Dados mostram que Brasil pode ter pandemia controlada em setembro
No cenário base, o saldo de mortes adicionais até lá será de 235 mil e, no cenário alternativo, de “apenas” 175 mil
Paula Barra
Publicado em 25 de abril de 2021 às 19h17.
Última atualização em 25 de abril de 2021 às 20h43.
O consenso entre os economistas é que haverá retomada expressiva da atividade produtiva mundial a partir do segundo semestre. Esse cenário está apoiado na premissa de que o avanço da imunização das populações permitirá a abertura das economias. Há riscos, é claro, e um dos principais é a possibilidade de surgimento de variedades resistentes do vírus. Até o presente momento, no entanto, a vacinação parece estar funcionando.
Para começar, Israel, que é a nação mais avançada nessa frente, tem registrado queda consistente do número de mortes desde o final de janeiro, quando o país havia aplicado ao menos uma dose de vacina em cerca de um terço da população. O Financial Times publicou no último dia 21 de abril uma matéria explorando os casos de Reino Unido, França, Estados Unidos e Chile. Em todos é possível observar reduções significativas de casos, internações em UTI e mortes nos segmentos prioritários na fila da imunização – idosos, profissionais de saúde etc.
Uma inspeção preliminar dos dados de uma gama maior de países corrobora as evidências dos que saíram na frente. A figura abaixo, com informações coletadas da base de dados “Our World in Data” atualizadas até o dia 22 de abril, revela uma divergência marcante entre as trajetórias de mortalidade dos países mais e menos avançados na vacinação.
O grupo azul é relativamente homogêneo e composto de 39 nações ricas (com renda por habitante 3 vezes maior que o restante). O grupo laranja é mais heterogêneo, com 81 nações. Fazem parte dele (i) países ricos que optaram por atrasar a vacinação porque tinham a pandemia bem controlada, como Austrália e Japão; (ii) países pobres que produzem informações de má qualidade e que, além de não terem começado a vacinação em massa, subestimam grosseiramente os números de casos e de mortes e; (iii) países que atrasaram a vacinação simplesmente porque foram incompetentes (descartando a hipótese de crueldade).
Para verificar a robustez do sinal sugerido pela segmentação da figura, que é evidentemente arbitrária, é preciso rodar uma tralha estatística. Empreguei o mesmo método usado para apurar a relação entre mobilidade e PIB (ver coluna publicada no final de fevereiro). A ideia agora é investigar os padrões que ligam vacinação e mortes, considerando os efeitos da mobilidade. A amostra inclui os 61 países que haviam aplicado ao menos uma dose de vacina em 2% ou mais da população até o dia 31 de março. Usei dados atrasados na definição da amostra para verificar a estabilidade dos parâmetros estimados. A análise estatística confirma a eficácia das vacinas (até o dia 22 de abril) e sugere a existência dos seguintes padrões:
- As mortes evoluem de forma “inercial”, ou seja, se um país reportou muitos óbitos ontem, certamente reportará um número elevado hoje, e vice-versa;
- Há uma tendência natural e lenta de queda das mortes, provavelmente por conta da dinâmica natural da doença. É razoável imaginar que elas declinem gradualmente ao longo do tempo, pois os sobreviventes adquirem alguma imunidade, como sugeriu recentemente estudo com profissionais de saúde no Reino Unido;
- A vacinação funciona de forma não linear. Ou seja, o efeito sobre as mortes da proteção de dois cidadãos é mais do que o dobro do efeito da proteção de apenas um cidadão; ao tomar uma vacina, o sujeito protege a si e aos outros;
- No curto prazo, o efeito da vacinação é atenuado porque ela induz uma maior movimentação das pessoas; quão maior a mobilidade, menor o efeito imediato das vacinas; com o passar do tempo, o efeito não linear da vacinação predomina;
- A mobilidade também reage à vacinação e às mortes, mas linearmente;
- Dois países no mesmo estágio de vacinação e cujas populações exibem a mesma mobilidade, registram tipicamente mortalidades distintas. Isso se dá por diferenças na qualidade dos dados reportados e, principalmente, pelo efeito conjunto de fatores não considerados explicitamente na modelagem como qualidade da infraestrutura de saúde, perfis demográficos, competência dos governos, traços culturais etc.;
- O impacto desses fatores é considerado implicitamente – o modelo ajusta o patamar médio de mortes de cada país separadamente. Por exemplo, digamos que os países A e B sejam iguais em termos de vacinação e mobilidade, mas A exibe um número de mortes médio maior do que B. O modelo permite verificar a verossimilhança da hipótese de que a vacinação e a mobilidade têm impacto igual sobre as mortes de A e B, levando em conta a influência dos “efeitos fixos” que fazem com que os pontos de partida sejam distintos.
Os parâmetros são estimados com precisão e o sistema de equações, apesar de muito simples e parcimonioso, descreve adequadamente a dinâmica das mortes (e da mobilidade) de uma amostra expressiva de países. O exercício deve ser tratado como uma descrição aproximada da história das mortes até o dia 22 de abril, com a finalidade de atestar a eficácia da vacinação e apoiar o desenho de cenários (se estivermos dispostos a aceitar que o passado serve de guia para o futuro). Trata-se de um trabalho de economistas, preocupados em chutar o que vem pela frente. Aguardo um exercício feito por quem seja do ramo, mas enquanto isso temos que caçar com gatos.
A figura abaixo mostra alguns resultados para o caso brasileiro. A linha sólida laranja representa o cenário de vacinação no Brasil considerado mais provável por minha colega de trabalho, a economista Thaís Zara, que tem acompanhado obsessivamente o noticiário sobre a provável disponibilidade de vacinas nos próximos meses. Ela admite que o ritmo de aplicação partirá do intervalo atual entre 700 e 800 mil doses diárias e subirá gradualmente para 1,8 milhão de doses na metade do ano. Trata-se de cenário relativamente conservador quando se considera a infraestrutura de vacinação do país.
Se os parâmetros que descrevem bem a experiência de 61 países continuarem válidos nos próximos meses (uma hipótese forte), o número de mortes por milhão de habitantes atingirá o pico em meados de maio e a partir daí começará a cair consistentemente até o final de agosto (linha sólida azul). As linhas pontilhadas referem-se a um cenário alternativo de vacinação mais acelerada, com incremento diário três vezes mais rápido do que o do cenário base.
Nesse caso, o Brasil atingiria a cobertura atual do Chile no final de maio. Trata-se de cenário otimista, mas plenamente factível se a pandemia tivesse sido bem gerida desde o início. Apresento-o para que o leitor tenha ideia do tamanho dos efeitos estimados, pois, se a gestão tivesse sido boa não teríamos chegado à situação dramática em que nos encontramos hoje. De qualquer forma, o cabo da boa esperança seria dobrado na mesma época do que no cenário base, porém com declínio de mortes mais acentuado, dado o efeito não linear da vacinação.
No cenário base, o saldo de mortes adicionais até o controle efetivo da pandemia será de 235 mil e, no cenário alternativo, de “apenas” 175 mil. A diferença é expressiva e ilustra o custo enorme do atraso, mas sugere que um estrago monumental já está contratado (o que nessa altura é o óbvio ululante). Corroborando as previsões mais pessimistas que saíram de um artigo que publiquei em maio do ano passado, quando descrevi a “aritmética desagradável” da pandemia, caminhamos para superar a marca nefasta de meio milhão de cadáveres – sem que esse custo brutal tenha trazido benefício econômico.
É interessante constatar que as conclusões não mudam expressivamente caso os parâmetros tivessem sido estimados com os dados disponíveis apenas até março. Isso não prova que as coisas continuarão estáveis no futuro, mas serve para adicionar um grãozinho de confiabilidade ao exercício. Se nada mudar, a boa notícia é que o fim do martírio pode estar relativamente próximo. A má é que o custo aos brasileiros será muito maior do que o inevitável – conforme escrevi nas duas últimas colunas, nosso escore na métrica BOZO é um dos piores do planeta.
O consenso entre os economistas é que haverá retomada expressiva da atividade produtiva mundial a partir do segundo semestre. Esse cenário está apoiado na premissa de que o avanço da imunização das populações permitirá a abertura das economias. Há riscos, é claro, e um dos principais é a possibilidade de surgimento de variedades resistentes do vírus. Até o presente momento, no entanto, a vacinação parece estar funcionando.
Para começar, Israel, que é a nação mais avançada nessa frente, tem registrado queda consistente do número de mortes desde o final de janeiro, quando o país havia aplicado ao menos uma dose de vacina em cerca de um terço da população. O Financial Times publicou no último dia 21 de abril uma matéria explorando os casos de Reino Unido, França, Estados Unidos e Chile. Em todos é possível observar reduções significativas de casos, internações em UTI e mortes nos segmentos prioritários na fila da imunização – idosos, profissionais de saúde etc.
Uma inspeção preliminar dos dados de uma gama maior de países corrobora as evidências dos que saíram na frente. A figura abaixo, com informações coletadas da base de dados “Our World in Data” atualizadas até o dia 22 de abril, revela uma divergência marcante entre as trajetórias de mortalidade dos países mais e menos avançados na vacinação.
O grupo azul é relativamente homogêneo e composto de 39 nações ricas (com renda por habitante 3 vezes maior que o restante). O grupo laranja é mais heterogêneo, com 81 nações. Fazem parte dele (i) países ricos que optaram por atrasar a vacinação porque tinham a pandemia bem controlada, como Austrália e Japão; (ii) países pobres que produzem informações de má qualidade e que, além de não terem começado a vacinação em massa, subestimam grosseiramente os números de casos e de mortes e; (iii) países que atrasaram a vacinação simplesmente porque foram incompetentes (descartando a hipótese de crueldade).
Para verificar a robustez do sinal sugerido pela segmentação da figura, que é evidentemente arbitrária, é preciso rodar uma tralha estatística. Empreguei o mesmo método usado para apurar a relação entre mobilidade e PIB (ver coluna publicada no final de fevereiro). A ideia agora é investigar os padrões que ligam vacinação e mortes, considerando os efeitos da mobilidade. A amostra inclui os 61 países que haviam aplicado ao menos uma dose de vacina em 2% ou mais da população até o dia 31 de março. Usei dados atrasados na definição da amostra para verificar a estabilidade dos parâmetros estimados. A análise estatística confirma a eficácia das vacinas (até o dia 22 de abril) e sugere a existência dos seguintes padrões:
- As mortes evoluem de forma “inercial”, ou seja, se um país reportou muitos óbitos ontem, certamente reportará um número elevado hoje, e vice-versa;
- Há uma tendência natural e lenta de queda das mortes, provavelmente por conta da dinâmica natural da doença. É razoável imaginar que elas declinem gradualmente ao longo do tempo, pois os sobreviventes adquirem alguma imunidade, como sugeriu recentemente estudo com profissionais de saúde no Reino Unido;
- A vacinação funciona de forma não linear. Ou seja, o efeito sobre as mortes da proteção de dois cidadãos é mais do que o dobro do efeito da proteção de apenas um cidadão; ao tomar uma vacina, o sujeito protege a si e aos outros;
- No curto prazo, o efeito da vacinação é atenuado porque ela induz uma maior movimentação das pessoas; quão maior a mobilidade, menor o efeito imediato das vacinas; com o passar do tempo, o efeito não linear da vacinação predomina;
- A mobilidade também reage à vacinação e às mortes, mas linearmente;
- Dois países no mesmo estágio de vacinação e cujas populações exibem a mesma mobilidade, registram tipicamente mortalidades distintas. Isso se dá por diferenças na qualidade dos dados reportados e, principalmente, pelo efeito conjunto de fatores não considerados explicitamente na modelagem como qualidade da infraestrutura de saúde, perfis demográficos, competência dos governos, traços culturais etc.;
- O impacto desses fatores é considerado implicitamente – o modelo ajusta o patamar médio de mortes de cada país separadamente. Por exemplo, digamos que os países A e B sejam iguais em termos de vacinação e mobilidade, mas A exibe um número de mortes médio maior do que B. O modelo permite verificar a verossimilhança da hipótese de que a vacinação e a mobilidade têm impacto igual sobre as mortes de A e B, levando em conta a influência dos “efeitos fixos” que fazem com que os pontos de partida sejam distintos.
Os parâmetros são estimados com precisão e o sistema de equações, apesar de muito simples e parcimonioso, descreve adequadamente a dinâmica das mortes (e da mobilidade) de uma amostra expressiva de países. O exercício deve ser tratado como uma descrição aproximada da história das mortes até o dia 22 de abril, com a finalidade de atestar a eficácia da vacinação e apoiar o desenho de cenários (se estivermos dispostos a aceitar que o passado serve de guia para o futuro). Trata-se de um trabalho de economistas, preocupados em chutar o que vem pela frente. Aguardo um exercício feito por quem seja do ramo, mas enquanto isso temos que caçar com gatos.
A figura abaixo mostra alguns resultados para o caso brasileiro. A linha sólida laranja representa o cenário de vacinação no Brasil considerado mais provável por minha colega de trabalho, a economista Thaís Zara, que tem acompanhado obsessivamente o noticiário sobre a provável disponibilidade de vacinas nos próximos meses. Ela admite que o ritmo de aplicação partirá do intervalo atual entre 700 e 800 mil doses diárias e subirá gradualmente para 1,8 milhão de doses na metade do ano. Trata-se de cenário relativamente conservador quando se considera a infraestrutura de vacinação do país.
Se os parâmetros que descrevem bem a experiência de 61 países continuarem válidos nos próximos meses (uma hipótese forte), o número de mortes por milhão de habitantes atingirá o pico em meados de maio e a partir daí começará a cair consistentemente até o final de agosto (linha sólida azul). As linhas pontilhadas referem-se a um cenário alternativo de vacinação mais acelerada, com incremento diário três vezes mais rápido do que o do cenário base.
Nesse caso, o Brasil atingiria a cobertura atual do Chile no final de maio. Trata-se de cenário otimista, mas plenamente factível se a pandemia tivesse sido bem gerida desde o início. Apresento-o para que o leitor tenha ideia do tamanho dos efeitos estimados, pois, se a gestão tivesse sido boa não teríamos chegado à situação dramática em que nos encontramos hoje. De qualquer forma, o cabo da boa esperança seria dobrado na mesma época do que no cenário base, porém com declínio de mortes mais acentuado, dado o efeito não linear da vacinação.
No cenário base, o saldo de mortes adicionais até o controle efetivo da pandemia será de 235 mil e, no cenário alternativo, de “apenas” 175 mil. A diferença é expressiva e ilustra o custo enorme do atraso, mas sugere que um estrago monumental já está contratado (o que nessa altura é o óbvio ululante). Corroborando as previsões mais pessimistas que saíram de um artigo que publiquei em maio do ano passado, quando descrevi a “aritmética desagradável” da pandemia, caminhamos para superar a marca nefasta de meio milhão de cadáveres – sem que esse custo brutal tenha trazido benefício econômico.
É interessante constatar que as conclusões não mudam expressivamente caso os parâmetros tivessem sido estimados com os dados disponíveis apenas até março. Isso não prova que as coisas continuarão estáveis no futuro, mas serve para adicionar um grãozinho de confiabilidade ao exercício. Se nada mudar, a boa notícia é que o fim do martírio pode estar relativamente próximo. A má é que o custo aos brasileiros será muito maior do que o inevitável – conforme escrevi nas duas últimas colunas, nosso escore na métrica BOZO é um dos piores do planeta.