Exame Logo

Entrevista com Domenico de Masi: o trabalho no Século XXI

No último dia 18 de agosto tive a oportunidade de ter uma ótima conversa com Domenico de Masi, o sociólogo italiano que tem seu trabalho voltado para as mudanças nas relações sociais de nossa época, a qual ele denomina de “pós-industrialismo”. Domenico de Masi ficou conhecido no Brasil especialmente por seu livro “O ócio criativo”, mas é autor de outros já traduzidos para o português, nos quais retrata a sua […] Leia mais

DR

Da Redação

Publicado em 10 de setembro de 2015 às 10h02.

Última atualização em 24 de fevereiro de 2017 às 07h55.

No último dia 18 de agosto tive a oportunidade de ter uma ótima conversa com Domenico de Masi, o sociólogo italiano que tem seu trabalho voltado para as mudanças nas relações sociais de nossa época, a qual ele denomina de “pós-industrialismo”.

Domenico de Masi ficou conhecido no Brasil especialmente por seu livro “O ócio criativo”, mas é autor de outros já traduzidos para o português, nos quais retrata a sua perspectiva sobre as mudanças que a sociedade vem passando e as que ainda terá que passar para se adaptar a essa nova era. Alguns deles são: “Desenvolvimento Sem Trabalho”, “A Emoção e a Regra”, “O Futuro do Trabalho” e “O Futuro Chegou”.

Domenico de Masi. Foto de João Lino da Silva

Neste papo de pouco mais de uma hora, conversamos sobre o futuro do trabalho, o consumo na era pós-industrial, o Brasil, e as transformações que o mundo passará para se adaptar à esta nova fase na qual a produção cultural será cada vez maior e mais importante do que a produção industrial.

Em 3 diferentes posts aqui no blog, abordarei um pouco da visão de Domenico, agrupada em 3 assuntos que foram temas da nossa conversa: 1) O trabalho no século XXI, 2) o declínio da perspectiva industrial na economia e sociedade, e 3) o consumo e o Brasil na era pós-industrial.

Neste primeiro texto irei trazer as opiniões de De Masi sobre a evolução do conceito do trabalho, e do papel que ele imagina que o trabalho ocupará nos próximos anos.

A evolução do conceito de trabalho

Domenico faz um paralelo sobre a nossa relação com o trabalho e com a orientação cristã de alguns países. Segundo ele, existe hoje uma “adoração” pelo trabalho, como se só aqueles que trabalham fossem dignos das recompensas materiais e imateriais. Com isso, o “trabalhar”, mais do que uma obrigação, é algo que é percebido como eticamente e socialmente necessário, ao ponto daquele que “não trabalha”, ou “não produz”, ser subjugado como alguém que não contribui para a sociedade e deve ser discriminado.

Domenico relaciona essa origem ao catolicismo, ao protestantismo e sobretudo ao calvinismo. Mesmo na sociedade pré-industrial já se tinha essa perspectiva dotrabalho como a possibilidade de expurgar o pecado original. E isso passa a criar, mesmo na época rural, a ascensão do conceito do trabalho como algo essencial ao ser humano. Como consequência,o ócio é subjugado apenas àqueles que não tem interesse de serem perdoados do pecado original.

Avançando em sua história, De Masi diz que o capitalismo chega com o protestantismo, principalmente com Calvino, com a teoria que nós somos premiados por Deus não quando morremos, mas sim em vida. E esse prêmio tem sua origem na virtude do trabalho. Se você não for virtuoso na sua profissão, você é um pecador. O trabalho, no capitalismo, passa a ter duas vertentes que o suportam: a religião e o consumo.Além de graça divina, o trabalho dá acesso às benesses do consumo.

Com isso, apesar da origem religiosa, a conexão entre a virtude e o trabalho se suporta pelas relações de consumo que são estabelecidas atualmente, já que aquele que tem trabalho pode ter acesso ao que o capitalismo tem de melhor – o conforto e a diversão proporcionados pelo consumo. É sob este estereótipo do passado que até hoje estamos vivendo.

O papel dos gerentes e dos cursos de gestão.

Segundo Domenico, a ideia dotrabalho como um privilégiofoi impregnada em toda a sociedade, mas ainda de maneira mais intensa nos cursos de gestão, como administração, economia, ou engenharia de produção, ou qualquer um que tem como princípio formar gestores.

Os gestores acabam propagando a cultura do “trabalhar mais é melhor”, e entendem que se há ainda trabalho a ser feito, deve-se continuar trabalhando, estendendo-se a jornada normal. Isso acontece, segundo Domenico, especialmente nos países católicos. Ele diz que um gerente na Alemanha, por exemplo, não tem nenhum problema em sair do trabalho às 5 da tarde. Mas os gerentes de países católicos como os EUA, Brasil, Espanha, Itália, acham que devem ficar até mais tarde, como uma espécie de penitência necessária para aquele que tem o privilégio do trabalho.

Mas em função dos métodos de gestão dominantes no mundo serem americanos, isso também acaba se tornando verdade para países não católicos, como a Coréia, a China e a Índia. De acordo com Domenico, “na Índia e na China o gerente não é indiano, não é chinês, não é brasileiro, ele é americano.Porque o gerente estuda no livro americano, ele estudo na ‘ Business School’ americana. Se você vai numa livraria de aeroporto são todos livros para gerentes, e de autores americanos. Os livros dos brasileiros, dos europeus, são todos copiados de livros americanos. Eno capitalismo americano o gerente é visto como a igreja católica vê um missionário, um jesuíta”.

A perspectiva de um gerente americano como um missionário é, no mínimo, intrigante. Segundo esta lógica, a expansão pelo mundo das empresas multinacionais fez se espalhar este conceito de trabalho como sendo a única atividade em que o homem é valoroso por realizar, e o trabalho que importa é aquele que leva à produção de produtos. Ou seja, é mais importante aquele que trabalha na fábrica, ou para que a fábrica produza, do que aquele que trabalha em qualquer outro ramo de atividade, como a educação, o entretenimento, ou as artes.

Desta maneira, o trabalho das fábricas, ou para a fábrica, ganhou, historicamente, uma simbologia extremamente positiva e que ainda afeta muito as relações entre os indivíduos, mesmo no século XXI e com a emergência da ideia de “economia criativa”.  Mesmo que haja uma evolução neste sentido, é possível perceber que algumas escolhas profissionais ainda são vistas como menos valiosas do que outras.

Essa perspectiva de trabalho, e a contraposição do conceito de trabalho com o conceito de diversão e ócio, ainda é realidade. Nas palavras de De Masi: “Quando falamos ‘trabalho’, isso está muito relacionado ao trabalho operário. Quando Marx escreve O Capital, Manchester era a cidade mais avançada do mundo e 97% de todos os trabalhadores eram operários. Hoje na Itália são apenas 33% de operários. O restante são analistas, ou gerentes, ou criativos. Mas ainda estamos muito baseados no trabalho operário”. Enquanto os gestores e as escolas de gestão não mudarem esta perspectiva do que de fato é “trabalho”, este conceito que vem dos anos 1930 continuará presente na simbologia da sociedade contemporânea.

O trabalho e a felicidade

O trabalho sempre esteve desassociado da felicidade. Segundo De Masi, “A felicidade começa no trabalho, mas não como felicidade, como dever,que é uma coisa diferente da felicidade. O trabalho é um dever, não é felicidade. A felicidade é o fruto do trabalho. Taylor, Ford, fazem a linha de montagem mas isso não é felicidade,me permite ganhar o dinheiro, que é o fruto do trabalho, que deve me trazer felicidade.”

A perspectiva industrial é que a felicidade era resultado do trabalho, mas diferente dele. Já na sociedade pós-industrial, este tipo de ideia está fadada a mudar, o que seria no entender de De Masi uma “grande mudança”.

A alteração do trabalho industrial para um trabalho pós-industrial, ou criativo, traz aperspectiva conjunta de trabalho e felicidade. “Um mineiro não consegue trabalhar e ao mesmo tempo ser feliz. Se o minerador é feliz trabalhando, ele é um alienado, é um louco”, diz Domenico. No entanto, um criativo pode trabalhar e ser feliz ao mesmo tempo.

Mas e as empresas como Google, Microsoft, ou outras, que colocam no ambiente de trabalho pequenas ilhas de “diversão”, como videogames, pebolim, salas de descompressão, entre outras atividades “divertidas”? É possível ser feliz nessas empresas, enquanto se trabalha?

Domenico é taxativo: “Google, Microsoft, estão no limite extremo da visão do gerente americano.É um infantilismo. Não como um fato adulto, da pessoa que se realiza (ao trabalhar), mas como um bando de crianças, com o seu pebolim. É uma ofensa à inteligência humana.Eles estão no limite da delinquência”.

Segundo De Masi, o comportamento deste tipo de empresa é limítrofe – eles operam sob a lógica do industrialismo, com as pessoas tendo que trabalhar longas horas e produzir muito, mas com a tentativa de incutir nos seus colaboradores uma visão de trabalho criativo do pós-industrialismo e, portanto, de felicidade enquanto se trabalha.

Para Domenico, estas grandes empresas devem sofrer ainda muito no futuro, em especial pela busca por mão de obra especializada e de qualidade para trabalhar dentro delas num mundo cada vez mais pautado no desenvolvimento de novas ideias, da criatividade, da pequena empresa ágil e que pode subjugar as grandes empresas.

De Masi entende que asgrandes ideias não são produzidas nas grandes empresas, mas especialmente fora delas, e cita o Facebook como exemplo, que surge dentro da Universidade, e não dentro de uma empresa. Com este tópico, começaremos nosso próximo post, na próxima semana.

No último dia 18 de agosto tive a oportunidade de ter uma ótima conversa com Domenico de Masi, o sociólogo italiano que tem seu trabalho voltado para as mudanças nas relações sociais de nossa época, a qual ele denomina de “pós-industrialismo”.

Domenico de Masi ficou conhecido no Brasil especialmente por seu livro “O ócio criativo”, mas é autor de outros já traduzidos para o português, nos quais retrata a sua perspectiva sobre as mudanças que a sociedade vem passando e as que ainda terá que passar para se adaptar a essa nova era. Alguns deles são: “Desenvolvimento Sem Trabalho”, “A Emoção e a Regra”, “O Futuro do Trabalho” e “O Futuro Chegou”.

Domenico de Masi. Foto de João Lino da Silva

Neste papo de pouco mais de uma hora, conversamos sobre o futuro do trabalho, o consumo na era pós-industrial, o Brasil, e as transformações que o mundo passará para se adaptar à esta nova fase na qual a produção cultural será cada vez maior e mais importante do que a produção industrial.

Em 3 diferentes posts aqui no blog, abordarei um pouco da visão de Domenico, agrupada em 3 assuntos que foram temas da nossa conversa: 1) O trabalho no século XXI, 2) o declínio da perspectiva industrial na economia e sociedade, e 3) o consumo e o Brasil na era pós-industrial.

Neste primeiro texto irei trazer as opiniões de De Masi sobre a evolução do conceito do trabalho, e do papel que ele imagina que o trabalho ocupará nos próximos anos.

A evolução do conceito de trabalho

Domenico faz um paralelo sobre a nossa relação com o trabalho e com a orientação cristã de alguns países. Segundo ele, existe hoje uma “adoração” pelo trabalho, como se só aqueles que trabalham fossem dignos das recompensas materiais e imateriais. Com isso, o “trabalhar”, mais do que uma obrigação, é algo que é percebido como eticamente e socialmente necessário, ao ponto daquele que “não trabalha”, ou “não produz”, ser subjugado como alguém que não contribui para a sociedade e deve ser discriminado.

Domenico relaciona essa origem ao catolicismo, ao protestantismo e sobretudo ao calvinismo. Mesmo na sociedade pré-industrial já se tinha essa perspectiva dotrabalho como a possibilidade de expurgar o pecado original. E isso passa a criar, mesmo na época rural, a ascensão do conceito do trabalho como algo essencial ao ser humano. Como consequência,o ócio é subjugado apenas àqueles que não tem interesse de serem perdoados do pecado original.

Avançando em sua história, De Masi diz que o capitalismo chega com o protestantismo, principalmente com Calvino, com a teoria que nós somos premiados por Deus não quando morremos, mas sim em vida. E esse prêmio tem sua origem na virtude do trabalho. Se você não for virtuoso na sua profissão, você é um pecador. O trabalho, no capitalismo, passa a ter duas vertentes que o suportam: a religião e o consumo.Além de graça divina, o trabalho dá acesso às benesses do consumo.

Com isso, apesar da origem religiosa, a conexão entre a virtude e o trabalho se suporta pelas relações de consumo que são estabelecidas atualmente, já que aquele que tem trabalho pode ter acesso ao que o capitalismo tem de melhor – o conforto e a diversão proporcionados pelo consumo. É sob este estereótipo do passado que até hoje estamos vivendo.

O papel dos gerentes e dos cursos de gestão.

Segundo Domenico, a ideia dotrabalho como um privilégiofoi impregnada em toda a sociedade, mas ainda de maneira mais intensa nos cursos de gestão, como administração, economia, ou engenharia de produção, ou qualquer um que tem como princípio formar gestores.

Os gestores acabam propagando a cultura do “trabalhar mais é melhor”, e entendem que se há ainda trabalho a ser feito, deve-se continuar trabalhando, estendendo-se a jornada normal. Isso acontece, segundo Domenico, especialmente nos países católicos. Ele diz que um gerente na Alemanha, por exemplo, não tem nenhum problema em sair do trabalho às 5 da tarde. Mas os gerentes de países católicos como os EUA, Brasil, Espanha, Itália, acham que devem ficar até mais tarde, como uma espécie de penitência necessária para aquele que tem o privilégio do trabalho.

Mas em função dos métodos de gestão dominantes no mundo serem americanos, isso também acaba se tornando verdade para países não católicos, como a Coréia, a China e a Índia. De acordo com Domenico, “na Índia e na China o gerente não é indiano, não é chinês, não é brasileiro, ele é americano.Porque o gerente estuda no livro americano, ele estudo na ‘ Business School’ americana. Se você vai numa livraria de aeroporto são todos livros para gerentes, e de autores americanos. Os livros dos brasileiros, dos europeus, são todos copiados de livros americanos. Eno capitalismo americano o gerente é visto como a igreja católica vê um missionário, um jesuíta”.

A perspectiva de um gerente americano como um missionário é, no mínimo, intrigante. Segundo esta lógica, a expansão pelo mundo das empresas multinacionais fez se espalhar este conceito de trabalho como sendo a única atividade em que o homem é valoroso por realizar, e o trabalho que importa é aquele que leva à produção de produtos. Ou seja, é mais importante aquele que trabalha na fábrica, ou para que a fábrica produza, do que aquele que trabalha em qualquer outro ramo de atividade, como a educação, o entretenimento, ou as artes.

Desta maneira, o trabalho das fábricas, ou para a fábrica, ganhou, historicamente, uma simbologia extremamente positiva e que ainda afeta muito as relações entre os indivíduos, mesmo no século XXI e com a emergência da ideia de “economia criativa”.  Mesmo que haja uma evolução neste sentido, é possível perceber que algumas escolhas profissionais ainda são vistas como menos valiosas do que outras.

Essa perspectiva de trabalho, e a contraposição do conceito de trabalho com o conceito de diversão e ócio, ainda é realidade. Nas palavras de De Masi: “Quando falamos ‘trabalho’, isso está muito relacionado ao trabalho operário. Quando Marx escreve O Capital, Manchester era a cidade mais avançada do mundo e 97% de todos os trabalhadores eram operários. Hoje na Itália são apenas 33% de operários. O restante são analistas, ou gerentes, ou criativos. Mas ainda estamos muito baseados no trabalho operário”. Enquanto os gestores e as escolas de gestão não mudarem esta perspectiva do que de fato é “trabalho”, este conceito que vem dos anos 1930 continuará presente na simbologia da sociedade contemporânea.

O trabalho e a felicidade

O trabalho sempre esteve desassociado da felicidade. Segundo De Masi, “A felicidade começa no trabalho, mas não como felicidade, como dever,que é uma coisa diferente da felicidade. O trabalho é um dever, não é felicidade. A felicidade é o fruto do trabalho. Taylor, Ford, fazem a linha de montagem mas isso não é felicidade,me permite ganhar o dinheiro, que é o fruto do trabalho, que deve me trazer felicidade.”

A perspectiva industrial é que a felicidade era resultado do trabalho, mas diferente dele. Já na sociedade pós-industrial, este tipo de ideia está fadada a mudar, o que seria no entender de De Masi uma “grande mudança”.

A alteração do trabalho industrial para um trabalho pós-industrial, ou criativo, traz aperspectiva conjunta de trabalho e felicidade. “Um mineiro não consegue trabalhar e ao mesmo tempo ser feliz. Se o minerador é feliz trabalhando, ele é um alienado, é um louco”, diz Domenico. No entanto, um criativo pode trabalhar e ser feliz ao mesmo tempo.

Mas e as empresas como Google, Microsoft, ou outras, que colocam no ambiente de trabalho pequenas ilhas de “diversão”, como videogames, pebolim, salas de descompressão, entre outras atividades “divertidas”? É possível ser feliz nessas empresas, enquanto se trabalha?

Domenico é taxativo: “Google, Microsoft, estão no limite extremo da visão do gerente americano.É um infantilismo. Não como um fato adulto, da pessoa que se realiza (ao trabalhar), mas como um bando de crianças, com o seu pebolim. É uma ofensa à inteligência humana.Eles estão no limite da delinquência”.

Segundo De Masi, o comportamento deste tipo de empresa é limítrofe – eles operam sob a lógica do industrialismo, com as pessoas tendo que trabalhar longas horas e produzir muito, mas com a tentativa de incutir nos seus colaboradores uma visão de trabalho criativo do pós-industrialismo e, portanto, de felicidade enquanto se trabalha.

Para Domenico, estas grandes empresas devem sofrer ainda muito no futuro, em especial pela busca por mão de obra especializada e de qualidade para trabalhar dentro delas num mundo cada vez mais pautado no desenvolvimento de novas ideias, da criatividade, da pequena empresa ágil e que pode subjugar as grandes empresas.

De Masi entende que asgrandes ideias não são produzidas nas grandes empresas, mas especialmente fora delas, e cita o Facebook como exemplo, que surge dentro da Universidade, e não dentro de uma empresa. Com este tópico, começaremos nosso próximo post, na próxima semana.

Mais lidas

exame no whatsapp

Receba as noticias da Exame no seu WhatsApp

Inscreva-se