Aritmética epidemiológica desagradável: o Brasil pode ter 15 mi de casos
Há subestimativas razoáveis de mortos e de confirmados com o coronavírus, mas estudo feito na Itália dá pistas do tamanho da tragédia no Brasil
Publicado em 25 de maio de 2020 às, 09h25.
Há incógnitas epidemiológicas decisivas para o timing, a velocidade e a consistência da recuperação econômica. A principal diz respeito à chance de que os governos sejam obrigados a impor rodadas adicionais de restrições de contato social que, mesmo que sejam mais leves do que as atuais, cairão como uma ducha de água fria sobre a confiança dos agentes. Os efeitos negativos sobre a economia ampliariam os dilemas criados pelo choque inicial, comprometendo o perfil da retomada que, vista de hoje, está longe de ser vibrante.
Avaliar a probabilidade de uma recaída seria menos complicado se tivéssemos uma boa ideia da prevalência da COVID-19 no mundo – quantas pessoas tiveram contato com o vírus e que estariam imunes. O diabo é que, mesmo com o aumento expressivo da testagem, é problemático inferir essa taxa a partir dos casos reportados. Para começar, os testes são sujeitos a erros. Se a presença real de anticorpos for pequena, a chance de uma pesquisa de prevalência esclarecer pouco ou nada pode ser grande. Escrevi sobre essa armadilha estatística em uma coluna publicada aqui.
Além disso, os testes tendem a ser feitos em indivíduos que exibem sintomas – esse problema está sendo paulatinamente sanado, mas ainda existe. O fato de a doença ser assintomática ou leve na vasta maioria das vezes, aliado à capacidade restrita de aplicar testes em massa, torna os dados oficiais bastante enviesados, especialmente os referentes ao número de casos. Por essas razões, o total verdadeiro de pessoas expostas à doença é muito maior do que os atuais 5 milhões contabilizados. A taxa de letalidade do vírus é, portanto, bem menor do que aparenta.
Outra incógnita epidemiológica importante para a calibração de cenários é a proporção de infectados necessária para garantir a estabilidade da doença na ausência de uma vacina. Na medida em que a COVID-19 se dissemina, o vírus encontra dificuldade crescente de se espalhar, pois a população susceptível cai. Existe uma proporção mágica de estabilização, a partir da qual se obtém a chamada “imunidade de rebanho”. Ela equivale a 1 menos o inverso da taxa básica de reprodução do vírus que, por sua vez, é o número médio de infectados por um indivíduo doente em contato com uma população susceptível – conhecido por R0.
Com a incerteza atual, seria ótimo se pudéssemos estimar decentemente ao menos esses parâmetros básicos para pensar no cenário econômico. Jogando na defesa, gosto de uma estratégia baseada em dois critérios. Primeiro, fazer inferências que partam de descrições da evolução da pandemia menos sujeitas a erros. Segundo, combinar o retrato encontrado com parâmetros da COVID-19 próximos dos verdadeiros. Tendo a desconfiar um pouco de simulações baseadas em modelos epidemiológicos alimentados com dados sabidamente enviesados, especialmente quando feitas por quem não é do ramo. Como o fenômeno se desdobra exponencialmente, só os profissionais têm a finesse necessária para calibrar de forma crítica as premissas. Pequenos desvios na partida podem gerar resultados muito distorcidos.
Uma conta de padaria promissora, mais apropriada a economistas travestidos de epidemiologistas, é misturar avaliações bem calibradas da taxa real de letalidade do vírus por faixa etária com os números reportados de mortes. É verdade que os óbitos são também, provavelmente, subestimados, mas o problema tende a ser bem menor do que o que prejudica o número total de casos. Esse pode ser um caminho relativamente seguro para inferir de forma grosseira a ordem de grandeza da prevalência da COVID-19, permitindo avaliar com um pouco mais de firmeza o cenário econômico.
Os economistas Gianluca Rinaldi, de Harvard, e Matteo Paradisi, do Instituto Einaudi de Economia e Finanças, baseado em Roma, publicaram no último dia 14 estimativas para as taxas reais de letalidade do SARS-Cov-2, analisando o primeiro surto que assolou a Itália no início do ano. Por ser obra de economistas, sei avaliar o que foi feito. Ressalvo que o estudo não passou por revisão cuidadosa de pares, mas, dito isso, aplica-se o que a meu ver é o método natural para chegar a uma estimativa boa dos parâmetros populacionais – no final do dia, trata-se um problema de extração do sinal arroz com feijão. Quando tudo tiver passado no futuro, estimaremos o número real de fatalidades usando em escala global algo parecido ao que eles fizeram.
A dupla partiu de estatísticas censitárias de dez cidades da Lombardia que sofreram a primeira onda de COVID-19, totalizando uma população de 50 mil pessoas. O método, grosso modo, usa a variabilidade dos óbitos num período recente anterior à doença para identificar o excedente durante a crise que é, naturalmente, atribuído à epidemia. Os pontos fortes do trabalho de Rinaldi e Paradisi são (i) contornar os problemas conhecidos dos dados oficialmente reportados sobre casos e mortes, além de vieses de amostragem e problemas com testes e (ii) basear-se em populações que passaram por um ciclo completo de contágio (as cidades foram “trancadas” em 20 de fevereiro e, na primeira semana de abril, o número de mortes havia retornado à normalidade).
O pulo do gato metodológico vem do fato de que, se houver confiança de que uma fatia relevante das populações tenha sido infectada, é possível chegar a uma estimativa fidedigna da taxa de letalidade associada à COVID-19, bastando que o número total de mortes seja medido adequadamente. Essas condições são provavelmente atendidas no caso da Lombardia, a julgar, por exemplo, pela proporção elevada de doadores de sangue assintomáticos que apresentaram anticorpos. O resultado principal, resistente a mudanças de premissas necessárias para colocar o trem estatístico em movimento, é que a taxa de mortalidade de pessoas com menos de 60 anos é baixa, de 0,05%, e para as pessoas com mais de 60 anos é maior, de 4,2%. Respectivamente, esses parâmetros são menores do que 0,17% e 5,8% com 95% de probabilidade. Note-se que são taxas muito menores que as sugeridas pelas contagens de casos e mortes.
Um detalhe importante do estudo que tem que ser levado em consideração na hora de fazer extrapolações é que as taxas de mortalidade foram obtidas em localidades submetidas a “lockdowns” e cujo sistema de saúde (de excelente qualidade) operou normalmente, sem saturação, durante todo o ciclo. É evidente que se a epidemia tivesse saído do controle, gente que não deveria morrer acabaria morrendo, elevando-se a a proporção de óbitos. Feita a observação, a taxa total de infecção média obtida implicitamente pela mortalidade real estimada por Rinaldi e Paradisi foi de 46,6%, considerando a população total das cidades estudadas, número consistente com testes de prevalência feitos a posteriori.
Médicos do Imperial College, matemáticos da Universidade Queen Mary e estatísticos da Universidade de Oxford publicaram há algumas semanas uma meta-análise que integrou estimativas da taxa de fatalidade da COVID-19 feitas em vários países com métodos e bases de dados variados, até o início de março. O resultado médio encontrado pelos italianos é maior para a faixa etária abaixo de 60 anos e menor para a faixa etária acima de 60 anos. As diferenças, no entanto, não são estatisticamente significativas quando se leva em conta os intervalos de confiança dos dois estudos. Como sou capaz de entender os detalhes do primeiro trabalho, sinto-me relativamente confortável em usá-lo para fazer inferências para o Brasil.
É possível obter uma estimativa rudimentar da taxa de prevalência da COVID-19 aqui cruzando o número de mortos por faixa etária com os parâmetros supostamente verdadeiros da doença estimados na Itália. A distribuição de mortes por idades é conhecida preliminarmente até a vigésima semana epidemiológica. Adoto a suposição de estabilidade da distribuição até o último dia 21, quando o governo reportou 20.047 óbitos. Se os parâmetros médios de mortalidade italianos valerem aqui, a prevalência implícita seria de 7,5%, ou 15,7 milhões de infectados. Trata-se de número muito maior que os cerca de 300 mil oficialmente contabilizados.
É simples entender. Na vigésima semana epidemiológica, cerca de 8,5% dos mortos tinham entre 40 e 50 anos. Mantida a proporção, isso corresponderia a 1.700 mortes nessa faixa no último dia 21. Na Itália, a taxa estimada de mortalidade entre 40 e 50 anos foi de apenas 0,04% – ou seja, uma morte a cada 2500 casos. Se o mesmo parâmetro valesse aqui, seria preciso ter 4,3 milhões de doentes para que, em média, 1.700 morressem. É lógico que as coisas não funcionam exatamente assim, mas de duas uma: ou a ordem de grandeza é realmente essa, ou é necessário encontrar razões para supor que a mortalidade seja maior no Brasil. Fiz a mesma conta para todas as faixas etárias, levando em consideração portanto as características demográficas do país.
O estudo italiano usa a variabilidade dos dados da Lombardia para fornecer intervalos de confiança que contenham o parâmetro populacional verdadeiro com 95% de probabilidade (aceitas evidentemente as demais premissas do estudo). Admitindo que a mortalidade seja mesmo maior no Brasil por alguma razão, talvez porque a qualidade do sistema de saúde seja menor, repeti o exercício usando os limites superiores do intervalo de confiança encontrados para a mortalidade na Itália. Nesse caso, a taxa de prevalência aqui seria bem mais baixa, de 1,9%, com cerca de 4 milhões de infectados.
Como se sabe, no entanto, há também uma subestimativa razoável no número total de mortes por COVID-19. O Ministério da Saúde reporta dados de óbitos por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) por COVID-19, influenza, outros vírus, causas não especificadas e casos ainda em investigação. Supondo que a proporção de COVID-19 nesses casos ainda abertos seja a mesma da observada nos demais, conservadoramente podemos estimar que no dia 21 havia 22,6 mil mortes.
Usando os parâmetros italianos, médio e máximo, a prevalência estaria então entre 2,2% (4,5 milhões de casos) e 8,4% (17,7 milhões de casos). São números que assustam, mas não deveriam causar espanto quando se leva em conta o fato de que a vasta maioria dos casos é assintomática, o sistema de saúde está ainda funcionando razoavelmente bem, a taxa de mortalidade tende a ser muito baixa para quem tem menos de 60 anos e os brasileiros estão respeitando cada vez menos as orientações de distanciamento.
Esses resultados conversam mais ou menos com os que estão saindo nas pesquisas de prevalência feitas no mundo. Elas usam abordagens bem distintas no tocante ao período de coleta, amostragem, abrangência, método de testagem, entre outras variáveis. No momento em que redigi esse texto havia 82 pesquisas feitas em 24 países (não necessariamente com abrangência nacional). Há muita variabilidade entre os resultados e algumas sondagens foram bombardeadas por apresentarem falhas metodológicas notórias.
Para não ter que fazer escolhas, classifiquei todos os resultados em quatro quinzenas, da última de março à primeira de maio (às vezes tendo que arbitrar entre quinzenas vizinhas). A evolução da taxa de prevalência mediana entre as pesquisas apresentou clara tendência de alta, passando de 1,7% no final de março, para, 3,8%, 4,3% e 7,0% nos períodos subsequentes, ilustrando a rápida evolução da doença no mundo. Diante dessa trajetória, parece plausível que algo entre 2% e 8% de nossos conterrâneos tenham já contraído o vírus.
O problema é que, mesmo que a prevalência estivesse próxima do limite superior, estaríamos ainda longe da imunização de rebanho. Tenho lido que a taxa básica de reprodução do vírus está contida em faixa que vai de 2,2 a 2,7 (sendo que há estimativas de que ela poderia ser bem maior). Supondo 2,5, a taxa de prevalência que geraria imunidade seria de 60%. Ou seja, a doença teria que se espalhar bem mais para podermos relaxar, a menos do surgimento de uma vacina, é claro. Isso é razão para ficarmos preocupados, e muito.
Imagine-se, por um instante, que deixássemos a coisa correr solta. Se, por milagre, conseguíssemos ainda assim manter a taxa de mortalidade igual à média italiana, o processo se encerraria no Brasil com um total de 160 mil vidas ceifadas (ou 630 mil se a taxa de mortalidade correspondesse ao intervalo superior). A ideia de “achatar a curva” é justamente garantir que esse processo ocorra de forma organizada, na eventualidade de a vacina demorar a aparecer.
Estamos entre a cruz e a espada. Se a taxa de mortalidade aqui replicar a média italiana, isso significa que muitas pessoas estariam já imunizadas, mais de 15 milhões. Isso seria um aspecto relativamente positivo da tragédia, mas razão também para ficar preocupado, pois seria indicativo de que a fogueira estaria avançando muito mais rapidamente do que imaginamos e com muito combustível a queimar. O risco de descontrole seria elevado, sobretudo quando se leva em conta a adesão cadente às medidas de distanciamento.
Se, por outro lado, a mortalidade aqui for bem maior do que na Itália, a prevalência estaria ainda muito distante da que estabilizaria a propagação do vírus. Então, a aceleração do processo – que estaria agora ainda em estágios iniciais, em média – seria acompanhada de mortalidade assustadora, mesmo que não houvesse colapso do sistema, algo que dificilmente deixaria de ocorrer. Em outras palavras, o quadro dramático atualmente mostrado seria apenas a pontinha de um iceberg monstruoso.
Provavelmente a verdade está no meio do caminho. Mais do que nunca é preciso fazer o possível para não perder o controle porque, se isso ocorrer, além da recessão enorme que já está contratada, teremos uma recuperação lenta e inconsistente, sem falar da calamidade humanitária. Não adianta trocar de ministro a cada semana. A aritmética desagradável está aí.