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Nossa tolerância à corrupção é uma questão cultural?

Por que toleramos a corrupção? é espantoso constatar a facilidade com que o poder tem paulatinamente driblado os embaraços criados pela Operação Lava Jato

 (Fred Cardoso/Getty Images)
(Fred Cardoso/Getty Images)
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Celso Toledo

Publicado em 18 de março de 2021 às, 12h53.

Por que toleramos a corrupção? É certo que a gravidade da pandemia, além de inibir manifestações populares, tende a ofuscar outros males que assolam o país. Apesar disso, é espantoso constatar a facilidade com que o poder tem paulatinamente driblado os embaraços criados pela Operação Lava Jato – que, a cada dia, surge como a verdadeira vilã.

Em ótima entrevista ao Estadão, a economista Maria Cristina Pinotti, estudiosa da Operação Mãos Limpas, precursora italiana da Lava Jato, falou da “Operação Abafa” em curso no país. Verdade. Só falta mesmo livrar a barra de gente do quilate de Eduardo Cunha e Sérgio Cabral. Fora isso, voltamos à normalidade, com a nata da malandragem fazendo o que bem entende.

A situação quase falimentar do setor público dificulta a maquinação de assaltos colossais como os praticados durante a gestão petista. Mas o fato de a turma ter que atacar a viúva com moderação deve ser comemorado com cautela. Na verdade, a pirataria miúda é socialmente mais nefasta que os roubos que viram séries da Netflix. A ação metódica de ladrões de galinha é mais tolerada, mais espalhada e tem efeitos corrosivos maiores sobre a produtividade.

Ao avaliar a conveniência de cometer um ato ilícito, o vigarista faz uma análise de custo e benefício. Leva em consideração o tamanho do butim, a severidade da pena e a probabilidade de ser punido. Sendo assim, o oceano de corrupção que nos circunda é em parte determinado pela impunidade – o crime compensa. Daí a necessidade de bloquear investigações, invalidar provas e procedimentos ou, melhor ainda, legalizar a corrupção.

Dito isso, ao refletir mais profundamente sobre a verdadeira raiz do problema, é forçoso concluir que a impunidade é mais efeito do que causa. Por trás da impunidade há um componente cultural de tolerância à corrupção. Afinal de contas, (i) os mecanismos de punição são escolhidos pela sociedade, por intermédio de representantes eleitos e (ii) apesar dos pesares, o Brasil é um país democrático. Em outras palavras, Brasília é um espelho fiel de nossas preferências.

De (i) e (ii) decorre que a corrupção endêmica existe porque é aceita. A origem não é a impunidade. Ao contrário, a impunidade impera porque não nos importamos. A “operação abafa”, a infinidade de dispositivos legais para favorecer larápios, a margem de manobra na interpretação de textos e a facilidade com que jurisprudências são revertidas ao sabor das conveniências provam que carregamos o “germe” da corrupção, inoculado há bastante tempo e hoje assimilado.

Todos se declaram contra a roubalheira. Mas o que importa são as preferências efetivamente reveladas por atos concretos. Na prática, repudiamos apenas os malfeitos perpetrados por quem está do outro lado, seja no campo da política, seja no pessoal – diga-se, é por isso que o populismo se prolifera no caldo da polarização. Os políticos, normalmente mais espertos que a média, internalizam a regra do jogo. O povão recebe em troca governos corruptos 100% do tempo – metade com a “esquerda” acusando a “direita”, metade com a “direita” acusando a “esquerda”. A perversão é facilitada pelo baixo nível educacional do eleitorado, que engole facilmente as baboseiras dirigidas para dividir o rebanho.

De vez em quando elege-se um governo que, além de corrupto, é incompetente e aí o bicho pega para valer. Sociedades infectadas pelo germe da corrupção, quando governadas com competência, são capazes de andar para frente, ainda que bem abaixo do potencial – nesse caso, o roubo funciona como um imposto. Agora, roubalheira e burrice são pecados que juntos provocam crises homéricas e prolongadas, marcadas pela substituição sucessiva de governantes broncos numa espiral descendente de difícil superação.

Em 2007, uma dupla de economistas explorou um “experimento natural” para observar a honestidade de indivíduos de diversos países em uma situação de impunidade total. Até novembro de 2002, a imunidade diplomática livrava os representantes de pagar multas por infrações de trânsito em Nova Iorque. A única restrição à prática das transgressões estava na consciência das distintas autoridades.

O experimento é fascinante porque apresentou condições de controle praticamente ideais, muito raras em ciências humanas. O universo de diplomatas das Nações Unidas é homogêneo. Todos trabalham no mesmo local e enfrentam condições semelhantes de trânsito. O grupo é composto por pessoas (supostamente) bem-educadas e culturalmente sofisticadas – o que, diga-se, baliza por cima as conclusões. Enfim, um laboratório perfeito para testar o “jeitinho” em 149 países.

Os pesquisadores observaram comportamento heterogêneo entre os diplomatas enquanto durou a regra da impunidade. Os funcionários de alguns países cometiam sistematicamente mais infrações do que os de outros. A explicação mais plausível para as discrepâncias é a influência de normas culturais que os doutores levavam de seus países a Manhattan. Para uns, deixar de aproveitar brechas imorais seria coisa de otário. Para outros, uma questão de civilidade.

Nesse tipo de competição o brasileiro costuma se destacar. O número de infrações dos nossos irmãos, formados impecavelmente na arte do diálogo, da contemporização e do respeito, só não foi maior que o de 29 nações como Burundi, Benin e Zâmbia. Cada um dos 33 representantes tupiniquins (ou seus familiares) cometeu, em média, cerca de 30 irregularidades em Nova Iorque entre novembro de 1997 e novembro de 2002. Para comparar, os 9 diplomatas haitianos, um dos países mais miseráveis do globo, cometeram, em média, 3 infrações.

De onde vem essa barbaridade? Trata-se de quebra-cabeça que consumiu a inteligência de gigantes. Não é fácil responder, mas dá para vislumbrar elementos nas interpretações clássicas de Raymundo Faoro, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e, talvez mais apropriadamente, Mário de Andrade ou até Dias Gomes. Seja qual for a explicação, o fato é que o brasileiro possui a cultura da transgressão. Somos um povo alegre, descontraído e de fácil trato. Ao mesmo tempo, toleramos a violência, detestamos regras e valorizamos (invejamos?) o picareta.

Se o roubo come solto, a economia e o povo sofrem – ou, como em Macunaíma, se sobram saúvas, falta saúde. Para ver, consideremos, por hipótese, que o número de infrações de trânsito cometidas por pessoas bem-educadas em uma situação de impunidade indique o componente cultural da desonestidade dos povos. A questão é saber como isso se relaciona com a variação dos índices de produtividade – a melhor forma de aferir o dinamismo das economias.

No quadro abaixo, ordenei 121 nações de acordo com o vigor econômico. Dividi a amostra em duas partes iguais e calculei médias (e medianas). A herança cultural de desonestidade parece estar (inversamente) associada ao dinamismo econômico, padrão que não muda se a amostra for restrita às 50 maiores economias. À primeira vista, portanto, o brasileiro deveria ganhar se fosse possível adotar no país padrões mínimos de ética, seriedade e civilidade.

Mas, se for verdade que o estado atual de coisas é determinado culturalmente, é ingênuo acreditar que seja possível colocar no Alvorada alguém capaz de acabar com nossa tolerância à malandragem. A cultura muda lentamente, por definição. Nesse caso, o máximo que podemos almejar é um governo composto por gente desonesta, mas competente. Esse é um objetivo distante do ideal, mas, se serve de consolo, factível – há exemplos recentes. Basta romper a polarização ignorante que tem colocado o país na rota do abismo. Ocorrerá em 2022?

Desonestidade e dinamismo econômico

Amostra (+)

Desonestidade (*)

Dinamismo

econômico (**)

Mediana

Média

Mediana

Média

60 nações mais dinâmicas

5.6

18.1

0.6

0.8

60 nações menos dinâmicas

9.1

23.8

-0.8

-1.2

Brasil

30.3

-0.6

(+) amostra de 121 países determinada pela disponibilidade de dados sobre crescimento de produtividade; (*) medida pelo número médio de infrações de trânsito cometidas por diplomatas em Nova Iorque quando não eram punidos pelos delitos; (**) medido pela variação média da "produtividade total dos fatores" entre 1990 e 2019. Fontes: Fisman R., Miguel E. (2007) "Corruption, Norms and Legal Enforcement: Evidence from Diplomatic Parking Tickets", Journal of Political Economy, vol. 115, n. 6 e Conference Board. Cálculos do autor.

Antes de concluir, uma ressalva importante sobre a tabela. Os dois grupos mostrados possuem variações internas suficientemente grandes para, do ponto de vista estatístico, reduzir a significância da diferença entre as médias. Há países relativamente desonestos que experimentaram crescimento de produtividade, como a Nigéria. Há também lugares relativamente honestos com baixo dinamismo econômico, como o Uruguai. A relação entre o desempenho econômico e as heranças culturais medidas como aqui é um pouco mais complexa do que a sugerida. Ou seja, posso ser acusado de ter manipulado os dados. Verdade, mas e daí?

(*) Economista