade de haver disputas sem que se perca a capacidade de superá-las. A controvérsia é fundamental em uma democracia, mas não há progresso se ela não ocorrer de forma honesta, baseada em fatos e regras que propiciem resoluções positivas. Tivemos que amargar uma longa jornada até domar a inflação que nos sufocou nos anos 80. Quando um governo de esquerda assumiu sem bagunçar o coreto, colhendo os frutos dos acertos, o debate parecia encerrado. A brusca mudança de rumo da Nova Matriz e o trauma para destituir a presidente quando o caos se instalou criaram fissuras que hoje obstruem o diálogo construtivo. Ao invés de discutirmos prioridades diante de um orçamento limitado, retrocedemos a um debate primitivo envolvendo disputas sobre o funcionamento da economia – e a fila anda mundo afora.
O terceiro paradoxo contrapõe o requisito de representatividade ao de governabilidade. Sem o primeiro não há democracia, sem o segundo não há energia para superar os desafios. Dilma tinha visões equivocadas, não sabia governar, mas foi escolhida para presidir o Brasil. Temer restaurou a governabilidade e arrumou a economia até ser abatido pelos irmãos Batista. Fez um dos governos mais reformistas da história, mas nunca teve apoio da população. Seja por fragilidades no campo da ética, seja pela ação de grupos de interesse fortíssimos, seu governo voou como uma galinha. A greve dos caminhoneiros foi o golpe de misericórdia e hoje o país está à deriva novamente. Não é de se admirar, portanto, os anseios autoritários que começam a brotar aqui e ali.
Diante desse imbróglio, faz sentido esperar que o futuro presidente, seja qual for desses que estão aí, conseguirá representar decentemente os grupos de interesse, colocar-se acima deles e fazer um governo efetivo, que introduza as reformas necessárias para dar competitividade à economia, distribuindo de forma justa os custos elevados do ajuste?
Há pouco tempo sonhamos com o progresso depois de mais de uma década perdida andando como caranguejo e acreditamos que a época das reviravoltas havia ficado para trás. Lamentavelmente, um governo excessivamente confiante e avesso ao diálogo escolheu políticas ultrapassadas que limaram uma Bélgica do PIB, trazendo insegurança, corrupção e rachaduras na sociedade. O empobrecimento vertiginoso corroeu as bases frágeis da democracia ainda imatura e adiou o futuro que parecia ter chegado. Essa herança nefasta flagelará o país ainda por muitos anos, independentemente de quem venha a se tornar presidente.