Os Estados Unidos são a nova China?
Há acertos de contas traumáticos encomendados para o dia em que o destino escolher o ritmo de expansão americano
Publicado em 26 de julho de 2017 às, 15h06.
Perguntei há 15 dias se os EUA não seriam o novo Japão dado o patamar baixíssimo dos juros reais em prazos longos. Com a inflação adormecida (apesar do desemprego baixo), o juro real oscila próximo de 1% ao ano para o período entre 2022 e 2027. O ponto que causa desconforto é que o juro de longo prazo deveria ser em tese parecido com o crescimento potencial da economia – talvez até um pouco maior. Para o mercado de renda fixa, a renda per capita americana tende a ficar aproximadamente estagnada.
O cenário macroeconômico que dá suporte à expectativa de juros e crescimento pífios é o de “japanização” dos EUA. O marasmo da maior economia do mundo é ruim porque o seu desempenho determina em boa parte o dinamismo da economia mundial. Pior, os economistas ainda acreditam em crescimento potencial maior, da ordem de 2% e, justa ou injustamente, muitas decisões são tomadas com base nestas projeções. Sendo assim, há acertos de contas traumáticos encomendados para o dia em que o destino escolher o ritmo de expansão americano.
Um quebra-cabeça simétrico está presente nos mercados de ações, cujos preços estão na estratosfera. Enquanto o pessoal da renda fixa pensa em estagnação, o índice S&P 500 acumula alta de cerca de 10% em 2017 e supera em mais de 15% o recorde anterior alcançado antes do estouro da bolha de tecnologia no ano 2000, já desconsiderando a inflação. A pergunta do título lança mão de certa licença poética para chamar atenção ao contraste marcante entre os humores das mesas de renda fixa e de renda variável.
A relação entre o preço e o lucro das ações (PL) é uma métrica para avaliar se a bolsa está ou não “cara”. Grosso modo, ela mede quanto o investidor está disposto a investir para receber um dólar em dividendos por ano. O economista da Universidade de Yale e prêmio Nobel Robert Schiller montou a série do PL do S&P 500 desde meados do Século 19. Ele oscilou em torno do valor médio de 16,8 – 95% do tempo abaixo de 27,6. Atualmente está em 30,1, mais de 80% acima da média.
O PL de Schiller é “ajustado pelo ciclo”. Ao invés de dividir o preço das ações pelos dividendos do ultimo ano, ele prefere usar a média dos últimos 10 anos. Sem o ajuste, a diferença em relação à média cairia de 80% para “apenas” 65%. Ou seja, a bolsa parece exuberante por qualquer critério. Quem topa esperar 30 anos para recuperar um investimento provavelmente está otimista com as perspectivas econômicas. A pergunta que não quer calar é: será que esta paciência sobreviveria a um cenário de estagnação da renda per capita?
O paradoxo pode ser explicado pelo oceano de intervenções que está mantendo os juros baixos em prazos longos. É verdade, mas ainda assim há dois problemas. O principal é que, pelo andar da carruagem, o juro e a liquidez parecem representar um “novo normal”, não um ciclo econômico usual. Em outras palavras, os juros baixos refletem a expectativa de que o crescimento será baixo por muito tempo. Como os lucros crescerão neste ambiente?
O segundo problema é de consistência. O arrazoado um tanto árido do restante deste texto mostrará que o atual patamar da bolsa pressupõe um cenário que não encontra paralelo na história, combinando juro baixo e crescimento relativamente “elevado”. A forma mais simples de restaurar a coerência é supor que tenha havido um aumento de apetite ao risco por conta das ações dos Bancos Centrais. Se for isso, o desmonte das operações tenderá a provocar turbulências bem maiores do que as esperadas, independentemente do cenário. Senão vejamos.
O que infla a razão entre preços e lucros das ações? Dois motivos não excludentes: (i) esperança de lucros crescentes e/ou (ii) disposição maior a correr riscos. Para aplicar essas noções na prática e saber se as ações estão com preço “justo” é necessário superar dois obstáculos difíceis. Primeiro, estabelecer a relação entre o comportamento dos lucros das empresas e o cenário para a economia. Segundo, conhecer o tamanho da margem que os investidores exigem para vender títulos do tesouro e aplicar em ativos arriscados.
O melhor ponto de partida é olhar cautelosamente o passado como guia, mesmo que para esquecê-lo na hora de tomar decisões.
Da 2a Guerra até meados dos anos 90, os lucros apresentaram tendência de crescimento inferior à do PIB. Na verdade, eles oscilaram em torno de um patamar constante nos anos 70, 80 e 90 e, desde então, passaram a superar o PIB, mas com grande variância. No frigir dos ovos, a evidência histórica mostra que é impossível ter certeza sobre o comportamento dos lucros a partir de um cenário macroeconômico. Mas dá para dar um chute razoável, com o mesmo padrão de qualidade das melhores projeções econômicas. Pelas minhas contas, os lucros têm apresentado tendência de crescimento entre 1,5 e 2 vezes maior que a da economia no longo prazo. Digamos, de forma um tanto otimista, que seja 2.
O próximo passo é saber a margem sobre o juro livre de risco aplicada para descontar o fluxo de lucros de uma empresa. O crescimento dos lucros e o PL médio observados ao longo da história sugerem que esta margem é elevada. Na verdade, ela parece ser elevada demais para muitos economistas do primeiro time como, por exemplo, o próprio Schiller e Edward Prescott (outro Nobel). Na falta de uma muleta melhor, a hipótese natural é supor que o parâmetro para o futuro seja igual ao consistente com o valor passado – mesmo que a magnitude seja difícil de engolir. Supõe-se que algo inexplicável nos últimos 150 anos continuará inexplicável, mas igual, nos próximos 150 anos.
Estas premissas resultam em uma “calculadora” para obter o valor justo da bolsa a partir do fluxo de lucros coerente com o crescimento potencial descontado pelo juro pago por um título do tesouro americano acrescido da margem de risco.
Como vimos há 15 dias, o cenário implícito nos juros de longo prazo é de crescimento potencial inferior a 1% ao ano. Segundo o nosso modelo, os lucros crescerão 2% neste cenário. Aplicando o prêmio de risco histórico ao juro real de 1%, é simples obter que a bolsa tem que cair uns 30% para chegar ao “preço justo”. Olhando de outra forma, os lucros precisariam aumentar 4% ao ano para justificar o preço atual. Em tese, isso seria consistente com o crescimento do PIB de 2% esperado pelos economistas. O problema é que se o crescimento potencial for maior do que o embutido nos preços de títulos do tesouro, os juros também serão maiores e o resultado será o mesmo: a bolsa terá que cair. E assim o cachorro tenta morder o próprio rabo.
Dá para explicar o quebra-cabeça adicionando um ingrediente que não chega a ser motivo de alívio. É possível que economistas e mercados de juros e ações acreditem no mesmo cenário econômico: juros e crescimento voltando para 2% ao ano. De acordo com esta história, as distorções atuais dos preços seriam causadas pelas intervenções maciças dos Bancos Centrais no âmbito das políticas de afrouxamento quantitativo.
Essa parece ser implicitamente a história contada por Gavyn Davies em seu blog no Financial Times no final de junho. Os trilhões de dólares injetados pelo FED, BCE e BOJ diminuem artificialmente os prêmios de risco – que, nos mercados de renda fixa, podem estar em terreno negativo. Este fenômeno é capaz de explicar o preço elevado da bolsa e o valor deprimido do juro real de longo prazo.
Essa parece ser a história mais verossímil, mas daí dizer que os preços atuais refletem “fundamentos” e não complacência transforma-se em uma questão semântica. Seja qual for o adjetivo, a redução dos ativos dos Bancos Centrais deverá provocar deslocamentos nos mercados muito maiores do que os contidos nas avaliações atuais de risco. E este ajuste está próximo.