A corrupção aumentou ou sempre foi assim?
O Brasil é um país em que o Estado vem crescendo e hoje tem o tamanho do das nações mais desenvolvidas, mas sem as instituições que garantem mais controle onde se rouba menos
Da Redação
Publicado em 11 de dezembro de 2017 às 12h07.
Uma leitura casual dos periódicos leva a crer que nunca se roubou tanto no país. Não passa um mês sem que sejamos brindados com uma história escabrosa envolvendo facínoras dos altos escalões, de todos os poderes, desde que Waldomiro Diniz foi flagrado extorquindo um bicheiro (!) há quase 15 anos. O atual presidente foi surpreendido em conversas traiçoeiras com gângsteres. O favorito a ser o próximo morador do Alvorada segundo as pesquisas pode ser preso a qualquer momento. O ex-presidente da câmara encontra-se encarcerado e o ex-presidente do senado responde a mais de 10 inquéritos no STF. Cerca de 50% dos congressistas estão em situação parecida – um deles chegou a votar da cadeia. A procuradora da República não acredita na isenção de um ministro do supremo cuja prioridade é cuidar do caso de um compadre condenado pela 2ª instância e que não está nem aí para a justiça. Diante desse festival, partir do princípio que um político ou autoridade é vigarista até que surjam evidências em contrário parece ser o algoritmo que minimiza erros na ausência de mais informações.
É assim desde Cabral (o navegador) ou o país foi paulatinamente afundando na lama?
Nem sempre aquilo que é intuitivo resiste a uma análise mais aprofundada das evidências – em economia isso é useiro e vezeiro. O empresário Ricardo Semler, por exemplo, publicou em 2014 um artigo na Folha com o sugestivo título “nunca se roubou tão pouco”. Sem citar a fonte, ele reportou informações dando conta de que a gatunagem teria caído de cerca de 5% do PIB há algumas décadas para 0,8% do PIB na atualidade. Ou seja, a despeito da infestação de ratazanas no topo dos três poderes, o Brasil estaria caminhando a passos largos para se tornar um primor de honestidade. Ainda que pouco óbvia, tal conjectura não chega a ser absurda em princípio. Por exemplo, é justo considerar que o grosso das maracutaias ocorra em torno dos investimentos governamentais. Se for assim e se a fatia do pixuleco tiver se mantido constante ao longo da história, Semler pode até estar certo. De fato, enquanto o setor público brasileiro chegou a investir 10% do PIB no final dos anos 70, atualmente a fatia não chega aos 4%.
É muito difícil, no entanto, avaliar quantitativamente o nível de corrupção de forma objetiva, a partir de informações sobre as propinas pagas, pelo número de condenações, ou qualquer alternativa. Dados como estes refletem mais de perto a capacidade da mídia de desencavar escândalos, a eficácia do sistema legal ou a realidade em casos isolados. O fato de a corrupção ocorrer no subterrâneo dificulta a tarefa de aquilatar concretamente a atividade de forma abrangente. Dessa forma, o método preferido por quem estuda o assunto é compilar dados relativos à percepção de corrupção de agentes em posição de oferecer opiniões balizadas sobre o tema. O juízo de Semler com base em sua experiência é a de que a corrupção teria caído. A ideia é pegar a percepção de mais gente como ele e tirar uma média.
Há indicadores para todos os gostos, compilados a partir de (i) pesquisas com a população, como a Gallup World Poll, (ii) avaliações de ONGs, como a Freedom House, (iii) pesquisas junto a empresas, como o Global Competitiveness Yearbook, (iv) considerações de agências de risco, como as do International Country Risk Guide e (v) pareceres de governos e agências multilaterais, como o do Asian Development Bank. Diante da riqueza de fontes e indicadores, o procedimento usual é combinar as informações em um único índice sintético.
Naturalmente, há mais de uma receita para escolher e misturar os ingredientes. Os dois coquetéis mais conhecidos e utilizados são: (i) o Índice de Corrupção Percebida da Transparency International (CPI) e (ii) o componente que se refere ao “controle da corrupção” do Worldwide Governance Indicators, do Banco Mundial (WGI).
O CPI e o WGI têm deficiências. Para começar, ambos começam apenas em meados dos anos 90 e os valores iniciais provavelmente são enviesados. A maior limitação do CPI é a impossibilidade de usá-lo para comparações ao longo do tempo – ele é construído a partir da ordem de cada país em cada critério e isso transforma os números em fotografias sem relação com o passado. Dá para dizer que o país X é mais ou menos corrupto que o Y, mas não dá para saber se X está hoje melhor ou pior do que ontem. Sendo assim, o CPI é inútil para responder a questão colocada no início desse texto. Além disso, ele parte desnecessariamente e sem uma razão aparente de um subconjunto limitado dos indicadores disponíveis e não penaliza aqueles estatisticamente e/ou conceitualmente menos confiáveis – o que seria muito simples.
O WGI pode ser usado para comparações temporais e é construído a partir de metodologia mais cuidadosa e menos discriminatória na escolha e ponderação das variáveis. No entanto, seus ingredientes passam por tratamentos arbitrários, como imputações e agregações que não precisariam ser feitas. Além disso, curiosamente, o WGI incorpora também indicadores referentes à percepção quanto à eficácia de medidas anticorrupção. Essa escolha mistura alhos com bugalhos, pois um país honesto não precisa de aparato anticorrupção, por exemplo. A deficiência mais impactante do WGI na prática é ignorar, na etapa de estimação, a persistência histórica da corrupção, uma das características essenciais dessa praga (determinada por normas e valores sociais que não mudam da noite para o dia). Não é trivial, mas dá mostrar que ao omitir essa informação na estimação, o WGI perde precisão estatística de forma considerável – além de resultar um índice com ciclos que provavelmente são ruídos não relacionados com a corrupção. Por fim, de 1996 a 2002 o WGI está disponível apenas a cada dois anos.
Para a alegria geral, os problemas do WGI foram sanados pelos esforços do jovem Samuel Standaert. Tive acesso a seu trabalho minucioso na semana passada, mas ele foi publicado em 2014 no Journal of Comparative Economics. O indicador de Standaert, batizado de Bayesian Corruption Indicator (BCI), sintetiza as 69 variáveis referentes à percepção de corrupção de agentes variados que estão disponíveis, de 18 fontes distintas, sem imputações ou agregações, cobrindo 210 países. O BCI começa em 1984 (a escassez relativa de dados torna a precisão menor no início da amostra).
O BCI mostra que a corrupção aumentou continuamente de 1984 a 2010 no Brasil. Pareceu diminuir um pouco em 2011 e 2012, mas voltou a crescer com força, atingindo o pico em 2014 (último ano para o qual o BCI está disponível). Como o método de Standaert emprega de forma eficiente as informações disponíveis, é possível aferir mais precisamente as mudanças dos índices que podem ser consideradas significativas. Dentro da amostra de mais de 200 países e regiões, apenas 24 apresentaram aumento relevante na corrupção percebida entre 2000 e 2010. O Brasil está entre os premiados. Se servir de consolo, estamos em boa companhia. Espanha, Estados Unidos e Itália são também exemplos de nações que se tornaram mais sujas no período. Argentina e Venezuela fazem parte do time, naturalmente. Ressalvando que a precisão do WGI é menor, ele registra aumento da corrupção no Brasil também em 2015 e 2016.
A partir dos desvios-padrão calculados, Standaert define a cada ano grupos de países homogêneos em termos de corrupção, significativamente diferentes dos que estão nos demais grupos, mas estatisticamente semelhantes entre si. Em 2014, a precisão do cálculo foi suficiente para identificar 14 grupos distintos. No primeiro estão apenas quatro nações: Singapura, Nova Zelândia, Finlândia e Liechtenstein. Alemanha, Japão e Reino Unido estão no terceiro. Chile e Uruguai no quarto. França no quinto. Estados Unidos no sexto. Nós estamos no décimo primeiro, ao lado de 25 nações como Bolívia, Colômbia, México e Peru. Somos estatisticamente menos corruptos do que 47 países. Em contrapartida, há 137 nações expressivamente menos pervertidas do que nós. Para piorar, há indícios de que a patologia está evoluindo negativamente.
Muitas vezes a intuição prega peças. Infelizmente não é o caso quando o tema é a rapina do Estado. As informações disponíveis mostram que o Brasil é um lugar onde a ladroagem come solta e, ao contrário do que escreveu Semler, o roubo vem aumentando pelo menos desde meados dos anos 80. Dá para dizer que nunca se roubou tanto quanto atualmente. A pegadinha é que a corrupção não tem como suporte apenas o investimento público, frente que provavelmente é a mais visível ao empresário e, indubitavelmente, fonte dos grandes escândalos. A corrupção prospera em vários terrenos. Está baseada no universo dos gastos públicos, incluindo compras e transferências. Como se sabe, o Brasil é um país em que o Estado vem crescendo e hoje tem o tamanho do das nações mais desenvolvidas, mas sem as instituições que garantem mais controle onde se rouba menos. A ladroeira também germina no excesso de regulações, no cipoal tributário, nas regras contraditórias entre si, na morosidade da justiça e por aí vai.
Uma leitura casual dos periódicos leva a crer que nunca se roubou tanto no país. Não passa um mês sem que sejamos brindados com uma história escabrosa envolvendo facínoras dos altos escalões, de todos os poderes, desde que Waldomiro Diniz foi flagrado extorquindo um bicheiro (!) há quase 15 anos. O atual presidente foi surpreendido em conversas traiçoeiras com gângsteres. O favorito a ser o próximo morador do Alvorada segundo as pesquisas pode ser preso a qualquer momento. O ex-presidente da câmara encontra-se encarcerado e o ex-presidente do senado responde a mais de 10 inquéritos no STF. Cerca de 50% dos congressistas estão em situação parecida – um deles chegou a votar da cadeia. A procuradora da República não acredita na isenção de um ministro do supremo cuja prioridade é cuidar do caso de um compadre condenado pela 2ª instância e que não está nem aí para a justiça. Diante desse festival, partir do princípio que um político ou autoridade é vigarista até que surjam evidências em contrário parece ser o algoritmo que minimiza erros na ausência de mais informações.
É assim desde Cabral (o navegador) ou o país foi paulatinamente afundando na lama?
Nem sempre aquilo que é intuitivo resiste a uma análise mais aprofundada das evidências – em economia isso é useiro e vezeiro. O empresário Ricardo Semler, por exemplo, publicou em 2014 um artigo na Folha com o sugestivo título “nunca se roubou tão pouco”. Sem citar a fonte, ele reportou informações dando conta de que a gatunagem teria caído de cerca de 5% do PIB há algumas décadas para 0,8% do PIB na atualidade. Ou seja, a despeito da infestação de ratazanas no topo dos três poderes, o Brasil estaria caminhando a passos largos para se tornar um primor de honestidade. Ainda que pouco óbvia, tal conjectura não chega a ser absurda em princípio. Por exemplo, é justo considerar que o grosso das maracutaias ocorra em torno dos investimentos governamentais. Se for assim e se a fatia do pixuleco tiver se mantido constante ao longo da história, Semler pode até estar certo. De fato, enquanto o setor público brasileiro chegou a investir 10% do PIB no final dos anos 70, atualmente a fatia não chega aos 4%.
É muito difícil, no entanto, avaliar quantitativamente o nível de corrupção de forma objetiva, a partir de informações sobre as propinas pagas, pelo número de condenações, ou qualquer alternativa. Dados como estes refletem mais de perto a capacidade da mídia de desencavar escândalos, a eficácia do sistema legal ou a realidade em casos isolados. O fato de a corrupção ocorrer no subterrâneo dificulta a tarefa de aquilatar concretamente a atividade de forma abrangente. Dessa forma, o método preferido por quem estuda o assunto é compilar dados relativos à percepção de corrupção de agentes em posição de oferecer opiniões balizadas sobre o tema. O juízo de Semler com base em sua experiência é a de que a corrupção teria caído. A ideia é pegar a percepção de mais gente como ele e tirar uma média.
Há indicadores para todos os gostos, compilados a partir de (i) pesquisas com a população, como a Gallup World Poll, (ii) avaliações de ONGs, como a Freedom House, (iii) pesquisas junto a empresas, como o Global Competitiveness Yearbook, (iv) considerações de agências de risco, como as do International Country Risk Guide e (v) pareceres de governos e agências multilaterais, como o do Asian Development Bank. Diante da riqueza de fontes e indicadores, o procedimento usual é combinar as informações em um único índice sintético.
Naturalmente, há mais de uma receita para escolher e misturar os ingredientes. Os dois coquetéis mais conhecidos e utilizados são: (i) o Índice de Corrupção Percebida da Transparency International (CPI) e (ii) o componente que se refere ao “controle da corrupção” do Worldwide Governance Indicators, do Banco Mundial (WGI).
O CPI e o WGI têm deficiências. Para começar, ambos começam apenas em meados dos anos 90 e os valores iniciais provavelmente são enviesados. A maior limitação do CPI é a impossibilidade de usá-lo para comparações ao longo do tempo – ele é construído a partir da ordem de cada país em cada critério e isso transforma os números em fotografias sem relação com o passado. Dá para dizer que o país X é mais ou menos corrupto que o Y, mas não dá para saber se X está hoje melhor ou pior do que ontem. Sendo assim, o CPI é inútil para responder a questão colocada no início desse texto. Além disso, ele parte desnecessariamente e sem uma razão aparente de um subconjunto limitado dos indicadores disponíveis e não penaliza aqueles estatisticamente e/ou conceitualmente menos confiáveis – o que seria muito simples.
O WGI pode ser usado para comparações temporais e é construído a partir de metodologia mais cuidadosa e menos discriminatória na escolha e ponderação das variáveis. No entanto, seus ingredientes passam por tratamentos arbitrários, como imputações e agregações que não precisariam ser feitas. Além disso, curiosamente, o WGI incorpora também indicadores referentes à percepção quanto à eficácia de medidas anticorrupção. Essa escolha mistura alhos com bugalhos, pois um país honesto não precisa de aparato anticorrupção, por exemplo. A deficiência mais impactante do WGI na prática é ignorar, na etapa de estimação, a persistência histórica da corrupção, uma das características essenciais dessa praga (determinada por normas e valores sociais que não mudam da noite para o dia). Não é trivial, mas dá mostrar que ao omitir essa informação na estimação, o WGI perde precisão estatística de forma considerável – além de resultar um índice com ciclos que provavelmente são ruídos não relacionados com a corrupção. Por fim, de 1996 a 2002 o WGI está disponível apenas a cada dois anos.
Para a alegria geral, os problemas do WGI foram sanados pelos esforços do jovem Samuel Standaert. Tive acesso a seu trabalho minucioso na semana passada, mas ele foi publicado em 2014 no Journal of Comparative Economics. O indicador de Standaert, batizado de Bayesian Corruption Indicator (BCI), sintetiza as 69 variáveis referentes à percepção de corrupção de agentes variados que estão disponíveis, de 18 fontes distintas, sem imputações ou agregações, cobrindo 210 países. O BCI começa em 1984 (a escassez relativa de dados torna a precisão menor no início da amostra).
O BCI mostra que a corrupção aumentou continuamente de 1984 a 2010 no Brasil. Pareceu diminuir um pouco em 2011 e 2012, mas voltou a crescer com força, atingindo o pico em 2014 (último ano para o qual o BCI está disponível). Como o método de Standaert emprega de forma eficiente as informações disponíveis, é possível aferir mais precisamente as mudanças dos índices que podem ser consideradas significativas. Dentro da amostra de mais de 200 países e regiões, apenas 24 apresentaram aumento relevante na corrupção percebida entre 2000 e 2010. O Brasil está entre os premiados. Se servir de consolo, estamos em boa companhia. Espanha, Estados Unidos e Itália são também exemplos de nações que se tornaram mais sujas no período. Argentina e Venezuela fazem parte do time, naturalmente. Ressalvando que a precisão do WGI é menor, ele registra aumento da corrupção no Brasil também em 2015 e 2016.
A partir dos desvios-padrão calculados, Standaert define a cada ano grupos de países homogêneos em termos de corrupção, significativamente diferentes dos que estão nos demais grupos, mas estatisticamente semelhantes entre si. Em 2014, a precisão do cálculo foi suficiente para identificar 14 grupos distintos. No primeiro estão apenas quatro nações: Singapura, Nova Zelândia, Finlândia e Liechtenstein. Alemanha, Japão e Reino Unido estão no terceiro. Chile e Uruguai no quarto. França no quinto. Estados Unidos no sexto. Nós estamos no décimo primeiro, ao lado de 25 nações como Bolívia, Colômbia, México e Peru. Somos estatisticamente menos corruptos do que 47 países. Em contrapartida, há 137 nações expressivamente menos pervertidas do que nós. Para piorar, há indícios de que a patologia está evoluindo negativamente.
Muitas vezes a intuição prega peças. Infelizmente não é o caso quando o tema é a rapina do Estado. As informações disponíveis mostram que o Brasil é um lugar onde a ladroagem come solta e, ao contrário do que escreveu Semler, o roubo vem aumentando pelo menos desde meados dos anos 80. Dá para dizer que nunca se roubou tanto quanto atualmente. A pegadinha é que a corrupção não tem como suporte apenas o investimento público, frente que provavelmente é a mais visível ao empresário e, indubitavelmente, fonte dos grandes escândalos. A corrupção prospera em vários terrenos. Está baseada no universo dos gastos públicos, incluindo compras e transferências. Como se sabe, o Brasil é um país em que o Estado vem crescendo e hoje tem o tamanho do das nações mais desenvolvidas, mas sem as instituições que garantem mais controle onde se rouba menos. A ladroeira também germina no excesso de regulações, no cipoal tributário, nas regras contraditórias entre si, na morosidade da justiça e por aí vai.