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Por que o político vigarista causa mais mal do que o mentiroso?

Há um limite a partir do qual as artimanhas retóricas, meias verdades e absurdos desvirtuam o debate, inviabilizando o predomínio da verdade

Lula: paradoxalmente, a "Lei da Ficha Limpa" foi promulgada pelo próprio Lula no último ano de seu mandato (Rodolfo Buhrer/Reuters)
Lula: paradoxalmente, a "Lei da Ficha Limpa" foi promulgada pelo próprio Lula no último ano de seu mandato (Rodolfo Buhrer/Reuters)
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Celso Toledo

Publicado em 23 de julho de 2018 às, 16h53.

Manifestações, propaganda e propostas políticas obviamente deveriam ser baseadas em evidências e análises consistentes, mas faz parte do jogo puxar a brasa para a própria sardinha, ressaltando aspectos convenientes e ignorando os poréns. Em condições normais, portanto, é inevitável a sensação de que a disputa política é praticada com certa dose de “desonestidade”. Há, no entanto, um limite a partir do qual as artimanhas retóricas, meias verdades e absurdos desvirtuam o debate, inviabilizando o predomínio da verdade.

Infelizmente não temos em português um sinônimo perfeito para a expressão “bullshit”, uma das mais úteis do vocabulário inglês. O termo, que se refere literalmente aos excrementos bovinos, é imbatível na caracterização de opiniões fraudulentas tão comuns em época de eleições. Sem dúvida nasceu como gíria vulgar, mas teve o status elevado como resposta à necessidade de um verbete suficientemente enfático para tipificar alguns âmbitos da desonestidade intelectual. T.S. Elliot, Ezra Pound, E.E. Cummings e, mais recentemente, David Graeber são exemplos de pessoas de alto gabarito que usaram bem o cocô do boi.

Fazendo justiça à Flor do Lácio, contamos aqui com a palavra sublime que começa com a letra “m”. De fato, ela é usualmente empregada com a mesma acepção de “bullshit” quando, por exemplo, alguém dispara a frase: “meu Deus, o Ciro só fala m…!”. No entanto, apesar do uso coloquial frequente, sobretudo em diálogos entre amigos, é inaceitável aplicar o vocábulo homólogo com a mesma liberdade que os gringos usam “bullshit” ou simplesmente “BS”. Seja qual for o motivo da rejeição, o impedimento nos obriga a empregar substitutos imperfeitos como “besteira” ou “asneira”, infelizmente sem o mesmo efeito que seria obtido com “m…”.

O filósofo americano Harry Frankfurt, professor emérito da Universidade de Princeton, publicou em 1986 um ensaio intitulado “On Bullshit”, que em português poderia ser traduzido de modo rudimentar como “Da M…”. Trata-se de reflexão pioneira que teve como objetivo justamente enquadrar conceitualmente este verbete imprescindível, que tanta falta faz por aqui. O esforço louvável e brilhante é a meu ver definitivo. A principal preocupação de Frankfurt foi estabelecer a distinção entre o “bullshitter” (sujeito que dispara “bullshits”) e o mentiroso.

Exatamente como o loroteiro, o “bullshitter” bombardeia o interlocutor com algo que não representa o seu pensamento verdadeiro e age com o objetivo deliberado de enganar. Além disso, “bullshits” não são necessariamente besteiras disparatadas como, por exemplo, as analogias que Dilma adorava. São afirmações inteligíveis que induzem as pessoas a formar uma imagem falsa do “bullshitter”. Por exemplo, quando escreve “um governo ilegítimo corre nos seus últimos meses para liquidar o máximo possível do patrimônio e soberania nacional que conseguir (…), além de abrir a Amazônia para tropas estrangeiras”, o “bullshiter” tenta atrair a atenção das pessoas fazendo um tipo. O blefe é desferido sem que haja a menor preocupação com a realidade.

Quando um político mente em relação à própria honestidade, a ação se dá porque a verdade lhe é obviamente desfavorável. A atitude do mentiroso, por mais abjeta que possa parecer, pressupõe conhecimento e uma dose de respeito ao que é autêntico. O ladrão que alega inocência entende a verdade e gostaria que sua mentira fosse verdadeira. Joga o mesmo jogo de quem diz a verdade e, por isso, costuma balançar quando é desmentido pelos fatos.

Em contrapartida, a fala “não existe alguém mais honesto do eu” não é uma mentira no sentido estrito. É claro que a mensagem é enganosa, mas o elemento que a distingue da mentira, caracterizando-a como “bullshit”, é a total indiferença do emitente em relação à verdade. É irrelevante para o sujeito que diz uma pérola como essa se de fato inexiste alguém mais honesto do que ele – tal preocupação simplesmente não passa por sua cabeça. Por isso, nenhum fato ou argumento é capaz de fazer o “bullshitter” recuar – vide Trump.

A distinção fundamental, portanto, está no papel que a verdade representa para o mentiroso e para o “bullshitter”. O primeiro se guia por ela e opta por não se submeter a suas limitações. O “bullshitter”, por sua vez, opera com liberdade, construindo suas narrativas a partir da costura livre e não necessariamente coerente de fatos verdadeiros. Engabela ao projetar uma imagem falsa, sobretudo no tocante às pretensões que mantém. A irrelevância do que é certo para o “bullshitter” o torna um inimigo da verdade muito mais perigoso do que o mentiroso.

A maioria dos brasileiros deve ter sentido náuseas quando leu o artigo que Lula publicou na Folha há uma semana. Sei de fãs que acharam que ele forçou a barra ao atribuir aos outros a crise em que o país se encontra, isentando as escolhas duvidosas que ele e seus postes fizeram. A colagem desconexa de delírios e fatos para convencer o incauto de que ele é uma vítima calada pelas “elites” é talvez a maior fábula do maior “bullshitter” que este país já teve.